DESPERTAR
1. Ã?!
Estava indo bem. Um pouco enferrujado por não fazer isso há alguns anos, mas por cima ele levava vantagem. Começou a deslocar para a direita e desceu como uma flecha fazendo a volta para cruzar. Voltou a subir descarregando boas quantidades de linha a cada “desbicada”.
Aquela batalha era dele. Na comparação entre as duas pipas, a dele era a que estava mais distante e poderia aparar a rival assim que…!
– Réééélooooo! Dig! Dig! Ohh! Rééélooo! “Foi que nem bosta”! Coloca outro para ser relado de novo, Biel! Ha! Ha! Ha! – A voz rouca, irritante e debochada de Cáulon vinha de dezenas de metros atrás de Gabriel que não se virou para não dar um prazer ainda maior a aquele que era seu desafeto desde seus nove anos de idade quando, na escola, Cáulon colou chicletes mastigados nos cabelos de Gabriel; colocou um ovo em sua cadeira que quebrou e o deixou todo melado quando se sentou; que debochava dele nos corredores e, como se todas essas coisas e todas as outras que não foram citadas não fossem suficientes, sete anos depois ele mais uma vez corta sua pipa.
À aquela altura já não se importava tanto com os insultos do rapaz. Tinha que se preocupar em puxar sua linha antes que alguém a pegasse e ele perdesse mais que só a pipa que estava caindo por sobre a copa das árvores do parque Santo Dias enquanto outras dezenas de pipas dançavam e travavam batalhas por sob o céu azul.
– Gabriel! Desce dessa laje! Se você cair daí vai ficar no chão pois eu só tenho tempo para ligar para o resgate amanhã! – Disse sua mãe no tom de voz desesperado de sempre.
– Já estou descendo, mãe! Só vou terminar de enrolar a linha.
– Então anda logo! Vai ligeiro! Preciso que você vá até o mercado para mim. – A voz dela mão ficou mais baixa, mas ele ainda conseguia ouvir. – Estou cansada! Cansada! Um dia eu alugo uma casa e sumo!
– O que aconteceu, Ester? – Disse Luíza com seu tom calmo e sedutor.
– A casa está uma bagunça, tenho um milhão de coisas para fazer, Camila não dá sinal de vida e Gabriel está em cima da laje soltando pipa.
– Calma, mulher. O rapaz acabou de chegar do serviço. Deve ter tido um dia cheio. Está apenas relaxando um pouco. Ele já é bem grande e sabe se cuidar.
– Olha quanta coisa tenho que preparar: temperar o frango, salgar a carne, fazer as comidas, limpar a casa, lavar o quintal, ligar para a Lurdes para saber se o bolo está pronto e, como se não bastasse todas essas preocupações, tem Gabriel que pode cair da laje. – O garoto descia pela escada de madeira apoiada na parede nos fundos da casa e nem o bater de panelas nas grades do fogão era capaz de abafar os suspiros de sua mãe.
– Se acalme, vai dar tudo certo. Toda essa adrenalina não faz bem ao coração.
Gabriel deixou a lata com a linha enrolada ao lado do tanque de concreto onde Ester lavava as roupas que ficava na lateral da casa se questionando como uma mulher tão doce e gentil pode ser mãe de um mau-caráter como Cáulon?!
O garoto passou pela casinha, feita de madeira — como as dos desenhos animados —, de seu cachorro e notou que a velha caneca de ferver leite em que eles colocavam água estava vazia. Ele então a pegou e, no tanque de lavar roupa, encheu a caneca com água e a colocou novamente no lugar. Um ato quase inútil já que seu cachorro mais ficava na rua que dentro de casa, as vezes passava dias sem aparecer.
Ao entrar pela porta da frente, que dava direto na cozinha, Gabriel passou o olho no local e este estava limpo e organizado. Estaria como há meia hora atrás se não fossem as vasilhas de plástico, perfeitamente separadas por tamanho, em cima da mesa de madeira de cor bordô. O armário e a geladeira, de ferro na cor branca, chegavam a brilhar de tão limpos, assim como os azulejos também brancos com as pontas detalhadas em preto que revestia todas as paredes e o piso da cozinha.
Ester, já com seus 65 anos e um metro e cinquenta e sete de altura, era branca e gordinha. Estava com os cabelos brancos presos em um coque em cima da cabeça. Usava uma bermuda rosa, chinelos brancos e uma camiseta lilás. Ia de um lado a outro da cozinha pegando legumes e verduras na geladeira e os colocando em uma vasilha de plástico grande que estava sobre a pia enquanto Luzia se encarregava de lavar a louça que se acumulava. Essa tinha um metro e sessenta e cinco de altura, era negra e tinha um vasto Black Power, que nunca foi pintado, sem um fio de cabelo branco — o que Gabriel achava estranho pois ela tinha sessenta e dois anos —. Seu corpo era atlético, cheio de curvas, de dar inveja em muitas mulheres mais jovens. Usava um vestido azul turquesa com rosas vermelhas estampadas por todo ele. Não era colado, mas justo e deixava suas curvas bem acentuadas. Em cada pé um All Star branco. Ela olhou para Gabriel com seus olhos levemente puxados e negros como o céu noturno e sorriu gentilmente para ele, seu nariz parecia uma coxinha empinada e as maçãs de seu rosto se sobressaíram com o sorriso.
– Boa tarde, Dona Luzia. Tudo bem com a senhora? – Disse o garoto retribuindo o sorriso.
– Ahhhh! Que susto menino. Quer matar sua mãe do coração, é? – Ester que estava no fogão e de costas para a porta deu um pulo de susto.
– Calma, Ester! Você está muito ansiosa. – Disse Luzia rindo e estendendo um copo com água para a amiga. – Eu estou ótima, Gabriel. E você como está? Não precisa me chamar de dona ou senhora. Apenas Luzia. Ok?
– Estou muito bem. Obrigado! – Disse o garoto limpando os pés no tapete verde em frente a porta e entrou na cozinha. – Pode deixar que vou lembrar disso, Dona Luzia.
– Olha o “Dona” aí novamente! – Disse ela estreitando ainda mais os olhos.
– Desculpa, Luzia! – Disse meio sem jeito.
– Assim está bem melhor. – E voltou a se concentrar na louça da pia.
– Biel! Vá ligeiro botar uma camiseta pra ir ao mercado! Vá! Vá! – Ester disse ainda de costas erguendo a mão esquerda no ar enquanto a direita segurança uma colher de pau e mexia alguma coisa na panela vermelha.
Gabriel entrou na casa. Era pequena, mas muito bem organizada e limpa. Atravessou a cozinha e passou pelo corredor, branco onde na parede da direita havia um quadro de um metro quadrado com a a imagem de uma cachoeira pequena cercada de árvores e uma fênix no céu azul sem nuvens da pintura. O corredor tinha oitenta centímetros de largura e se estendia até o fim da casa. Ao lado do quadro, no começo do corredor, tinha a porta de acesso à sala. Na outra extremidade, colada na cozinha, ficava a porta do quarto de Ester. Do lado esquerdo, na outra parede, ficavam as portas dos quartos de Camila e Gabriel. Já no fim ficava o banheiro encostado ao seu quarto onde entrou.
O lugar estava arrumado como havia deixado quando saiu para trabalhar pela manhã. Desviou de seu guarda-roupas que ficava encostado na parede divisória com o banheiro, abriu a segunda gaveta do móvel e pegou uma camisa preta. Ergueu e cabeça e, no espelho da porta, encarou seus grandes olhos verde-escuro com um pequeno contorno verde-oliva que rodeava suas pupilas. Dava a aparência de raios solares. Com a mão que estava livre deu uma afofada em seu médio Black Power.
Gabriel era negro, com o tom de pele que parecia um chocolate ao leite. Magro, mas com um porte atlético, apesar de não praticar muitos esportes. Tinha um metro e oitenta de altura, dezesseis anos. Seu nariz era pequeno, e seus lábios proporcionais ao restante do rosto que achava agradável. Não se achava bonito, apesar de receber um número considerável de bilhete no dia dos namorados no ano anterior das garotas da escola.
Na parede oposta ao guarda-roupas ficava sua cama de madeira. O colchão forrado apenas com um lençol verde. Em cima dele, sua mochila de escola e o travesseiro com uma fronha combinando com o lençol. Ao lado da cama, a baixo da janela, ficava uma mesinha, também de madeira, com um abajur.
Foi até a mesa gamer, ao lado de uma poltrona preta na parte direita do quarto, onde ficava seu computador, videogame e o bonsai, que ganhou de sua mãe quando ainda era criança. Uma vez a cada dois meses dedicava um dia inteiro à planta que crescia rapidamente.
Era uma pequena árvore interessante. Seu caule era azul-puro e suas folhas eram triangulares, tinham um tom verde-bandeira e as pontas eram tão douradas que brilhavam, parecia que haviam pingado pequenos pontos de ouro em cada extremidade. Por mais que pesquisasse não encontrava em nenhum lugar da internet qual era o tipo dessa planta. Uma vez comentou sobre o bonsai com o engenheiro ambiental da empresa em que era jovem aprendiz e esse disse que não existia tal planta. Talvez ele fosse dono do único exemplar no mundo e preferiu não dar continuidade ao assunto.
– ...um absurdo o salário mínimo aumentar apenas dez reais! Dá para comprar apenas dois pacotes de açúcar. – Dizia Luzia quando Gabriel entrava novamente na cozinha.
– Enquanto isso, Lú, os patrões enriquecem às nossas custas. – Disse Ester cortando uma cenoura em rodelas em cima da pia agora totalmente livre das louças.
– É a escravidão disfarçada. Isso que é! Eles fazem a mão de obra ficar mais barata com suas reformas enquanto enchem o bolso de dinheiro. – Luzia descascava uma batata sentada na mesa. As duas conversavam despretensiosamente quando Gabriel interrompeu.
– Pronto, Mãe. O que a senhor quer do mercado? – Disse ele parando ao lado da porta de entrada.
– “Tá” aqui a listinha e meu cartão. Não se demore, viu menino! – E entregou os itens ao garoto.
– Ok! Já volto. – Disse ele saindo da casa e guardando os objetos que sua mãe lhe dera no bolso da bermuda verde que usava.
– Esse país tem muito o que aprender! Nos países desenvolvidos as pessoas ganham muito bem, tem um bom estilo de vida e ainda assim os empresários enriquecem. – Continuou Luzia com a conversa como se não tivessem sido interrompidas.
Gabriel passou pelo caminho de pedras de carvalho que ficavam por sobre a grama e ia da porta da cozinha até o portão do número doze da Rua Damasco.
Do outro lado da rua não havia casas e sim as margens de um estreito córrego. Ele cresceu ouvindo histórias de quando o córrego era limpo, depois ficou poluído por anos e há dezesseis anos atrás, como que por um milagre, as águas desse córrego e de todo o mundo ficaram limpas. Ninguém sabia dizer o que havia ocorrido. Nenhum biólogo, até aquele momento, soube explicar o que houve, então ficou conhecido como o milagre das águas. Nessa mesma época houve um surto de cura e muitas empresas farmacêuticas fecharam as portas. Mas, curiosamente, algumas doenças, que supostamente foram erradicadas, voltaram a contaminar a população e essa indústria voltou a funcionar como antes.
Gabriel cumprimentou Dona Odete, uma senhora branca, com noventa e um anos de idade que tinha uma micro doceria ao lado de sua casa. Ela era uma figura amada da região e não deixava de andar de bicicleta, patinete, pilotar moto, jogar bola com os garotos na rua, jogar taco, enfim. Ela era mais jovem que ele mesmo com a idade avançada, mas quando estava em seu comercio só era possível ver os cabelos brancos e curtos, a testa enrugara e os olhos azuis.
– Boa tarde, Dona Odete! – Disse o garoto acenando com o braço direito.
– Boa tarde, “fio”! – disse Dona Odete com sua voz tremula.
Era dia sete de fevereiro de dois mil e vinte, última sexta feira antes do retorno às aulas. Último dia de férias e seu aniversário, por isso sua mãe estava tão agitada. Ela daria um jantar para amigos e família e queria tudo pronto antes das dezenove horas.
Ele continuou andando até chegar na Rua Henrique San Mindlin que estava com o trânsito tranquilo apesar de ser sexta feira. Aproveitou que não vinha carro em nenhum dos dois sentidos e a atravessou a rua fora da faixa de pedestres. Se sua mãe o pegasse fazendo isso ela literalmente o mataria.
Ao invés de ir pela Henrique San Mindlin ele resolveu seguir pela Rua A, paralela à Avenida Comendador Sant’Anna.
Assim que pisou na Rua A – Essa totalmente sem pavimentação e também paralela ao córrego –, ele achou estranho a ausência do caminhão vendia frutas e sempre ficava estacionado entre a esquinas das duas rua, mas o pensamento logo se foi pois uma figura conhecida com os pelos brancos e algumas manchas marrom veio correndo, com a língua de fora e balançando o rabo, feliz de encontrar seu amigo.
– Ei! Thorto. Então você está aqui, né seu vagabundo. – Gabriel agachou para acariciar seu cachorro vira-latas, que o rodeava balançando freneticamente o rabo. Tinha esse nome por seus olhos castanhos serem assimétricos. O lado direito do seu rosto era mais baixo quando comparado com o esquerdo. – Coloquei água fresca pra você! Vê se aparece!
Ele se levantou e o cachorro saiu em disparada na sua frente até o fim da rua, fez a volta em torno de si e começou a voltar, só que mais devagar. Um motoqueiro trajando uma camisa regata branca, uma bermuda laranja e um tênis marrom entrou na rua e a roda da frente de sua moto vermelha passou por um buraco. Com o balançar do veículo, seu capacete ficou torto e, com o susto, o homem ao invés de frear, acelerou indo de encontro ao cachorro.
– Cuidado, Thorto! – Gritou o garoto fechando os olhos e estendendo a mão direita à frente de seu corpo. Não podia queria ver seu cachorro ser atropelado.
Há qualquer momento ouviria o impacto e Thorto certamente levaria a pior. Mas o que ouviu foi um forte farfalhar, como se muitas folhas tivessem caído de uma árvore ao mesmo tempo.
Gabriel abriu os olhos e Thorto estava na sua frente o encarando sorridente e balançando o rabo.
– Que porra é essa? De onde veio isso? – A voz do motoqueiro vinha de trás de uma rede de cipós que saiam de uma árvore às margens do córrego, mas há alguns segundos atrás não havia nem a arvore e muito menos os cipós. – Co...! Co...! Como essa planta veio parar aqui?!
O garoto começou a ir de encontro ao rapaz da moto e parou ao ouvir os latidos desesperados de seu cachorro. Thorto latia para o nada e ao mesmo tempo recuava com o rabo entre as pernas.
– Agora está tudo bem, feio! Eu acho...! – Disse Gabriel se aproximando de seu amigo. Um forte cheiro de cachorro molhado invadiu suas narinas. – Humm! Você está precisando de um banho, urgente!
Ao se aproximar mais ele percebeu que o cheiro não vinha de seu cachorro e sim do outro lado dos cipós.
– Ei, garoto! Diz ai. Qual seu nome? – Uma voz rouca, que mais parecia um rosnado, disse sem seu dono ser revelado. Não era o motoqueiro pois sua voz era mais esganiçada.
– Minha mãe me ensinou que é educado a gente se apresentar antes de pedir alguma informação de alguém. – respondeu, um tanto receoso, apertando os olhos na tentativa de enxergar alguém entre os cipós que iam da árvore às margens do córrego e se prendiam na imensa parede do outro lado da rua de terra.
– Ha ha ha! – a gargalhada mais parecia um latido. – Eu me chamo Lôbi e vim do mesmo lugar que talvez você tenha vindo!
– Estranho! Acabei de sair de casa e você não estava lá!
– Muito engraçado! Quero dizer que, assim como eu, talvez você não pertença a esse mundo. Há anos nós procuramos alguém e me parece que esse alguém está só outro lado desse muro verde. Dezesseis anos atrás eu senti uma energia como a sua que desapareceu misteriosamente e, coincidentemente, eu estava passando aqui perto e novamente senti o mesmo poder de outrora.
– Ã! Você tem que parar de usar seja lá o que for que esteja usando, cara! Eu nasci aqui em São Paulo mesmo! Minha mãe é baiana, mas a Bahia fica aqui no planeta Terra também!
– Vem comigo que eu explico melhor em outro lugar com mais calma.
– Nem fodendo eu vou para algum lugar com você!
– Tisc, tisc! Se não vier por bem, virá por mal!
– Que isso, cara! Deixa o moleque em paz! – A voz esganiçada do motoqueiro soou novamente seguida de um baque surdo.
– Saia do meu caminho, seu verme! – O rosnado veio seguido do som de lâminas bem afiadas cortando algo e em seguida os cipós caindo inertes no barro da rua.
Thorto não latia mais, apenas emitia um som de choro agudo e recuava de cabeça baixa e orelhas encolhidas. Gabriel o acompanhava a passos lentos, tão assustado quanto seu cachorro ao ver a imagem de um ser com mais de dois metros de altura e com o corpo coberto de pelos cinza-azulado. O tronco, braços e mãos eram de homem, mas a cabeça e as pernas, arqueadas e com patas, eram de um lobo. Gabriel não era burro e logo se ligou que o nome “Lôbi” era o diminutivo de lobisomem. Mas isso era impossível. Esse ser era folclórico e mitológico. O garoto sorriu nervosamente pensando ter entendido a situação.
– Isso só pode ser um sonho! Devo ter cochilado quando cheguei em casa há algumas horas atrás e em instantes irei acordar, é claro! – Disse Gabriel – Bom! Daria uma ótima história, mas minha mãe deve estar precisando de mim. Agora tenho que ir, senhor Lôbi! Depois volto há dormir e tentarei sonhar com esse momento novamente. – Fechou os dois olhos, inspirou profundamente e abriu apenas o olho direito. Lôbi continuava há alguns metros na sua frente com o braço direito levantado segurando o punhal dourado de uma espada cumprida, tão polida que era possível ver no reflexo o fundo da orelha do monstro, que descansava por sobre o ombro. – Não?! Vou tentar de novo, devo estar em um sono pesado pois estava cansado.
– Para de gracinhas, moleque! Vamos sair logo daqui antes que mais alguém chegue. – Lôbi começou a avançar na direção de Gabriel que recuava, agora um pouco mais rápido.
Sem olhar para trás, o garoto pisou em falso num buraco da rua barrenta, se desequilibrou e caiu sentado. Tentou se levantar, mas o desespero tomou conta de seu corpo e caiu novamente. O lobisomem estava cada vez mais perto e ele não conseguia pensar em uma forma de sair daquela situação. Atirou uma pedra na direção do monstro e o acertou em cheio na testa. Mas esse nem ao menos coçou o local em que foi atingido e continuou se aproximando.
Gabriel olhou para o céu, imaginando que talvez nunca mais estaria com sua família novamente e viu uma sacola passar voando por sobre ele. Um forte vendaval tomou conta do local. O lobisomem parou de avançar e começou a olhar para os lados como se estivesse procurando alguém.
– Eu sei que está ai! Apareça logo! – Como se fosse possível, a voz do lobisomem se pareceu ainda mais com um latido.
Um redemoinho começou a se formar na frente de Gabriel que colocou a mão na frente do rosto para evitar que terra entrasse em Deus olhos. Quando voltou a enxergar o momento que estava vivendo, viu as costas de um homem negro com apenas uma perna e descalço. Usava uma saia vermelho-sangue muito surrada que parecia ser tão leve quanto o ar, pois suas pontas, que precisam terem sido rasgadas por filhos de cães, dançavam soltando pequenos pedaços que se desfaziam no ar assim como o gorro, também vermelho, em sua cabeça. Não usava camisa e, com toda aquela plumagem negra que cobriam suas asas com mais de três metros de comprimento cada, nem.precisava. Além disso, o que dava pra ver era algo parecido com uma fumaça fina que subia alguns centímetros além de sua cabeça.
– Olá, Lôbi! Perdido por aqui? – Perguntou o homem negro com a voz amigavelmente calma.
– Estava passeando e acabei topando com algo muito curioso. – Disse o lobisomem num rosnado. Parecia furioso e frustrado.
– Estou curioso com sua curiosidade! O que você teria visto?
– Você é bem inteligente, Saci. Sabe muito bem do que estou falando! – Disse Lôbi com os olhos fixos em Gabriel que parecia não respirar de tão tenso que estava.
– Gentileza sua! Eu também notei algo muito interessante por aqui, mas será que estamos falando da mesma coisa?
– Grrr! Esse garoto caído aí atrás de você tem um poder bem conhecido! Estou certo de que ele é a pessoa que Aba nos mandou procurar há treze mil anos atrás! Então... Humm.. Como bons amigos que fomos outrora, deixe-me conduzir esse pivete até Piatã!
– Mas se foi Aba quem nós deu a tarefa qual o motivo de entregá-lo à Piatã? – Gabriel tinha a impressão de já ter ouvido a voz do homem negro antes, mas não conseguia pensar em mais nada além de ter certeza de que estava louco. – E o que o faz pensar que eu deixarei você levar o garoto?
– Vamos deixar essa formalidade de lado, Saci! Ele é a razão de Aba ter nos trancado nesse lugar, e, já que o encontramos, vamos entrega-lo juntos ao irmão. Você sabe bem que Piatã é o único que consegue voltar para nossa terra natal!
– E você sabe bem o que seu mestre deseja fazer.
– Seja lá o que tenham lhe dito é mentira. Tudo intriga da oposição.
– Realmente é intriga, pois eu me opus quando Piatã me revelou seu plano e desde então eu não o escuto mais.
– Você deixou de ouvi-lo por opção, certo?
– Certo! – A voz do Saci saiu seca e nada amistosa. Como se já soubesse que não iria gostar do que viria a seguir.
– E os outros? Você ainda os ouve? – Saci nada disse. O local só não ficou mortalmente silencioso pois alguns veículos passavam nas ruas atrás deles. – Só vocês ainda não perceberam que eles nos abandonaram aqui e o único que ainda se importa conosco é Piatã!
– Não sabia que você era tão sentimental, Lôbi! Você bem sabe que seu mestre quer recuperar o poder e nos trancar de vez aqui, pois pensa que pode segurar o desmoronamento de tudo! Mas, mesmo recuperando todas as suas forças, ele não conseguirá e, se Céu não for salva, será o fim!
– Nada disso! Será o começo de uma nova hera. Piatã já planejou tudo. Ele vai cuidar para que o tudo não desmorone sobre o nós e esse garoto, tendo o mesmo poder que sua mãe, vai cuidar para que nossa terra natal não morra.
– Impossível mostrar a luz para quem não quer enxergar. – Disse o Saci baixando o braço direito. Na mão tinha um cachimbo preto com alguns detalhes em vermelho e dourado. Dele saia a fumaça que antes era vista por sobre sua cabeça.
O objeto começou a crescer e em três segundo estava quase do tamanho de seu dono, mas não era mais um cachimbo e sim uma enorme marreta. No cabo preto e curvo havia diversas listras e figuras douradas que Gabriel não conseguia distinguir. A cabeça tinha duas formas diferentes: um lado era um triângulo pontiagudo e o outro arredondado no começo e achatado no final onde havia um vermelho abrasante de onde saia fumaça.
Gabriel sentia a tensão entre os dois seres monstruosos. O ar estava denso e quente e difícil de respirar, não só por que era verão, mas também pelo confronto que parecia ser inevitável.
O Lobisomem ficou em guarda e apontou a espana na direção do Saci que arqueou a única perna, abriu as grandes asas, girou a gigantesca marreta por cima de sua cabeça com o braço direito e parou na frente do seu corpo segurando com as duas mãos. Bateu as asas, fazendo levantar uma grande quantidade de poeira, e atacou no mesmo momento em que Lôbi pulou em sua direção.
As duas armas se chocaram e um barulho ensurdecedor de metal encheu o ar. Gabriel que continuava sentado no chão, agora com as mãos tapando os ouvidos, abobalhado com o que estava acontecendo à sua frente continuava a pensar que aquilo era um sonho. Muitas faíscas saíram voando entre os dois monstros.
– Ã?! Que loucura é essa?! – O motoqueiro havia acordado e pelo tom de sua voz estava horrorizado. – Vou meter o pé daqui! – O garoto conseguiu ver o homem correndo atrás dos dois monstros. Pegou a moto, colocou o capacete na cabeça de forma muito atrapalhada, montou no veículo, deu partida e saiu com a moto erguendo levemente o pneu dianteiro por ter soltado a embreagem muito rápido. Virou a esquina e desapareceu.
Há essa altura, Thorto já havia sumido. Gabriel achou era uma boa ideia correr dali. Não conhecia nenhum dos dois monstros e mesmo que conhecesse o que ele, um simples mortal, poderia fazer?! Ele levantou, se virou e começou a correr em direção a Rua Henrique Sam Mindlin. Achou muito estranho não ter pessoas passando por ali. Nem o senhor que vendia frutas em um caminhão de pneus furados que ficava parado na esquina das duas ruas não estava no local.
Com mais alguns passos alcaçaria o final da rua. Os dois monstros continuavam sua batalha mortal colidindo com suas armas.
Um grande Fila Brasileiro com a pelugem toda amarelo-mostarda parou na sua frente e começou a latir para ele fazendo-o parar.
– Ei, lindo cachorrinho. Alivia meu lado e deixa eu passar? Ali atrás as coisas estão feias e eu não quero morrer bem no dia do meu aniversário. – Disse o garoto desesperado olhando para o cachorro e para a luta no momento em que o Saci golpeava o lobisomem de cima para baixo acertando-o em cheio na cabeça, mas Lôbi era forte, rapidamente se recuperou e pulou na direção do córrego ficando em pé na beira do barranco.
A grande marreta ficou enterrada no chão. Foi a deixa para Lôbi correr na direção do Saci e desferir um soco forte em suas costelas fazendo-o se curvar de dor. Depois deu um chute feroz com a perna esquerda criando um grande deslocamento de ar no local. O monstro negro voou, bateu com as costas na parede lateral da farmácia e caiu inerte no chão.
– Achou mesmo que me derrotaria nessa forma medíocre, negão? – Disse o lobisomem depois de cuspir no córrego.
Começou a ir na direção de Gabriel que pensou em voltar a correr, mas o cachorro que o impedia de passar começou a se contorce e em um piscar de olhos estava de pé na forma de um homem branco, com cabelos loiros e usava um sobretudo preto.
– Meu senhor não está só, garoto. Agora você vem conosco. – Disse o homem segurando Gabriel pelo braço esquerdo.
Saci levantou com uma das mãos no lado do corpo que foi golpeado, e começou a pular na direção de sua marreta. Mesmo que a alcançasse, Gabriel achou que a batalha estava perdida, já que Lôbi estava inteiro e ainda tinha um reforço.
Se o motoqueiro achou estranho o que estava acontecendo entre esses dois monstros, acharia ainda mais insano o que veio a seguir. Um tentáculo de polvo com mais de trinta metros saiu de dentro do córrego, se enrolou em volta das pernas do lobisomem, o erguendo no ar, deu uma volta em torno de si e desceu de uma vez batendo-o com o peito no chão de barro. Com o impacto, poeira e pedras voaram por todos os lados. Não dava para ver nada, apenas ouvisse os gemidos de dor de Lôbi.
– Está atrasado, Boto! – Disse o Saci se apoiando no cabo da marreta e sorrindo para as margens do córrego de onde sai um homem cambaleante.
– E... eu me perdi e fui parar na zona “lexte”. Ainda bem que ele cuspiu aí nessas águas, assim pude chegar aqui... Ick! – Disse o homem branco claramente bêbado.
– Andou bebendo de novo...?!
– Talvez vocês tenham muito papo para colocar em dia, mas... SOCORROO! – Gritou o garoto que lutava inutilmente para se soltar enquanto era arrastado pelo homem loiro.
Saci bateu as asas à frente de seu corpo e uma lufada de ar passou por Gabriel e acertou o homem no rosto e o jogou do o outro lado da rua.
– Isso ainda não terminou! – Disse o lobisomem ainda deitado antes de afundar no barro ceco e desaparecer.
– É apenas o começo do fim. – Saci falou para si enquanto pulava com dificuldades na direção da marreta.
– Ela me deixou, Pe... Ops! Saci! Ficamos só dezessete anos juntos e ela me deixou! Ick! – Disse o Boto em tom choroso. Era um homem bonito. Tinha um metro e oitenta de altura e cabelos ruivos bem penteados de lado. Sua pele tinha um tom levemente rosado, tinha olhos cor de mel e barba de lenhador também ruiva. Os traços do seu rosto eram finos, olhos, nariz, sobrancelhas, boca tudo muito bem alinhado. Usava um terno todo preto, camisa branca e uma gravata lilás. Os sapatos lustrosos chegavam a brilhar. Apesar de ter saído de dentro do córrego, suas roupas estavam inteiramente secas.
– É tudo muito novo pra ela. Talvez esteja apenas dando um tempo. – Disse Saci em tom amigável.
Só agora Gabriel conseguiu ver o monstro negro com clareza. Seu rosto era ossudo, nariz de batata, seus dentes eram muito brancos, mas o que intrigava Gabriel era que seus olhos também eram inteiramente brancos, não tinha íris. Era musculoso e tinha o corpo todo definido.
– Treze mil anos correndo atrás daquela mulher! Isso sem contar o tempo em nossa terra! Tudo o que consegui foram dezessete anos terrestres com ela! ... Ick!
– E foram os melhores dezessete anos da sua existência, não foram?
– Ohh se foram!
– E agora vocês tem algo que vão uni-los para sempre. Uma linda filha. Tenho certeza que Iara voltará em breve! – Disse Saci dando tapinhas consoladores com sua mão nas costas do homem que ele chamava de Boto. Nas mãos do Saci, assim como seus pés, haviam apenas três dedos que pareciam garras.
– Essas mulheres...! Você tem sorte de ter uma mulher que te ama ao seu lado! Iara só pisou e sapateou em cima do meu coração que sempre foi escancarado para ela! Ick! – Disse o homem ruivo e se virou para Gabriel. – Ei, garoto! Sei bem o que está pensando. Por que as mulheres são tão cruéis com a gente a ponto de deixar um homem romântico como eu nesse estado, não é mesmo?!
– Não está nem no meu top cem! – Disse Gabriel com os olhos arregalados e caminhando na direção dos dois. – Alguém pode me explicar o que está acontecendo aqui? – Disse gesticulando com os braços.
– Isso vai ficar pra outra hora! Tenho que levar o meu amigo aqui para o Curupira dar uma olhada nele! – O Boto disse se olhando para o monstro negro que estava apoiado no cabo de sua grande marreta que ainda estava enterrada no chão. – Afinal, por que está nessa forma? Cadê o resto? – Ajudou-o a tirar a arma que logo voltou a ser apenas um pequeno cachimbo e colocou na boca do Saci que passou o braço direito por cima do ombro do Boto e foram na direção do córrego.
– Eu não quis assustar o garoto! – Disse o Saci pulando em sua única perna.
– E você pensou que isso tudo não o assustaria?
– Não imaginei que o Lôbi estivesse aqui!
– O Curupira vai dar um jeito em você! – O homem ainda cambaleava de embriaguez. Gabriel não sabia quem apoiava em quem. – “Cê” me deixooouuu, me illuuddiiiuuu dizendo que me amaavaa!” Me acompanha Saci! “Agoraaa fico aquiiiii beijando a booocaa doo cooopoo de cachaaaaçaaa” – Os dois entraram cantando no córrego e desapareceram deixando o garoto sozinho.
Olhando para os lados e com as mãos na cintura ele só conseguiu dizer uma coisa:
– Ã?!
Após terminar as compras, Gabriel fez todo o percurso de volta pra casa pensativo. Não conseguia tirar da cabeça o que aconteceu com ele há poucos minutos. Toda adrenalina, a batalha, os seres folclóricos se revelando e o que mais o incomodava eram as palavras de Lôbi.
Já dentro do quintal viu que Thorto estava deitado dentro de sua casinha de madeira todo encolhido. Gabriel o chamou mas ele nem se mexeu, só emitiu um som agudo. O fato de o cachorro estar dentro de casa mostra o quanto ele ficou abalado com o ocorrido.
– Sei como você está se sentindo. Mais tarde eu volto para te dar um pouco de atenção. – Disse o garoto agachando e acariciando os pelos de Thorto. – Agora eu tenho algo sério a fazer. – E se encaminhou para casa com as sacolas em mãos.
– Ah! Você está aí. Eu já estava ficando preocupada. – Dona Ester disse depois de pegar uma panela com água quente e legumes no fogão e virar em um escorredor de metal na pia. — O mercado estava cheio?
– Até que não, mãe. – Disse Gabriel colocando as sacolas por sobre a mesa ao lado de uma grande vasilha de plástico com maçãs, bananas e mamão picados. – E Dona Luiza?
– Ela saiu alguns minutos depois de você. – Disse pegando o escorredor e depois o balançou algumas vezes fazendo a água que estava presa entre os legumes sair e uma lufada de vapor se erguer.
– Ótimo! – Disse se aproximando da mãe.
– Como assim, “ótimo”, Biel? Ela parece gostar tanto de você.
– Eu sei. Quero dizer que é bom que ela não esteja aqui pois... Hã... quero lhe perguntar uma coisa. – Deu um beijo no rosto da mãe, depois voltou para a mesa e se sentou em uma cadeira.
– E o que seria? – Ester ia de um lado para o outro afim de concluir todos os preparativos do jantar.
– Sou eternamente grato por tudo o que a senhora fez por mim e, independente do que a senhora diga, eu vou continuar te amando para todo o sempre de todo o coração e com toda minha alma.
– Eu também vou te amar para sempre, mas o que foi que você aprontou, Gabriel? – Disse mexendo com uma colher de pau a panela que tinha molho de tomate e com a mão esquerda na cintura.
– Eu não fiz nada.
– Então para de enrolar e vai direto ao assunto.
– A senhora é mesmo minha mãe biológica?
Sem dizer uma palavra, Ester terminou de mexer o molho que refogava, diminuiu a chama do fogão, foi até a pia e lavou as mãos, depois as secou com um pano de pratos que ficava pendurado em um gancho preso na parede a cima da pia. Foi até a mesa, puxou uma cadeira de frente a de Gabriel e, com o olhar gentil e amável, o encarou. Suspirou profundamente e então começou a dizer:
2- Milagre.
Faltavam vinte minutos para as seis horas da manhã quando dona Ester olhou para o relógio da cozinha. Levantou apressada da cadeira, foi até o armário, pegou uma chaleira, encheu de água e a colocou em cima do fogão. Na bancada de madeira ao lado, pegou o isqueiro e acendeu o fogo.
As seis horas os trabalhadores entrariam para tomar o café antes de irem embora do último dia de obras na ponte que havia sido construída sobre o rio Pinheiros.
Foram dois anos de obras e nesse tempo ela trabalhou como faxineira noturna. Na segunda-feira começaria sua nova jornada no gabinete do prefeito da cidade de São Paulo, graças às boas referências que teve do engenheiro coordenador da ponte.
Não era nenhuma mocinha, mas aos quarenta e oito anos tinha mais disposição do que muitas meninas de quinze. Solteira e sem filhos, morava com uma sobrinha de treze anos na periferia de São Paulo, no bairro do Capão Redondo.
Ester começou a preparar o ritual do café da manhã. Colocou o pó em um grande coador de pano, depois colocou o coador dentro da grande cafeteira elétrica que mantinha o que estivesse dentro sempre aquecido, despejou a água fervendo, pegou o controle remoto, ligou a tv e sentou-se na cadeira de plástico.
"Hoje, domingo, a Marginal Pinheiros sentido Castelo Branco está fechada, pois acontecerá a corrida beneficente "Unidos Vamos Mais Longe".
“O trajeto da corrida é entre a ponte Estaiada, na Berrini, e a estação Ceasa da CPTM. Este percurso tem dezesseis quilômetros e o prêmio é um carro zero no valor de trinta mil reais, doado pela montadora Locomovi”
“Mais de cinquenta mil pessoas inscreveram-se na prova e o valor da inscrição foi de vinte reais. Toda quantia arrecadada será doada para a AACD. Daiana."
“Lembrando que hoje será um dia quente como a Marly falou há pouco na previsão do tempo, Luiz. Fará cerca de trinta e um graus. Como que esses competidores vão conseguir chegar até o fim da corrida? Eles têm que se hidratar, né?"
"É, Daiana. E para suportar todo esse calorão que vai fazer na cidade de São Paulo, eles contarão com dezenas de barraquinhas com água em copos descartáveis ao longo do percurso. Também teremos dezenas de ambulâncias de plantão para o caso de acontecer algum imprevisto. Mas esperamos que tudo dê certo e que a galera consiga chegar ao fim do percurso sem nenhum problema. Todos os competidores vão ganhar um prêmio de consolação por ter participado da corrida."
"Estou vendo muitas pessoas por aí, Luiz. Todos esses são participantes?"
"Nem todos viu, Daiana. Muitos aqui vieram aproveitar que a Marginal está fechada e trouxeram a família para passear e, acreditem, alguns vão até fazer piquenique, viu!"
"Nossa! Piquenique?! Em plena Marginal Pinheiros?! Tem algumas dessas pessoas por perto para conversar com a gente, Luiz?"
“Deixa-me ver aqui se alguém topa dar uma palavrinha."
– Bom dia, Dona Ester! Como foi a noite? – Disse o encarregado da obra com seu vozeirão grave entrando na cozinha improvisada feita de madeira e colocando o capacete branco por sobre uma cadeira de plástico. Era branco, com um metro e sessenta de altura. Usava calça e botas pretas, uma camisa azul clara com seus botões quase se desprendendo para manter a grande barriga dentro dela. Tinha feições calmas com seus olhos pequenos e seu grande nariz. Nunca se via sua boca, pois um vasto bigode grisalho e bem penteado a cobria.
– Foi muito boa, Renato. E tua noite como foi? – Falou Dona Ester com seu leve sotaque nordestino que, apesar de já estar mais de vinte anos morando em São Paulo, ainda o conservava leve e arrastado.
– A minha também foi muito boa, mulher. Finalmente essa obra está acabada e supervisionada. Hoje, depois dessa corrida a ponte será inaugurada....
"... daí a gente aproveitou que a Marginal seria fechada e viemos fazer um piquenique nesse canteiro que é tão bonito. Pena que o Rio Pinheiros é tão poluído, né?! Por que se não fosse dava até para dar um mergulho! Mas para ele ser limpo só se acontecesse um milagre divino, pois as autoridades nem se quer lembram de sua existência."
“Tá” aí, Daiana. As pessoas vieram aproveitar que as vias da Marginal Pinheiros estão fechadas e vão curtir as árvores por aqui. Fica a dica sobre as condições do rio.”
– Rum! Corrida beneficente que nada. Eles aproveitaram o dia para fazer o evento e mostrar a nova ponte trazendo publicidade para a atual gestão. Ainda bem que tem pessoas como esse cara aí que enxergam as coisas. Bom dia, Dona Ester. – Disse o homem indo até a pia e lavando as mãos. Era branco, com um metro e noventa de altura, calvo na parte de cima da cabeça e cabelos nas laterais que se juntavam a barba bem aparada que cobria todo o rosto. Usava uma camisa rosa, um jeans claro e sapatos marrons. Era o dono da empresa que construiu a ponte.
– Bom dia, Seu Fábio. Pelo menos o dinheiro arrecadado vai ser por uma boa causa. Não é?! Bem que podiam doar um pouco para mim também, seria de muita ajuda. – E a cozinha encheu-se com a risada dos mais de trinta peões de obra que se juntaram a eles.
Aquele local já tinha sido ocupado por mais de duzentos homens que entravam e saiam durante todas as horas do dia, por dois anos, para que a ponte ficasse pronta e agora tinham pouco mais de dez por cento de pessoas nela. Mas afinal era o último dia e eles estavam ali apenas para pequenos retoques e limpeza do local.
Hoje eles iriam desmontar esse alojamento e a paisagem do lado de fora voltaria a ser apenas árvores, plantas, capivaras e o rio de mil cento e trinta e seis quilômetros que, ali onde eles estavam, era morto e pelo que parecia iria continuar assim por muitas décadas.
Às sete da manhã, Dona Ester já havia limpado toda a cozinha e se preparava para ir embora descansar, pois amanhã pela manhã iria começar em seu novo emprego. Diziam que o prefeito era uma pessoa muito arrogante, então ela teria que estar muito preparada para ser invisível aos olhos do dele e dos que frequentavam seu gabinete.
Ela saiu do alojamento e o trancou. Tinha boas recordações dos momentos em que viveu no local. Se tivesse a oportunidade iria voltar a trabalhar junto com pessoas humildes como aqueles trabalhadores. Eles eram como as pessoas que faziam parte do seu cotidiano. Mas teria um novo desafio na vida e estava empolgada para por a mão na massa.
Olhou para o outro lado das margens do rio e viu muitas pessoas movimentando-se pela via, barracas com águas e isotônicos para os corredores e algumas passeando de mãos dadas com seus filhos.
Começou a andar na direção da passarela e parou quando um barulho muito alto de batidas entre carros, pneus derrapando no asfalto e pessoas gritando chamou sua atenção. Os sons vinham das vias da Marginal do lado em que ela estava e Dona Ester correu até a origem do alvoroço.
Deu a volta no alojamento e começou a subir a colina que dava acesso à via sem olhar para o rio. Queria saber o que havia acontecido. Pensou que na certa eram jovens imprudentes voltando da balada bêbados e que causaram mais um acidente. Esperava que ninguém tivesse se machucado na batida.
Quando chegou ao alto da colina e olhou para a rua, deparou-se com uma cena um tanto que intrigante: um carro estava só com a cabine e as rodas traseiras, a parte da frente não estava em lugar algum.
Uma mulher muito bonita, alta com belos cabelos louros, vestia um macacão vermelho e curto com uma blusinha branca por baixo e com os sapatos na mão. Estava ao lado do carro e conversava com um rapaz também branco, barbudo, olhos castanhos e que vestia uma camisa azul com estampas de flores uma bermuda cinza e de chinelos. Dona Ester chegou mais perto para poder ouvir o que eles diziam.
– Onde foi parar a outra parte do meu carro? Olha para os meus sapatos! Por milímetros eu não perco parte dos meus dedos! – Disse a mulher e os mostrou pra o homem que olhava incrédulo para um par de sapatos que tinha um buraco na frente.
– Calma, Bethe. – O homem tentava ser racional e analisar a situação — Isso tem que ter uma explicação. Claro que tem! Você viu aquela coisa escura que apareceu do nada? E o que foi aquilo que saiu de dentro dela? Eu podia jurar que era um bebê!
– Sério mesmo que você está preocupado com aquilo, Cláudio? Eu ainda nem acabei de pagar o carro! Com certeza, o seguro não cobre desaparecimento repentino de parte dele!
– Também acredito que isso não seja possível, Bethe. Agora temos que ligar para um guincho vir buscar o carro, ou o que sobrou. Ele ... Isso não pode ficar aqui atrapalhando o fluxo de veículos e “jajá” a mídia chega para saber o que aconteceu. Eles estão cobrindo a corrida que vai acontecer ali do outro lado e dali para cá não são nem dez minutos.
Ao ouvir isso, Dona Ester começou a descer a colina de volta no sentido da trilha que levava até a passarela para poder chegar ao ponto de ônibus. Trabalhou a noite inteira e não estava certa de que ouviu bem a conversa. Como o tal Claudio mesmo disse a mídia logo estaria ali e ela poderia ver a reportagem mais tarde pela TV.
Sem nem olhar para o rio, ela passou pelo alojamento. Eram cerca de dez minutos andando até chegar ao ponto de ônibus e mais um bom tempo até que o transporte passasse, pois já havia começado a se formar uma fila de carros atrás de onde aconteceu o acidente. Os que passavam pelo local reduziam a velocidade para poder olhar o que estava acontecendo.
– Logo, hoje que eu queria descansar para chegar inteira amanhã no gabinete do seu prefeito. — Disse ela para si. — Bom, espero que o ônibus não demore muito. Ai meu senhor! Ainda tenho que passar no mercado e pegar algumas coisas que estão faltando para dentro de casa. – E continuou andando até chegar perto de muitas árvores que nunca estiveram ali!
"Será que o Seu Fábio mandou plantá-las para a ponte ficar mais charmosa?" – Pensou. – "Bem que ele podia ter me falado, assim eu ia pelo outro lado. Agora que já “tô” perto da passarela não vou voltar tudo isso! Vou é dar a volta nessas árvores! Vai que tem algum bicho ali no meio delas!"
Foi descendo sentido as margens e se deu conta que não sentia o cheiro forte e fedido do rio, só sentia cheiro de flores e um doce aroma de água fresca. Levantou a cabeça e...
– Ahh! Valei-me Deus! O que aconteceu aqui?! – Gritou arregalando os olhos e colocando as mãos na boca.
O rio estava limpo.
Foi até a água e pode ver muito lixo no fundo.
– Como isso é possível? Será que com a ponte eles também limparam o rio? Não! O rapaz na TV havia falado que ele estava poluído! – Disse com as mãos na cintura ainda de olhos arregalados.
Tirou as sandálias de couro que vestia, segurou em um dos galhos das árvores misteriosas e colocou um pé na água. Que sensação maravilhosa. Estava em uma temperatura muito agradável e limpa. Levantou a saia rosa e branca e começou a descer para o rio. Iria pelo menos aproveitar aquele momento antes que as águas voltassem a ser poluídas novamente.
Ouviu uma risada agradável vinda da sua direita. Ela olhou apressada e viu um bebê negro, nu, de olhos verdes como as folhas das arvores e com o pé direito batendo na água do rio. Estava envolvido por uma raiz e parecia se divertir com a brincadeira.
– Olá?! Tem mais alguém aí? – Disse ela olhando na direção do arvoredo. – Não ouviu nada além das risadas gostosas de um bebê alegre. – Como é que você veio parar aqui? – Perguntou indo em direção à criança. -----------------------------------------------------------
Dona Ester olhou para as árvores, para o bebê, para o rio limpo e de novo para o bebê. Lembrou-se do que o homem de camisa florida tinha dito lá na avenida "Coisa preta apareceu do nada e parecia que um bebê tinha saído de dentro dela". Será que ele falava dessa criança? Procuraria a resposta depois. Agora tinha que cobrir o bebê com alguma coisa para que ele não ficasse doente. Abriu a bolsa, pegou uma manta rosa e de lã, feita por ela e que sempre carregava com sigo, pois sentia muito frio à noite. Olhou para o bebê e esse esticou os braços para ela com um largo sorriso. Ela o pegou em seus braços e o cobriu com a manta após sair da água.
– Olá, pequenino. Qual o seu nome?
O bebê olhou para ela e sorriu gostosamente com a boca banguela. Emocionada, ela deixou cair uma lágrima e o abraçou. Teria que inventar alguma desculpa para as vizinhas intrometidas, pois quando elas soubessem do menino iriam querer saber sua origem e o motivo de ela estar cuidando dele.
Começou a andar por entre as árvores e notou a estranheza em suas folhas. Tinham um formato triangular e suas pontas eram douradas. Nunca tinha visto árvores como aquelas. Não tinham flores, mas a beleza de suas folhas já eram o suficiente. Era ainda mais lindo quando o vento batia nelas fazendo-as dançar.
Olhou ao redor e viu uma única mudinha. Abaixou para pega-la, colocou dentro de sua bolsa e continuou sua caminhada até o ponto de ônibus.
Subir as escadas da passarela nunca foi um desafio para ela. Agora com uma criança no colo parecia que o topo nunca chegava, mas Dona Ester era forte e fez a subida sem titubear. Atravessou a ponte e foi para o ponto esperar o coletivo da linha Terminal Capelinha que não demorou nem dois minutos para passar.
O trajeto foi rápido e em menos de vinte minutos já estava no Terminal. Lá dentro pegou a linha Jardim São Bento Novo e foram mais dez minutos de trajeto até passar pela igreja católica São José Operário no centro do Capão Redondo.
Deu o sinal, esperou o ônibus parar no ponto, levantou-se e desceu do coletivo ainda com o bebê no colo. Começou a descer a Rua Henrique San Mindlin com comércios espalhados por toda sua extensão. Atravessou a rua em frente ao açougue, passou por cima da ponte para atravessar o estreito córrego e reparou que ele também estava com as águas limpas, não tão limpas quanto o Rio Pinheiros, pois continuavam a jorrar nele muitos litros de água poluída que vinham dos esgotos. Logo o córrego estaria sujo novamente e o rio onde ele desaguava também.
– Bem que eu podia ter ficado e curtido as águas um pouco mais, não é mesmo meu lindo?
Mais uma vez o bebê apenas sorriu transmitindo paz e felicidade para ela que virou na rua Damasco e entrou no número doze.
Dentro de sua casa era tudo muito simples. Na sala tinha um sofá surrado e forrado com uma capa marrom, uma mesinha de centro em cima de um tapete laranja e redondo, a televisão e o som ficavam em uma estante de madeira junto das fotos de parentes, suas e de sua sobrinha e muitas peças de vidro. Apesar de pequena, a casa era bem aconchegante. Colocou a bolsa em cima do sofá, foi até seu quarto, sentou-se na cama ainda arrumada começou a cantar:
– Nana, neném, que a cuca vai pegar, papai foi pra roça, mamãe foi trabalhar. — Não precisou repetir muito e o bebê já caíra no sono. – Foi uma manhã muito cansativa, não foi pequeno? – Disse dando um beijo no pequeno rosto dele.
Colocou-o na cama, arrumou os travesseiros em volta dele para que não se mexesse tanto. Separou seu celular e o cartão de créditos, pegou uma camisa, uma bermuda e uma toalha e foi tomar um banho. Debaixo do chuveiro começou a pensar em voz alta.
– Agora, tenho que comprar um berço, mamadeira, chupetas, fraldas, papinhas, leite... Oh meu Deus! Como vou conseguir dinheiro para tudo isso? – Fechou os olhos com a água caindo por cima de sua cabeça. – Não seria melhor entregar o bebê para as autoridades? Não! Eu vou cuidar dele. Sempre consegui me virar. Eu o encontrei. Talvez, Deus queira que eu cuide dele, por isso o colocou no meu caminho.
Fechou o chuveiro, se secou e colocou a roupa. Enrolou a toalha rosa nos cabelos molhados. Foi até o quarto e o bebê ainda dormia seu sono profundo. Pegou o celular e discou o número, chamou apenas duas vezes e já foi atendida.
– Bom dia, Dinda! Sua benção!
– Deus te abençoe, Camila. Onde a senhoria está?
– Eu estou aqui na Martinha. A senhora já chegou em casa?
– Já sim, preciso que você venha pra cá agora, pois quero que vá ali para mim enquanto arrumo algumas coisas. Tem que ser rápido!
– Já estou indo, Dinda. Só vou esperar a Martinha terminar de se arrumar e logo estarei aí.
– Não, Camila. A Martinha não pode vir, tem que ser só você. E logo! Já era para estar aqui.
–Tá bem! Tá bem. Estou indo.
A ligação foi encerrada. Ela colocou celular em cima do criado mudo ao lado da cama e foi para a cozinha. Pegou uma chaleira, encheu com água, acendeu o fogão e a colocou para ferver. Arrumou o coador de papel dentro do passador, colocou em cima da garrafa de café, colocou pó, ligou a pequena televisão de tubo que tinha na cozinha, sentou-se na cadeira de madeira e apoiou os cotovelos sobre a mesa. A notícia não poderia ser outra.
"Todos estamos muito assustados, porém muito felizes, Renata. Os competidores desistiram de correr e estão todos se banhando no rio, pois não sabemos até quando essas águas vão ficar limpas"
"É realmente um milagre, só consigo dizer isso! O rio ficar limpo de uma hora para outra! Não tem explicação. Eu não tenho palavras para descrever o que estou sentindo nesse momento. É um misto de medo com felicidade. O que as pessoas estão comentando a respeito, Luiz?"
"Elas estão alvoroçadas! A opinião geral aqui é única: as autoridades têm que fazer alguma coisa e rápido sobre as tubulações que trazem os dejetos para o rio, pois, se isso não acontecer depressa, logo, logo ele estará poluído novamente."
"Isso é verdade, parece que os resíduos estão se misturando de pressa às águas limpas. O prefeito está em viagem, mas as fontes informam que ele cancelou todos os compromissos que tinha na África do Sul e já está em um avião voltando para o Brasil. O governo tem que se mobilizar rápido. Parece-me que do outro lado da Marginal Pinheiros aconteceu um acidente, isso é verdade, Luiz?!
"Nós estamos indo para lá nesse momento, Renata. Vamos apurar todos os acontecimentos. Estão dizendo que apareceram algumas árvores próximas ao acidente. Em instantes volto com vocês aí no estúdio para passar todas as informações. É com você, Renata"
Dona Ester que estava colocando a água no coador logo correu para a sala e pegou a muda da árvore que estava em sua bolsa, foi até a parte de traz da casa e colocou um pouco de terra, que tinha num saco, dentro de um vaso preto que estava desocupado e plantou a pequena árvore. Pegou o regador, encheu com água do tanque e despejou sobre ela. Tinham apenas três folhas, mas eram lindas mesmo tão pequenas. Colocou o vaso em cima de uma bancada onde pudesse pegar sol e ouviu o barulho da porta se abrindo.
– Dinda! Cheguei. O que é de tão importante que a senhora precisa falar comigo? Viu o noticiário? Parece que o rio Pinheiros ficou limpo de repente! Dinda?
– Estou aqui, Camila. O noticiário? Eu vi o rio limpo de perto e ainda coloquei os pés nele. É mesmo um milagre! Mas não é sobre isso que quero falar com você agora! Venha comigo. – As duas atravessaram a cozinha e entraram no quarto de Ester.
– De quem é essa gostosura, Dinda? – Perguntou Camila chegando mais perto da cama.
– Eu o encontrei na beira do Rio Pinheiros hoje cedo enquanto molhava os pés. – Disse ela se aproximando da sobrinha.
– E o que pretende fazer? Vai ficar com ele? – Perguntou olhando espantada para a tia.
– Não é "vai ficar com ele" e sim "vou cuidar dele!" Vou criar esse menino como um membro da família.
– Oooownt! E qual o nome dele?
– Eu ainda não pensei nisso. O que você acha?
– Hummm! Deixe-me ver! – Disse ela se aproximando mais do bebê. – Renato? Anderson? Fernando? Gabriel?
– Gostei de Gabriel.
–Ai! Eu também. Achei a cara dele.
– Então está decidido. Amanhã, temos que ir ao cartório para registrá-lo. Agora você vai ali na loja de móveis e compra um berço. Simples viu! Só para ter um lugar pra ele dormir com segurança, diz para eles que não precisa entregar, vou pedir para o Seu Valter ir buscar. — Disse pegando o cartão de credito e entregando para Camila.
– Está bom, Dinda. Só isso que a senhora quer? – Perguntou a garota estendendo a mão para pegar o cartão.
– Não! Depois tu vais até a loja de bebês que tem de frente e compra quatro lençóis, dois travesseiros, dois cobertores, algumas roupinhas, cinco pacotes de fraldas tamanho "M", dois sapatinhos de pano, duas mamadeiras, duas chupetas, um chocalho e duas latas de leite em pó para recém-nascido e deixa tudo lá. Quando o Seu Valter for buscar o berço vou pedir ele pega essas coisas também. Traga só um pacote de fraldas, um travesseiro, um cobertor, uma mamadeira, uma chupeta, uma muda de roupas e uma lata de leite. – E saíram do quarto apagando a luz.
Camila era uma menina de quinze anos, magra, com o rosto fino e cabelos castanhos que chegavam perto da cintura. Usava um macacão vermelho por cima de uma camisa branca e sapato rosa. Anotou tudo no bloco de notas do celular, deu um beijo no rosto do pequeno Gabriel e saiu sem bater a porta. Dona Ester deu ouvidos ao que a televisão na cozinha dizia.
"Estamos aqui com Elisabeth, Dona do carro que perdeu parte da frente de uma forma misteriosa. Como foi que ele ficou assim?" – E o repórter apontou o microfone para a mulher poder falar com Claudio ao seu lado.
"Não sei como explicar. Estava dirigindo normalmente quando do nada apareceu uma coisa grande e escura na minha frente. Automaticamente eu pisei no freio, mas não fui rápida o bastante. Tão depressa quanto apareceu, a coisa sumiu!"
"É! E algo saiu lá de dentro! Posso jurar que foi um bebê. A coisa desapareceu e levou a parte da frente do carro e dos sapatos da Bethe aqui. – Disse Claudio parecendo se divertir com a situação"
“Você disse ter visto um bebê sair voando?" – Perguntou Luiz incrédulo.
"Isso mesmo! Ele foi em direção daquelas árvores secas ali em baixo, perto do rio."
"Hoje o dia está totalmente maluco, Renata! Esses civis, Cláudio e Elisabethe, dizem ter visto algo aparecer e levar a parte da frente do carro embora. E mais! Viram um bebê saindo de dentro dela e indo parar nas margens do Rio Pinheiros que agora está despoluído. Será que esses acontecimentos têm alguma relação entre si? Nós vamos até as árvores secas ver se encontramos algo e já voltamos com vocês aí do estúdio, Renata."
"Parece que as novidades não param de surgir nesse dia em! E você ai de casa, qual sua opinião sobre esses acontecimentos? Mandem seu comentário para #riolimposp, tudo junto. Aqui temos o comentário da telespectadora Caetana do Jardim Romano que diz: “Aqui perto o rio também está limpo. Alguma coisa tem que ser feita o mais depressa possível, pois as tubulações de esgotos continuam a cair nele”. Obrigado pela participação. Nós entramos em contato com o ministro do meio ambiente, Geraldo Limões, e ele nos disse que está vindo para São Paulo ver o que deve ser feito juntamente com o governador Matias de Moraes.“
“Eles têm que encontrar alguma solução rápida. Sabemos que não é tão simples. Mas se faz necessário agir imediatamente!”
O que será que houve com as árvores para elas terem secado? Vamos voltar com o nosso repórter para ver se ele tem mais informações. Quais as novidades, Luiz?" – Perguntou a apresentadora.
"Renata! Esse dia não para de ficar esquisito. O tronco dessas árvores tem um tom azulado que eu nunca vi em nenhuma antes. Não sou um assíduo conhecedor de botânica, mas acho que em São Paulo não existem plantas assim. Olhando bem para o solo parece que elas cresceram aqui repentinamente, Veja só como a terra está fofa e espalhada. Muito estranho!" – O câmera deu um zoom no solo e foi subindo a imagem pelo tronco da árvore até chegar à copa. – "Aqui." – continuou o repórter – " Tem um rastro como se alguma coisa tivesse sido arrastada. Ele para bem próximo da água, mas não tem nenhum bebê por aqui! Talvez tenha desaparecido subitamente como apareceu! Renata!"
Dona Ester tomou café da manhã com pão do dia anterior e margarina, lavou a louça que sujou e foi ver como estava Gabriel que ainda dormia seu sono profundo. Ela deu um beijo no garoto, pegou o telefone que estava ao lado da cama no criado mudo e ligou para Seu Valter.
– Bom dia, Ester. Como a senhora está? – A voz que parecia a de um senhor de idade saiu do celular.
– Estou bem, graças a Deus, Seu Valter! O Senhor tem algum serviço pra fazer hoje? Na realidade eu precisava que fizesse um carreto urgente pra mim. É possível?
– É possível sim, Ester. O que manda?
– Gostaria que fosse ali à loja de móveis e depois na loja de bebês na frente dela para pegar algumas coisas que comprei. Quanto fica?
– Fica vinte reais. A Camila está grávida?
– Vire essa boca pra lá homem. Não, não! Uma parente minha não pode cuidar da criança e eu disse que ela pode deixar comigo. Só isso.
– Ah! Tudo bem. Posso ir agora buscar as encomendas?
– Eu vou ligar para a Camila e ver se ela já comprou tudo e já envio uma mensagem para o senhor. Tudo bem?
– Perfeito. Estou no aguardo da mensagem.
– Ah! Seu Valter. Peço, encarecidamente, que o senhor seja muito discreto. Sabe como o povo daqui é.
– Pode deixar que vou cobrir as mercadorias em cima da "kombosa".
– Obrigado, Seu Valter. Até mais ver. – E desligou o telefone no mesmo momento em que a porta da sala se abriu.
– Dinda. – Era Camila – Cheguei. Comprei umas roupinhas lindas para o Gabriel. Olha só para esse macacãozinho, Dindaaaa!
Passaram o dia todo mimando o bebê que era todo sorrisos para suas mais novas amigas e cuidadoras. Banho com sabonete e shampoo infantil que encheu a casa com o delicioso aroma de neném, troca de fraldas, mamadeira com leite quentinho. Entre uma atividade e outra o garoto sempre tirava um cochilo em seu berço novo em folha que Valter colocou em um canto do quarto de Dona Ester.
O dia passou rápido e o noticiário em todos os canais da tv e do rádio passavam a mesma coisa, O tal sumiço súbito de uma parte de um carro, as árvores misteriosas que morreram tão rápido quanto apareceram e principalmente o rio limpo. Todos se perguntavam como tudo aconteceu e faziam rodas de debate discutindo a melhor forma de o governo agir.
– Por três dias, Camila e eu procuramos em jornais, internet e noticiários da tv por famílias que tivessem perdido um bebê com suas características, mas não encontramos. Por isso hoje você é um Sousa e Silva. – Disse Ester levantando e dando um beijo na testa do filho. – Agora vá cortar esse cabelo.
INVESTIDA INESPERADA.
Era muita informação para um dia. O amor e respeito que sentia por sua mãe só aumentaram. O fato de ela não ter lhe contado antes não mudava nada, mostrava o quanto ela se importava com a felicidade dele.
Tinha que compartilhar aquilo com mais alguém. Com certeza Nicolas, seu melhor amigo, acharia uma loucura e daria boas gargalhadas dele quando contasse, mas tinha que ter outra visão das coisas e encontrar respostas para as caraminholas que o Saci e o Boto deixaram em sua cabeça. Só encontraria o amigo à noite e, com a casa cheia de pessoas querendo a sua atenção, ficaria difícil conversar com ele hoje, teria que esperar até amanhã.
O Banho demorou mais que o normal e Gabriel só se deu conta do tempo quando sua mãe bateu na porta do banheiro dizendo que já eram quase cinco da tarde e ele se atrasaria para cortar o cabelo.
Ele se trocou rapidamente colocando uma camisa com listras na horizontal em verde, branco e vermelho, uma bermuda preta e seu chinelo também preto. Pegou as chaves ao lado do bonsai passando a mão em algumas folhas da pequena árvore e foi para a cozinha.
– “Tô” indo, mãe. – Disse Gabriel passando pela cozinha.
– Vai com Deus, meu filho! – Disse Ester colocando no forno do fogão uma forma de vidro com lasanha para assar.
Ele passou pelo quintal e Thorto continuava melindrado dentro de sua casinha. Sabia que tinha que fazer algo para animar seu cachorro e no caminho pensaria em algo.
Já na rua, ele preferiu não ir pela Rua A e sim pela Avenida Comendador Sant’Anna que era a principal. Não queria tropeçar em outro ser folclórico perdido pelo Capão Redondo.
A avenida principal era cercada de comércios. Bancos, padarias, sex shop, farmácias, mas a maioria eram lojas de roupas. Gabriel parou em na frente da vitrine de uma das lojas e namorou algumas peças de roupas.
– Tenho que comprar uma blusa antes do frio chegar. Vou aproveitar que é verão e as roupas de frio devem estar mais baratas. – Disse ele com a mão no queijo enquanto apreciava uma blusa do Palmeiras que era seu time do coração.
Continuou andando para chegar no salão. Apesar do horário, o sol ainda brilhava forte. Passou pelo AMA do bairro e pela escola Cel. Mário Rangel – Ficava um de frente ao outro. –, onde estudou no ensino fundamental.
Enfim chegou no salão de cabelereiro, entrou e no local havia um rapaz branco, mas bem bronzeado, com uma barba de lenhador e cabelos castanhos liso e bem penteado com um discreto topete que mexia no smartphone e sentado no sofá que ficava encostado na parede ao lado de um filtro de água. Vestia uma bermuda com muitas rosas de diversas cores, uma camisa preta e chinelos brancos.
– E aí, Biel. Chegou cedo! Vai cortar agora? – Disse Pepeu, o cabelereiro, dando um susto no garoto, pois entrou depois dele.
– “Carai”, Pepeu! Assim “tu” me mata de susto, cara! – Disse Gabriel se virando e olhando para o rapaz que era negro e careca, com um metro e sessenta de altura. Vestia uma calça jeans azul, camisa branca e tênis preto. O rapaz que estava no sofá nem deu atenção.
– “Tá” abalado? Ha ha ha! Foi mal, cara. Senta aí. – Disse Pepeu apontando para uma das cadeiras vazias.
O salão tinha cerca de vinte metros quadrados, era aconchegante. Além do sofá havia três cadeiras de cabelereiro, cada uma com um espelho redondo na frente que terminavam em uma bancada branca com duas gavetas. As paredes eram pintadas de preto e forradas de diversos quadros vintage como a Marilyn Monroe, Janis Joplin, The Beatles, Cassia Eller, Elvis, Milton Nascimento, Os Mutantes, entre muitos outros. O quadro que Gabriel mais gostava era a de uma Kombi azul clara com detalhes brancos que, aparentemente, corria na areia da praia com o mar e o pôr do sol em destaque. Passava uma sensação de liberdade.
– Como vai ser, Biel? – Perguntou Pepeu colocando uma capa vermelha por sobre o garoto após ele ter se sentado.
– Eu quero um Back Undercut, mas bem social nas laterais.
– Vai fazer uns dreads depois?
– Ainda não sei, por hora só o corte mesmo.
– Beleza! – Disse Pepeu pegando e ligando a maquininha de cortar cabelo. – E seu Palmeiras, em!?
– Ah! Está bem! Ganhou a “Copa Mickey” no começo do ano, agora é líder da chave no Paulista, vamos ver como vai ser o resto do ano.
– O Corinthians disputou toas as Floridas Cup’s e não ganhou nenhuma, o Palmeiras disputou a primeira e foi campeão. Ha ha! – Disse Pepeu cortando o cabelo sem perder a concentração.
– A competição só vai durar até o Corinthians ser campeão, depois não vai mais ser disputada. – Disse Gabriel gargalhando junto de seu cabelereiro. O rapaz que estava sentado no sofá apenas sorriu sem dar muita importância na conversa dos dois.
Mesmo com toda a conversa de barbearia, Gabriel não conseguia tirar da cabeça o acontecimento de algumas horas atrás, e a história que sua mãe contou sobre o dia em que o encontrou também o incomodava. Será que encontraria outros seres do folclore Sul Americano por aí? Será que teria alguma explicação para aquilo tudo? Ou será que ainda estava dormindo e tudo era só um sonho?
Não tinha respostas para as suas perguntas, só sabia que, meia hora depois, seu corte de cabelo estava pronto.
– E aí! O que achou? – Perguntou o cabelereiro sorrindo e mostrando a parte de trás do corte com um espelho nas mãos. OOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO
– Ficou show! – Disse Gabriel olhando o reflexo de sua cabeça pelo espelho da frente.
Pepeu ligou o secador de cabelo que ficava ao lado de uma das bancadas e passou pela capa que estava sobre o garoto tirando os cabelos cortados.
– Prontinho! – Disse ele tirando a capa de cima do garoto.
– Quanto ficou? – Perguntou Gabriel colocando a mão no bolso de trás da bermuda e tirando a carteira.
– Trinta reais.
O garoto deu uma nota de dez e uma de vinte e se despediu dos rapazes e saiu do local.
Começou a fazer o caminho de volta para casa pensando em passar na floricultura e comprar alguns itens para a manutenção de seu bonsai.
Andou por cinco minutos pela movimentada avenida Comendador Sant’Anna, e chegou na frente da floricultura. O local o deixava fascinado. Sempre gostou muito do reino vegetal. Muitas vezes, em seu tempo vago, passava horas pesquisando sobre as plantas estranhas, sua preferida era a welwítschia mirabilis, conhecida na região do deserto do Namibe, na África, como onyanga ou cebola do deserto. Uma planta que resiste até cinco anos sem chuva, pode chegar até dois metros de altura e oito metros de comprimento, vive entre quatrocentos e mil e quinhentos anos, uma das plantas mais resistentes do mundo. Era isso que o cativava, a força de vontade de continuar vivendo mesmo em um ambiente tão escasso.
A entrada da loja era repleta de flores. Samambaias, rosas, trepadeiras, tulipas e girassóis eram algumas das plantas que davam cores ao local. Gabriel estava para entrar no estabelecimento quando algo o fez parar.
– Ei, Biel! Como você está amigão? – Disse Cáulon saindo da floricultura sem ter comprado nada. Era a última pessoa que ele queria ver naquele momento e em qualquer outro momento.
– Opa, Cáulon! Estou bem. Meio que com pressa. – Gabriel cumprimentou o garoto e voltou ao seu percurso passando pelo rapaz.
– Soube que hoje é seu aniversário, mano! Parabéns. – Insistiu Cáulon, tentando ter a atenção do inimigo de infância.
– É sim, cara. E por isso estou com um pouco de pressa. Ainda tenho muito que fazer antes da festa.
– Que legal cara! Pode não ser um momento bem propicio para isso, mas a gente poderia deixar o passado para trás e tentar ser amigos. Você é um cara legal e eu sempre fui meio infantil com minhas brincadeiras inocentes.
Gabriel sorriu de leve, mas era um sorriso de nervoso. Não podia acreditar na cara de pau de Cáulon que fez de tudo para irritá-lo por quase duas décadas e agora vem com esse papo torto.
– Ha! Claro que é inocente colar goma de mascar no cabelo das pessoas ou tacar ovo podre quando a pessoa acaba de se aprontar para ir a escola ou até mesmo espalhar uma estória de que a pessoa tem uma doença altamente contagiosa que se pega pelo ar quando essa pessoa está resfriada. – Ironizou Gabriel se virando e olhando nos olhos negros de Cáulon. – Também acho isso tudo muito irônico.
Cáulon era banco, tinha cerca de um metro e setenta e cinco de altura. Seus cabelos claros, em dreads, castanhos iam até a cintura, mas esses estavam enrolados em um grande coque no topo da cabeça. Tinha uma barba rala e por fazer. Tinha uma cicatriz que ia do grande nariz até a parte de baixo da orelha direita onde tinha um alargador de 5 milímetros e dois brincos de argola pequenos. Sua boca rosada se destacava com o contorno da barba. Usava um camisão preto e folgado que ia até metade da coxa, uma calça bag azul escuro e uma bota de trilha marrom.
– Isso é coisa do passado, vamos esquecer essas nossas pequenas intrigas de infância. – Disse Cáulon colocando o braço esquerdo por cima dos ombros de Gabriel e abrindo um largo sorriso. – Pense nos rolês que podemos fazer juntos, no seu status na escola que deve crescer andando com a gente, por que cá entre nós, aquele seu grupinho com Nicolas, Fernanda, Joana e os outros, é bem caidinho.
– Obrigado pela oferta, mas estou ótimo com as amizades que tenho. São amizades verdadeiras que não tem necessidade de troca ou vaidade para ser o melhor em nada. – Disse Gabriel saindo do abraço. – Não quero ser arrogante, mas se tem uma coisa que eu não quero é ser seu amigo.
– Quer saber de uma coisa?! Eu também não tenho a menor intenção de ser seu amigo. Só vim aqui fazer esse papelzinho de bom samaritano por quê me pediram, e eu discordei veementemente. Nunca quis um frouxo como você de aliado. – Disse Cáulon ficando sério e com o rosto sombrio.
– E quem “pediram” para você vir falar comigo? – Perguntou Gabriel perplexo com a revelação.
– Isso não interessa. Eu te dei a chance de estar do lado certo, do lado que sem dúvida vai ganhar. Saci, Curupira, Boto... Esses caras não tem a menor chance contra Piatã, um dos cinco filhos de Céu e Sol! Se você não vier por bem, vai perder feio e fará exatamente o que Piatã quer!
– Como você sabe de tudo isso? Quem é você? Quem é Piatã? O que tudo isso quer dizer? Onde... – Gabriel começou a fazer as perguntas, mas ficou ainda mais surpreso ao ver o rapaz desaparecer na sua frente, deixando para trás apenas uma leve fumaça roxa enquanto ele ficou falando sozinho.
Aquele sem dúvidas estava sendo o dia mais louco de sua vida! Primeiro o encontro com o Lobisomem, o Saci e com o Boto – sem contar o gigantesco tentáculo de polvo que saiu de dentro do córrego –, e agora Cáulon, que parecia saber muito sobre o que os seres folclóricos, o deixou mais inteigado.
Ficou olhando a fumaça se dissipar e depois de dois segundos deu de ombros. Afinal, até aquela tarde ele não sabia de nada e em menos de três horas muitas coisas aconteceram. Se ele é mesmo tão importante, mais cedo ou mais tarde alguma outra coisa iria acontecer. Só tinha que ser cauteloso e atento aos detalhes.
A floricultura tinha uma porta de vidro com sensor de movimento que abria quando alguém se aproximava. Ali dentro estava bem fresco pelo uso do ar condicionado. Na loja de cinquenta metros quadrados havia dezenas de prateleiras de madeira com flores diversificadas que formavam corredores coloridos e cheio de vida. Na esquerda da entrada ficava o balcão de atendimento seguido por diversos armários antigos de madeira que iam até uma porta de ferro nos fundos.
– Boa tarde. Posso ajudar? – Disse uma voz já conhecida por ele.
– Boa tarde, Kika! Tudo bem? Não sabia que você estava trabalhando aqui. – Gabriel, que antes acariciava as pétalas de uma tulipa amarela, se virou rapidamente e seu braço direito bateu e derrubou um vazo de barro e, por reflexo, ele o pegou evitando que o objeto atingisse o chão.
– É! Eu comecei a trabalhar aqui no mês passado. Veio comprar uma rosa para alguém, Biel?
– Que nada, É... você sabe. Não tenho namorada! Eu vim comprar akadama, pedra-pomes e rocha de lava para o meu bonsai. – Gabriel sorriu e sentiu seu rosto esquentar. Aos dezessete anos e tudo o que tinha conseguido até ali com uma garota foi um selinho da Dona Odete quando tinha quatorze anos. Na ocasião ele jogava futebol na rua com alguns amigos e ao correr para pegar a bola, em um lançamento, ele tropeçou no meio fio e caiu em cima da mulher que estava sentada em uma cadeira na calçada e seus lábios se encontraram, deixando Dona Odete com o rosto vermelho de vergonha enquanto o ar se enchia com a risada de dezenas de pessoas que estavam presentes.
– Sei sim! E as garotas estão deixando um partidão livre por aí! He! He! He! – Ela ficou um pouco corada com o comentário e arrumou os longos cabelos castanhos para trás da orelha sem brinco, mostrando na mão direita a aliança de namoro. Seus olhos castanhos estavam fundos e pareciam um pouco chorosos. Gabriel pensou em perguntar sobre o que a afligia, mas não queria ser invasivo.
Ele tinha uma forte queda por Fernanda (Kika). Era branca, tinha um metro e sessenta e quatro de altura e uma pinta a cima de seus lábios rosados os deixava ainda mais atraentes. As sobrancelhas bem aparadas não eram nem finas e nem grossas. Usava uma camisa rosa e uma calça jeans azul clara por baixo do avental verde que ia até os joelhos com os dizeres “Floricultura da Vovó – O Aroma de ontem” e usava um tênis branco. Aos olhos dele a garota era linda, mas não era isso que o atraia. Talvez fosse a simplicidade ou a voz irritantemente fina, porém firme, ou seu jeito de sorrir que deixa a mostra suas covinhas nas bochechas pouco cheias ou talvez fosse seu jeito de menina-mulher. Ele não sabia o que era, mas qualquer que fosse o motivo não podia fazer nada pois a garota era comprometida.
– Estou esperando a pessoa certa aparecer, sabe! – Disse ele ficando ainda mais acanhado e olhando para os lados.
– Ela será muito sortuda. É... Akadama, não é? – Fernanda mudou de assunto e Gabriel ficou agradecido. Se seu rosto ficasse mais quente ele tinha certeza de que mataria algumas plantas com o calor.
– Fernannndaaa! Eu preciso que você... Hum! Olá, em que posso ajudar? — Uma garota negra com os cabelos ruivos saiu da porta de ferro nos fundos da loja e foi até o local em que eles estavam. Ela também usava um avental do estabelecimento que era maior que o vestido preto que usava por baixo. E nos pés tinha um par de sandálias vermelho. – Prazer, Jéssica! – E estendeu a mão direita para que Gabriel a cumprimentasse no momento em que o telefone de Fernanda tocou.
– Desculpas. Tenho que atender. A Jessica pode te ajudar, Biel. Nos vemos mais tarde na sua festa. – Disse Fernanda indo para os fundos da loja olhando para o celular e deixando os dois a sós.
– Ela está bem? – Perguntou Gabriel acompanhando a garota com os olhos.
– Ahh! É só uma briguinha inocente com o namorado! Logo eles se resolvem. – Jessica falou e balançou os braços no ar num gesto de desdém. – Então... Biel, né?
– Ã? – O garoto ainda olhava para Fernanda e não prestou atenção na pergunta.
– Seu apelido! É Biel, não é? A não ser que seja seu nome.
– Ah! É só apelido mesmo, diminutivo de Gabriel, mas pode me chamar de Biel, mesmo.
– Muito prazer! E pode ser ainda maior. – Ele olhou para a Jessica e essa estava mordendo o canto do lábio inferior enquanto o olhava de cima a baixo e parou em seus olhos. – Em que posso ser útil?
– Eu quero dois quilos de akadama, um saco pequeno de pedra-pomes e rocha de lava. – Gabriel olhava para as flores nas prateleiras atrás do balcão enquanto Jessica pegava os itens de seu pedido em seus respectivos armários.
– Aqui está. Seu bonsai tem sorte de ser cuidado por alguém tão dedicado. – A garota falava em um tom sedutor.
– É um tipo especial e precisa de bastante atenção. Quanto ficou?
– Cinquenta e oito reais.
– Aceita débito?
– Aceito sim.
– Aqui. – Gabriel tirou o cartão de sua carteira e o entregou a garota que o colocou na maquininha, digitou as funções e o valor da mercadoria e a deu para ele, que digitou a senha e devolveu.
– Quer sua via?
– Por favor.
Ela imprimiu o recibo na máquina, pegou um talão de nota fiscal e o preencheu. Depois pegou um post-it e escreveu alguns números.
– Aqui está sua nota fiscal, seu cartão, sua via, suas mercadorias e meu número. Me chama no Whats. – E entregou tudo para ele dando uma piscadela com o olho direito.
– Ah! Pode deixar que vou chamar, com certeza! – Disse ele pegando as coisas e sorrindo encabulado para a Jessica. – Então até mais.
– Até! Vou esperar ansiosa. Hi! Hi! Hi! – Disse ela empolgada.
Gabriel olhou para Fernanda que ainda estava no telefone, parecia apreensiva, mas se despediu acenando com a mão livre. Ele retribuiu o gesto e saiu da loja pela porta automática.
– Esse dia está mesmo muito insano. Aquela batalha bizarra há algumas horas atrás, o Cáulon desaparecer na fumaça “pique” ninja e agora uma garota me passa seu número de telefone sem eu ter que implorar? Ainda acho que é um sonho, mas vou até o fim só pra ver o resultado. – Ao sair da loja Gabriel falou mais alto do que pensava, enquanto seguia pela calçada a caminho de sua casa.
– O resultado da mega, Biel? Só se acertou na quina ou na quadra por que a sena acumulou, aquela “muléstia”! – Falou uma voz masculina com sotaque baiano, dando um susto em Gabriel.
– “Carai”! Ivan. Assim você me mata! – Disse ele olhando para o lado enquanto o amigo se igualava aos seus passos.
– Tá abalado, Biel? O cabelo ficou show!
– Valeu! E aí. Beleza?
– De “boinha” nego. E “tu”?
– Tranquilo! Só passeando?
– Olha minha nova ferramenta que vai ser estreada hoje no seu aniversário! – Ivan mostrou o celular preto de última geração. – Minha mãe me deu. Pais recém-separados. Acho que meu pai vai me dar um carro para compensar.
– Ha ha ha! Muito bom! Mas guarda isso aí. Tá pensando que está na Suíça?
Ivan era um de seus amigos e a melhor pessoa que Gabriel conhecia. Tinha um grande coração e sempre estendia a mão há quem precisava. De longe, o mais engraçado da turma. Era branco, roqueiro assumido, tinha cabelos castanhos que iam até o meio das costas. Hoje usava uma camisa preta de uma banda de roque norte americana com o mascote morto-vivo estampado na frente, bermuda e tênis baixo pretos. Tinha o nariz fino e mediano, olhos cor de mel e usava um bigode ralo e castanho.
Eles foram juntos para a casa de Gabriel e Ivan o ajudou com suas sacolas.
Ester, que cumprimentou Ivan com um abraço apertado, gostava muito dele e dos outros. Todos tinham livre acesso à casa. Mesmo quando Gabriel não estava eles iam visita-la e ficavam horas papeando.
– O que há com o Thorto? Parecia tenso! – Perguntou Ivan enquanto colocava uma das sacolas por sobre a cama.
– Alguma coisa o assustou. – Disse Gabriel sem querer compartilhar o que havia acontecido algumas horas antes. Apesar de Ivan ser um grande amigo, talvez Nicolas o entendesse melhor.
– Ele nem veio pular em mim quando eu o cumprimentei. Achei meio estranho.
– Amanhã vou ver se compro uma ração mais gostosa pra ver se anima ele.
– Daquelas suculentas? Até eu vou querer! – Os dois riram gostosamente.
– Palhaço! Mudando de assunto. – Disse Gabriel colocando a sacola que carregava na cama enquanto Ivan puxava a poltrona preta pra frente da cama e se sentava. – Sabe aquela pretinha linda da floricultura em que a Kika está trabalhando?
– A Jessica?
– Isso! Ela me passou o número dela e disse para eu mandar um “zap”.
– O QUE?! – Ivan se colocou de pé com os olhos espantados. – Você não pode fazer isso Biel. Só faltam três anos e quinze dias para eu falar “oi” pra ela.
– Fala sério?
– Não, besta. Mas aí. O que você fez pra ela te dar o número? Deu uma daquelas cestas de café da manhã que vende na floricultura e fez uma serenata?
– Por incrível que pareça, eu só fui comprar essas coisas e na hora de pagar ela me passou o número sem mais nem menos. – Gabriel pegou uma tesoura de jardineiro pequena no guarda roupas e o vaso com o bonsai na mesa de jogos e foi saindo do quarto. – Traz as sacolas, por favor.
– Mentira, “véi”! Sabe quem está investindo ali e não consegue nada? O Cáulon! – Disse Ivan acompanhando o amigo com as sacolas.
– “Caraí”, mano! Por isso que ele estava saindo de mãos vazias da floricultura na hora em que eu estava entrando lá.
Os dois passaram pela sala e atravessaram a porta lateral da casa e caminharam até os fundos do terreno.
– É, cara! Desde que mudaram de funcionários que ele tem ido lá. Fiquei curioso! O Cáulon não gosta nem dele mesmo, vai cuidar de plantas? Até que o Roger, que é amigo dela, me contou. – Disse Ivan colocando os itens em cima de uma bancada de madeira.
– Um bom motivo pra eu chama-la para vir na minha festa.
– E você estava procurando um motivo? Se ela tivesse falado “oi” pra mim eu a pedia em casamento na hora! Já mandou mensagem?
– Ainda não. Acabei de pegar o número! – Gabriel colocou o bonsai sobre a bancada e pegou o celular e o número de Jessica, que estavam no bolso da bermuda, digitando e salvando o contato como “Jessica Floricultura” e abriu o aplicativo de mensagens. – O que eu mando?
– “Oi. Meu amigo Ivan, tá perguntando se você quer ficar com ele?” – Disse com um brilho nos olhos e um meio sorriso sacana.
– Ah! Claro! Vou mandar um oi e dizer que sou eu. – Disse digitando a mensagem e enviando.
– Tá certo, ela não vai perceber que é você na foto de perfil.
– Às vezes demora um pouco para a foto aparecer... – Quando seu celular vibrou. – Ela já respondeu.
– O que ela falou? O que ela falou? – Disse Ivan olhando o celular do amigo com o rosto quase em cima da tela.
– Ela mandou um “Oi gatinho. Pensei que não ia me mandar mensagem”. O que eu falo?
– Fala que foi a primeira coisa que você fez quando chegou em casa e pergunta se ela quer vir na sua festa.
Gabriel fez o que o amigo disse e logo teve resposta.
– Ela disse que vem sim, mas está sem dinheiro para o presente e perguntou se pode dar um beijo. – Disse Gabriel colocando o avental todo preto que ficava na gaveta da bancada.
– Ah! Moleque! Estourou! Pena que o Cáulon não vem na festa. Ele ia ficar puto de raiva! – Ivan foi atraído pela beleza da pequena árvore. – Que bonsai “dorinha”, Biel! Que planta é essa? – Perguntou ele enquanto Gabriel respondia a mensagem e mandava o endereço e horário para a garota comparecer em sua festa.
– Eu ganhei da minha mãe quando era criança. – Disse Gabriel enquanto estendia um saco plástico preto por cima da bancada. – Bem bonito né?
– Muito bonito! Porque pintou as pontas das folhas de dourado? – Ivan aproximou ainda mais seu rosto quadrado à planta. – E como eu nunca a vi antes?
– Não pintei as pontas, ela sempre foi assim. E, por coincidência, ela está tomando sol quando vocês veem aqui. Por isso nunca a viu. – Gabriel segurou com cuidado a planta pela base do caule e deu algumas batidas com a tesoura no vaso até que ficasse fácil de ser retirada. Depois tirou o que deu da terra que estava no emaranhado de raízes e as lavou, com a mangueira que Ivan foi correndo ligar no tanque, para tirar o excesso.
O processo era rápido, depois de limpar ele cortou parte das raízes com a tesoura de jardinagem, depois fez a mistura de .... Forrou o vazo com a mistura deixando um buraco no meio onde encaixou a planta e terminou de tampar o buraco com os produtos que comprou e terminou regando com um pouco de água e enfeitando o vazo com algumas pedras, cristais e grama sintética bem organizados. As pontas da copa foram aparadas e os dois garotos conversaram e deram boas risadas durante o fim da tarde.
Gabriel estava em seu quarto se arrumando para seu jantar de aniversário. Ivan já havia ido embora pois também ia se preparar para a festa que começará às vinte e duas horas. Enquanto colocava os , ele conseguiu ouvir algumas vozes e o movimento pela casa que indicava que o lugar começou a ficar movimentada.
– Dindaaaa! “Bença”! Como a senhora está? – Era a voz nasalada de Camila.
– Poderia estar melhor se você tivesse vindo me ajudar, mas estou bem, minha filha, e você? – Disse a sempre sincera Ester.
– Muita coisa para fazer, Dinda. Tive que ir comprar os materiais escolares da Flor, depois fui buscar o uniforme. A senhora tem que ver. É a coisa mais fofa. Depois vamos lá em casa pra eu te mostrar. – Camila parecia empolgada.
— Vamos sim! E você como está, Henrique? – perguntou Ester.
– Eu estou bem, Dona Ester! Graças a Deus. – Henrique, marido de Camila, tinha uma voz grave e Gabriel achava que não combinava nada com ele.
– E você, minha “pepekinha”. Vem aqui dar um abraço na titia.
– “Peekina” não! Eu sou o “culupia”. – Ali do quarto dava para ouvir o suavemente rouco tom de voz da pequena Maria Flor, filha de Camila.
– Oh! Você é o curupira? “Porcaliazinha”! Vem me dar um beijo e um abraço! – Disse Ester. – Hummm! Que delícia.
Gabriel estava arrumado. Colocou uma camisa polo branca, uma calça jeans azul e um tênis preto. Deu uma passada de mãos em seu novo corte de cabelo e olhou o celular. No Aplicativo havia uma nova mensagem de Jessica que dizia estar ansiosa seguida de uma foto mandando um beijo com seus lábios brilhosos. Logo a baixo, no grupo de amigos, mensagens de muitos dizendo que iam para o parque Ibirapuera no domingo e ele também confirmou sua presença.
– E cadê o... – Camila começou a dizer quando o garoto saia de seu quarto. – Ai está ele! O aniversariante. Parabéns, Biel! Muito amor, paz, saúde e sucesso! – Ela lhe deu um abraço. Camila era branca, trinta e um anos. Tinha um metro e sessenta de altura e magra. Usava um vestido tomara que caia rosa deixando seus ombros à mostra, uma sapatilha preta com um laço rosa. Seu rosto levemente arredondado não teria maquiagem não fosse o batom em rosa suave que coloria os finos lábios, seus grandes olhos negros contrastavam com as sobrancelhas bem-feitas, com seu pequeno nariz empinado e com os lisos cabelos pretos recém-pintados com luzes loiras.
– Obrigado, Cá! Como você está? – Disse ele após o abraço, segurando em suas mãos, olhando em seus olhos e sorrindo.
– Muito bem, obrigada. – Disse Camila retribuindo o sorriso.
– Parabéns, Biel! Muito amor, paz, garotas e tudo de bom na sua vida. – O cumprimentou Henrique apertando sua mão, o puxando para um abraço e batendo suavemente em suas costas. – Quero revanche daquela nossa partida da semana passada em! – Continuou se referindo a derrota massacrante que sofreu de cinco a zero no jogo de futebol disputada no videogame. Ele era negro, com trinta e quatro anos e com uma careca reluzente. Magro e com o rosto fino, tinha um largo sorriso que se sobressaia por debaixo de uma barba, no estilo lenhador, negra e cheia, porém bem aparada. Olhos cor de mel e pequenos com as sobrancelhas perfeitas. Usava uma camisa social lilás por dentro da calça jeans preta segura por um cinto social azul escuro, e nos pés um sapa tênis da mesma cor do cinto.
– Vai treinando que um dia você conseguirá fazer um gol em mim. Ha ha! – Disse Gabriel ouvindo a campainha tocar e em seguida o arrastar de pés vindos da cozinha anunciava que mais pessoas haviam chegado.
O corredor era comprido, mas um tanto apertado para as pessoas ficarem tão próximas e Camila, parecendo ter se tocado desse detalhe, deixou o local e foi para a cozinha. Fazendo isso, revelou uma pequena pessoa negra de sessenta e três centímetros que usava um tênis branco com um vestido amarelo com estampas de pedaços de bolo. Maria Flor sorria abertamente com seus dentes em formação fazendo seu pequeno rosto redondo e seus olhos cor de mel ficarem reluzentes. Os cabelos finos e encaracolados, tentavam se manter firmes em uma tentativa de representarem um black power deixando as pequenas orelhas, com brincos de pedra brilhantes, expostas.
– Curupira! Você por aqui! – Disse Gabriel fingindo surpresa e fazendo gestos de soltar magia com as mãos que foram imitados por Maria Flor colocando a barriga para frente e balançando os quadris. – Ahhh! Vem aqui me dar um abraço! – E pegou ela no colo. – Você está bem?
– Eu “tô” bem, Biel. – Disse ela balançando a cabeça e com o dedo indicador na bochecha.
– Você têm lutando com muitos monstros e deixando a mamãe maluca? – Gabriel começou a andar em direção da cozinha.
– Eu “tô” lutando com muito bicho.
– Você não conhece a peça, Biel. Ela risca as paredes com os lápis de cor e deixa tudo manchado. Eu até pintei a casa com uma tinta especial. Agora é só passar um pano que sai. – Disse Henrique acompanhando-o.
– Assim que é bom. Criança tem mesmo que se sujar, não é Flor.
– Eu sou o “culupia” – Disse ela indignada.
– Oh, meu Deus! – Camila os olhava sorridente. – Você é o curupira só de brincadeira, por que você é uma menina, né?
– Não! Eu sou o “culupia” – Insistiu Maria Flor arrancando risadas de todos os presentes.
A cozinha estava toda organizada e não haviam mais vasilhas plásticas espalhadas pelo local e sim uma mesa forrada com uma toalha branca nova e no centro uma fruteira de palha com bananas, laranjas e maçãs.
– Quem é o curupira? – Perguntou um homem de voz engraçada.
– Maria Flor, tio Valter. Ela teima em dizer isso. Diz pra ela que o Curupira é homem e ela é uma mocinha, tio! – Disse Camila abraçando o homem e depois apontou para a filha no colo de Gabriel.
– Na verdade ela pode estar certa, Mila! Ninguém sabe ao certo o sexo de Curupira, pode ser tanto homem quanto mulher. Só saberemos quando ele ou ela aparecer em publico e se revelar. O que nunca vai acontecer pois é apenas um ser folclórico que foi inventado para espantar os exploradores das florestas. Não é mesmo, Biel? – Disse Denis entrando na cozinha após o pai.
Gabriel começou a pensar no que aconteceu mais cedo e se deu conta que o Boto havia dito apenas que iria levar o Saci até Curupira para que esse o curasse.
– Biel? Tá tudo bem? – Insistiu Denis que, tirando o peso, se parecia muito com o pai.
– Ah! Sim. Você está certo, primo. Não sabemos ao certo o sexo de Curupira. Então a Flor pode sim ser ele ou ela. – Disse Gabriel agora com a dúvida na cabeça. Mas, para ele, essa era a menor das questões quando se tratava dos seres folclóricos. Ainda mais depois do que aconteceu hoje.
– Esta sua teoria do “o gato de Schrödinger” estaria certa se você não tivesse esquecido de acrescentar uma variável no caso da Flor, Denis. – Deise entrou na cozinha e abraçou Ester enquanto refutava a tese do irmão.
– E qual seria essa variável? – Perguntou Denis com as mãos na cintura e estreitando os olhos azuis.
– Que ela é uma criança e no mundo deles não há distinção de sexo, cor, raça nem de nada que os adultos insistem em rotular. Somos todos iguais aos olhos deles, logo ela pode ser quem quiser, até o dia em que a sociedade colocar na mente dela a falsa certeza do que é certo ou errado. – Deise respondeu e o irmão pareceu concordar, pois balançou a cabeça afirmativamente.
– Ah! De e De! Parem com essa discursão boba! A pequena Maria Flor pode ser quem ela deseja neste ou em qualquer outro universo que possa existir. – Iolanda foi a última a entrar na cozinha e a cumprimenta-los.
– Viu! Mamãe concorda comigo. – Disse Denise feliz por ter ganhado o breve debate.
Fazia mais de dois anos que não os via e, após todos terminaram de se cumprimentar e felicitarem Gabriel pelo aniversário, os quatro ficaram um ao lado do outro.
Tio Valter era branco, magro, tinha sessenta oito anos e um metro e oitenta e nove de altura. Usava um terno de risca de giz e uma gravata azul escura. Uma camisa branca e os sapatos eram pretos e tão lustrados que Gabriel achava que dava para ver seu reflexo neles. Tinha o rosto rosado e redondo com olhos pequenos e castanhos. Um bigode grande e cheio e uma barba rala e grisalha assim como os cabelos lisos penteados para trás .
Tirando que tinha dezesseis anos, usava tênis branco e laranja, calça jeans, camisa do São Paulo, não tinha barba, era cinco centímetros menor e um pouco mais magro, Gabriel podia apostar que Denis era a imagem do pai quando mais jovem.
Iolanda, por sua vez, tinha cinquenta e quatro anos, um metro e sessenta de altura. Seus cumpridos cabelos loiros estavam presos em um rabo de cavalo fazendo seu rosto, assim como seu nariz, parecer ainda mais finos. Tinha olhos azuis e os lábios pequenos pintados com um batom rosa claro. Usava uma calça jogger preta, camiseta e sandália brancas.
Já Denise era uma versão rebelde da mãe. Tinha a mesma altura, quatorze anos, os cabelos soltos e negros. Usava camisa larga, calça rasgada e sapatos de esqueitista, tudo, inclusive o batom, era preto.
A cozinha se encheu de conversas paralelas e risadas.
FESTA DE ANIVERSÁRIO.
A sala era pequena e aconchegante. As paredes eram pintadas de branco e com duas portas, uma que dava acesso ao corredor dos quartos e a outra, paralela a essa e com uma janela, dava para fora da casa. Dois sofás de pano marrom compunham a decoração junto de uma mesa de vidro que ficava no centro do local e uma estante de madeira com um metro e oitenta de altura onde ficavam a tv, o rádio com suas caixas de som, por trás de uma das portas de vidro haviam algumas garrafas de vinho enfileiradas e na outra algumas taças. E a cima da tv um porta-retratos com a foto de Gabriel, Ester e Camila com Maria Flor no colo que havia sido tirada no ultimo natal.
Após uma hora de conversas na sala, Gabriel estava exausto de ouvir tio Valter, um pouco embriagado pôr ter tomado algumas as taças de vinho, contar a mesma história pela terceira vez.
– ... só estando lá para vocês entenderem. As nuvens no céu estavam ficando cada vez mais negras e o mar muito agitado. Minha pequena embarcação quase virou umas vinte vezes em menos de cinco minutos, mas eu não podia desistir! A minha vara de pesca se envergava tanto que a ponta quase tocava em meu cotovelo a cada vez que eu puxava o grandão. Ficamos nessa briga por bons dez minutos, eu enrolava o molinete e ele puxava o barco. No fim, eu venci. O Atum tinha cinquenta quilos e setenta centímetros de comprimento. O comemos por mais de uma semana, não foi, amor? – Dizia Valter ilustrando a sena fazendo movimentos com os braços e com o pé direito em cima da mesinha de centro.
– Valter, querido. Tira o pé de cima da mesa de sua irmã, você vai sujar o móvel. – Iolanda se levantou e puxou o marido carinhosamente pelos ombros.
– Desculpas! Desculpas! – Disse Valter na mesma hora em que Ester voltou a sala. – Ah! Aquele dia foi uma aventura e tanto!
– Povo! Vamos comer? – Disse Ester na porta, secando as mãos com um pano de prato branco.
– Biel. Você está bem? Parecia um pouco distante. Aconteceu alguma coisa? – Camila segurou em sua mão e perguntou num tom baixo enquanto todos se dirigiam para a cozinha.
– Estou bem sim, Mila. Não aconteceu nada importante. – Gabriel a olhou nos olhos e ela parecia estar lendo-o.
– É uma garota? – Insistiu ela ainda mais baixo.
– Ã? O que? Não! Não tem nada de errado. Fica tranquila que está tudo em paz. – Gabriel ficou sem jeito com a investida da irmã de criação. Se parecia estar aflito, tinha que melhorar o semblante para que ninguém percebesse sua preocupação. Pensava nos acontecimentos do dia e isso incluía a surpreendente investida romântica de Jessica nele. Mas, como todos sabemos, o que lhe preocupava mesmo era o que aconteceu antes disso.
– Então um garoto? – Disse ela chegando o rosto bem perto ao de Gabriel.
– Ã?! Eu não sou gay.
– Se você fosse não teria problema algum. Você tem que ser você mesmo, basta não prejudicar ninguém. Mas o que quis dizer foi se tem algum garoto te importunando.
— Tirando o Cáulon que sempre me aperreia, não há ninguém mais. E, como você sabe, meu melhor amigo é gay e super gente fina.
– "Fina" é só modo de dizer né! - Disse ela fazendo sinal de aspas com as mãos e rindo. – Todos gostamos muito do Nick! Ele já deu em cima de você?
– Ele sempre brinca, mas nada sério. Até por que há respeito entre todos nós. Se alguém for me dar ideia que seja a Kika.
– Ela é realmente linda e muito legal. Porque você não tenta a sorte?
– Ela namora, Mila. Acho que só me vê como amigo, todos nos respeitamos e nossa amizade é muito legal pra ser estragada por um mal entendido.
– E a Joana.
– Nenhum das duas! Ou das três, se contar com o Nick.
Os dois começaram a ir em direção à cozinha rindo. Camila sempre foi uma grande parceira. Ele foi a primeira pessoa a saber do caso entre ela e Henrique e também o primeiro a saber de sua gravidez pois foi quem comprou o teste na farmácia. Ele Pensou em contar a ela o que aconteceu mais cedo. Talvez em outro momento. Se fosse ouvir que era louco preferia que as palavras fossem ditas por Nicolas.
Todos seguiram com suas conversas paralelas até a cozinha que estava arrumada. Por sobre a mesa não se tinha mais as vasilhas plásticas, essas deram lugar a uma forma com lasanha de presunto e queijo, uma bandeja com um bolo de carne com recheio de bacon com queijo, uma tigela com uma salada de rúcula e tomate cereja temperados com azeite, limão e sal, uma panela de arroz branco e outra com feijão preto.
– Antes de comer quero agradecer pela vida, pela família reunida e por essa refeição. Independente da crença que cada um tem, devemos sempre agradecer por termos o privilégio que muitos não tem. Quero também agradecer por meu maravilhoso filho completar mais um ano de vida e desejar que sua caminhada seja de muitas felicidades! – Ester disse a última parte com os olhos marejados.
– Parabéns, Biel! – Disseram todos ao mesmo tempo.
– Obrigado por estarem aqui hoje! Sou muito grato pela família que tenho. Amo todos vocês! – Disse ele olhando para os parentes que se reuniam em volta da mesa.
– Olha! Fez o discurso antes de clamarmos por ele. – Disse Denis se sentando ao lado da irmã.
A mesa que antes tinha seis cadeiras havia ganhado mais duas para comportar todos a sua volta.
– Nossa, mãe! Se o gosto for tão bom quanto o cheiro vou ter que passar uma semana na academia pra perder todas as calorias. – Disse Camila, inspirando o ar pelo nariz, com Flor no colo ao lado de Henrique e de Ester que estava em uma das pontas da mesa.
– O cheiro está realmente bom e a cara está ótima! – Disse Valter na outra ponta da mesa segurando um garfo e uma faca, um em cada mão, entre Iolanda e Denise.
– Então vamos comer que só o cheiro não enche barriga! – Disse Gabriel ao lado de Ester e Denis que levantou e começou a colocar comida em seu prato.
– Quero esse. – Maria Flor apontava para o tomate cereja na tigela de vidro.
– Esse aqui também, filha? – Camila pegava o tomate apontado por Flor e perguntava se ela também queria carne.
– É! – Disse Maria Flor sem tirar os olhos da comida.
– Pega um pedaço de queijo pra ela também, vida. – Disse Henrique pegando um pedaço da carne e fazendo o queijo derretido se esticar entre a bandeja e o prato. – Está ótimo, sogrinha!
– Essa salada e essa carne estão um espetáculo, Ester! Você caprichou mesmo! – Iolanda fazia movimentos repetitivos com a mão direita em que segurava o garfo enquanto olhava para a cunhada com os olhos arregalados.
– Tudo está simplesmente perfeito, maninha! O aniversário é do Gabriel, mas os parabéns vão para você! – Todos na mesa riram.
– Muito obrigada. Eu fiz tudo com um tempero especial. – Disse Ester com as mãos juntas na frente do corpo.
– Amor? – Perguntou Denise sem tirar os olhos do seu prato.
– Banha! – Enfatizou Ester.
– Mas carne de porco não faz mal? – Continuou Denise.
– Ah! Filha. Um dia eles dizem que porco faz mal, no outro estão dizendo que é pop, que é tech. Então não faz nem mal nem bem. – Disse Ester fazendo um gesto com a mão direita para indicar que estava despreocupada.
– Como está na escola, Biel? – Perguntou Denis com a boca cheia de lasanha.
– Estou bem. Não sou o primeiro da turma, mas fico a cima da média. – Disse Gabriel pegando um pouco mais de arroz.
– E como é o ensino? – Perguntou Valter com o garfo suspenso no ar.
– É complicado. Estudo em escola pública e na sala de aula tem mais de quarenta alunos. Os professores fazem o que podem. Mas sempre tem a galera que não dá a mínima para os estudos e acaba atrapalhando quem está se dedicando.
– Talvez se houvessem psicólogos na rede pública o ensino fosse mais satisfatório. – Disse Denise entrando na conversa e descansando os talheres no prato. – Estou cheia. Que comida maravilhosa, tia!
– Obrigada, Denise! – Ester também já não comia mais. – Com relação aos psicólogos, o governo sempre encontra uma desculpa para não investirem na educação.
– Uma pena! Pensando a médio prazo se houvesse um acompanhamento profissional esses alunos poderiam se tornar pessoas melhores e ajudaria a sociedade como um todo.
– Mas com psicólogos nas escolas as pessoas vão começar a pensar e se questionar. Os políticos que estão há anos operando a máquina pública vão perder votos. Vocês acham que eles vão querer perder essa "mamata"? – Disse Valter.
– Infelizmente a população é massa de manobra e ao invés de brigarem todos por melhorias em sua qualidade de vida eles brigam entre si por seus partidos políticos. – Disse Gabriel.
– Parecem torcidas organizadas de times de futebol que guerrilham enquanto os dirigentes enriquecem. É a mesma coisa na política. Enquanto a população brigar entre si e continuar aceitando as condições, as leis, as reformas que eles fazem sem questionarem o motivo de tudo isso, eles vão continuar sendo os mais prejudicados. – Disse Henrique recebendo o apoio de Camila que balançou a cabeça com sinal de afirmação.
– É! Só que não adianta de nada nós discutirmos isso entre nós e lá fora as pessoas continuarem com suas guerras inúteis. – Disse Denis pegando um pedaço de carne com bacon.
– Por isso que não se tem um acompanhamento psicólogo nas escolas. Ninguém quer que as pessoas cresçam com pensamentos livres, com a mente aberta. Para eles, temos que brigar lado partidário e não por melhoras, que é onde depositamos as esperanças quando votamos neles. – Disse Camila dando uma uva descascada para Maria Flor.
– Esse é um dos motivos de eu estar de saída do país no meio do ano. Vou estudar fora! – Disse Denis cheio de si.
– E gostaríamos que você fosse junto dele, Biel. – Disse Valter com um sorriso nos lábios.
– E não se preocupe Ester! Os próximos cinco anos de estudos dos dois estão dentro de nosso orçamento. – Completou Iolanda.
– Oi? Eu ir estudar fora? – Gabriel estava incrédulo. Há alguns anos vinha pensando em morar fora do país quando completasse a maior idade.
– Sim! Considere como presente de aniversário dos próximos cinco anos! Ha ha! – Valter deu risadas da própria piada enquanto olhava a irmã se levantar e ir até a geladeira.
– E ai, Biel?! Partiu? – Perguntou Denis empolgado. Com os olhos arregalados, encarava Gabriel aguardando a resposta do primo.
– Sou muito grato pelo convite! Não tenho palavras para descrever o quanto estou feliz com isso. Mas...
– Mas é hora de cantar parabéns e cortar o bolo! – Cortou Ester antes de Gabriel concluir o que tinha para dizer.
– Biiiéééééll! – Uma voz afeminada e conhecida gritava na rua.
– Parece que é o Nick. – Disse Gabriel se levantando para ir ao portão atender o amigo.
– Deixa que eu o busco. – Disse Denise desaparecendo pela porta e voltando segundos depois com um Nicolas sorridente.
Esse era, sem dúvidas, o melhor amigo de Gabriel. Os dois cresceram, estudam e trabalham juntos. Sempre sorridente e de bom humor, Nicolas tinha um metro e setenta e cinco de altura. Nunca ficava mais de duas semanas com o mesmo penteado, hoje os cabelos, castanhos e alisados, estavam raspados do lado direito e escorridos na parte esquerda de seu rosto redondo até a altura do maxilar, tinha olhos cor de mel e nariz redondo. Era gordo e gay. Usava uma camisa branca, shorts rosa, chinelos brancos e portava uma mochila de onde tirou um embrulho azul.
– Parabéns, Biel! Tudo de bom pra você! Muita saúde, paz, amor e sempre escolha o lado do bem! – Disse ele abraçando e entregando o pacote para Gabriel.
– Obrigado, Nick! Como você está? – Perguntou Gabriel colocando o presente em cima do armário da cozinha. Iria abri junto dos outros.
– Estou bem, mas posso ficar ótimo. – Disse Nick olhando para o banquete sobre a mesa.
– Pega um prato e come um pouco, Nick. – Disse Ester abraçando o garoto.
– Tudo bem com vocês? – Perguntou ele olhando para todos os presentes que responderam positivamente. – Ah, Dona "Star"! Você sabe que sou fã incondicional da sua culinária, né! Vou comer sim!
Todos esperaram que Nicolas terminasse de comer para poderem cantar os parabéns ao aniversariante. Após um breve discurso de agradecimento, Gabriel cortou o bolo de baixo para cima, pois diziam trazer boa sorte. Deu o primeiro pedaço para Ester. Ninguém percebeu, mas ele não havia dito se ia ou não para o exterior com o primo.
Já passava das vinte e duas horas e outros convidados começavam a chegar e a encher a pequena casa.
Fernanda, Cássio e Joana chamaram no portão e dois minutos depois foram Ricardo e Ivan. Todos presentearam e felicitaram Gabriel por mais um ano de vida.
Após uma pequena confraternização com os amigos mais chegados de Gabriel, seus parentes deixaram o lugar e foram para a casa de Camila. Logo, só haviam jovens de sua escola e de seu serviço dançando as músicas que tocavam na festa. O estranho era que todos estavam fantasiados menos Gabriel.
– Acho que perdi alguma coisa, Jô! Desde quando a festa era a fantasia? – Como o som estava alto, ele gritou para a amiga de olhos puxados hora vermelhos e hora castanhos. Era banca feito a neve e seus cabelos ruivos pareciam que estavam em chamas. Tinha os traços do rosto bem orientais, usava um vestido longo, um chapéu de bruxo e um cajado de madeira com uma esfera vermelha na ponta.
– Isso foi ideia do Nick. Todos virem fantasiados menos o aniversariante. – Disse ela com sua voz doce, balançando o corpo e pisando fofo na grama do quintal ao som do funk que tocava.
A noite estava agradável. Uma brisa passava fazendo as folhas das árvores farfalharem enquanto a lua cheia se destacava por sob as estrelas e sobre as nuvens que brilhavam com sua luz.
– Claro que foi! É a cara dele. Aproposito. Você está bem convincente nessa fantasia. Cuidado para não explodir a casa.
– Palhaço! Obrigada! É só falar nele que ele aparece. – Completou ela sorrindo para Nick que vinha travestido de gueixa com um quimono branco e um laço rosa na altura da cintura.
– E então! O que acharam? – Perguntou ele de braços abertos e dando uma volta em torno de si.
– Você está um arraso, Nick! Perfeita! – Disse Fernanda, que estava toda de rosa e usava um nariz cumprido representando um boto-cor-de-rosa, abraçada com seu namorado que estava de Posseidon e apenas sorria.
– Simplesmente linda! – Disse Joana com a mão direita no rosto e boquiaberta.
– Obrigada, Galera. – Agradeceu ele juntando as mãos na frente do corpo e se curvando levemente.
– Você está show, Nick. Mas por que você não me disse que todos viriam fantasiados?
– Ai, Biel! Já que não dava pra fazer uma festa surpresa eu tinha que impactar de alguma forma. – Disse Nicolas, também pegando um copo de refrigerante.
– Caraca, Nick! Você está demais! Da um tchauzinho aqui para a live. – Ivan que estava fantasiado de pirata veio de encontro ao grupo segurando o celular, que havia mostrado a Gabriel mais cedo, seguido por Ricardo que estava de samurai.
– Está mesmo um luxo, Nick! – Disse Ricardo que era branco. Seus olhos azuis eram fundos, com um metro e oitenta de altura, cabelos loiros penteados num topete e um bigode castanho e ralo.
– Gostou, meu samurai alemão? – Disse Nick piscando para Ricardo que desviou o olhar.
Gabriel lembrou que Jessica, assim como ele, não sabia que a festa seria a fantasia pegou o celular no bolso da calça, enviou uma mensagem para ela e se afastou dos amigos enquanto Nicolas rebolava até o chão, Ivan o filmava e todos celebravam juntos.
Ele foi até o portão e no caminho viu as gêmeas negras Patrícia e Pamela que estavam todas de preto usando máscaras de pantera e sorriam para Luiz que, fantasiado de índio, estava sem camisa e usava um cocar e uma saia de folhas verdes e Marcio que, fantasiado de cebolinha, usava uma camisa verde, um short preto e uma toca com cinco dreads e sensualizavam para elas fazendo o passinho do romano.
A rua, iluminada pelas luzes dos postes, estava calma. Gabriel olhou rápido para a esquerda e viu apenas um homem negro e forte, com uma perna só e usava um gorro e uma saia, ambos vermelhos, que pareciam tão leves quanto o ar pois flutuavam mesmo sem vento. O homem segurava um cachimbo na altura da boca sorridente e seus olhos eram inteiramente brancos e pareciam ter um discreto brilho. Depois ele olhou para a direita e viu alguns carros passando na avenida e Jessica virando a esquina com um vestido preto até a metade das coxas e orelhas de coelho na cabeça. Gabriel nem reparou que a garota sorriu para ele quando o viu pois se deu conta da imagem parada na rua e olhou novamente para que esquerda, mas não havia mais ninguém lá.
Será que estava imaginando coisas? Talvez devesse contar o ocorrido para alguém. Compartilhar a aflição e procurar uma solução rápida para o caso, pois, pelo o que parecia, estava sendo seguido por seres folclóricos que, até aquele dia, só tinha visto nos livros e não se pareciam nada com as ilustrações de traços inocentes.
– Oi, Gabriel. – A voz de Jessica o trouxe de volta de seus pensamentos. – Aconteceu alguma coisa ali?
– Ã! Oi! Não aconteceu nada! Pensei ter visto algo, mas foi só imaginação! Você está linda!
– Gostou?
– Muito! Como você soube que a festa era a fantasia?
– Um amigo seu passou na floricultura e me falou. Disse para eu não contar para você, pois ia ser surpresa. Acho que o nome dele é Ivan!
– É! Eu encontrei com ele depois que saí de lá hoje mais cedo. Vamos entrar?
– Claro! Primeiro me deixa dar o seu presente.
– Não precisav... – Antes de ele terminar a frase a garota o abraçou passando os braços por seu pescoço e lhe deu um beijo na boca. Nos primeiros segundos ficou sem reação, mas depois retribuiu o gesto segurando-a pela cintura. Mesmo que oficialmente nunca tenha beijado uma garota ele treinava com laranjas em seu quarto sempre que tinha a oportunidade. Não sabia quando, mas tinha certeza que esse dia chegaria e não queria decepcionar quem quer que fosse a garota que te beijasse.
– Feliz aniversário! – Disse ela, mordendo o lábio inferior, ainda o abraçando. - Feliz aniversário!
– Obrigado! Esse foi um dos melhores presentes que eu recebi! – Disse ele chegando a conclusão que as laranjas nem se comparavam aos lábios dela.
– E tem mais de onde veio esse.
– Estou contando com isso. Vamos entrar? – E os dois foram se juntar ao restante do pessoal que curtiam a festa.
A casa estava bem movimentada, mais de trinta jovens com as mais variadas fantasias dançavam e curtiam o momento. Magda, uma garota da escola que gostava de animais estava fantasiada de arara-azul e tirava fotos com Thorto que usava saia havaiana e uma coroa de flores no pescoço. Como tudo ali, aquilo também deve ter sido ideia do Nick. Pelo menos o cachorro parecia não se importar mais com o ocorrido mais cedo.
Os dois atravessaram a cozinha, passaram por Luiz e Patrícia que se beijavam encostados na geladeira, foram para a sala onde Nick e os outros estavam conversando e rindo.
– Aí, galera. Essa é a Jessica. Jessica, esses são meus amigos. – Disse Gabriel apresentando todos após se juntar ao grupo na sala.
– Ui! Biel e a moça das flores. – Nicolas estreitava os olhos e mexia com as sobrancelhas ao dizer.
– Por isso sumiu sem dizer nada. – Disse Joana fazendo os mesmos gestos que Nick.
– Eu não havia dito que a festa era a fantasia e, como ela não respondeu a mensagem que enviei, eu fui esperar-la na rua para que não fosse surpresa pra ela também. – Disse Gabriel enquanto Nicolas dançava e disfarçadamente se aproximava dele. – Do que vocês estavam falando?
– De quando eu fui fazer uma tatuagem e não consegui. – Começou Nicolas.
– Ha! Ha! Ha! O tatuador passou o álcool nas costas para limpar o local em que seria feita a arte, o Nick começou a gritar! "Ai! Ai! Ai!" – Gabriel não se aguentou e começou a gargalhar com a lembrança.
– E quando o cara foi aplicar o estêncil? O Nick deu um pulo da maca e saiu correndo. – Continuou Fernanda.
– Pagou no cartão, antes de fazer o desenho, e até hoje não foi lá pra pedir o estorno! – Completou Joana enquanto todos no local gargalhavam.
– O rapaz estornou o valor, viu! Mas eu peguei mesmo trauma. E semana que vem eu tenho consulta na doutora Vivi! Nem sei o que vai acontecer quando ela ligar aquela maquininha para limpar meus dentes! – Nick colocou o verso da mão direita na testa e simulou um desmaio em cima de Ricardo que o segurou evitando que ele caísse no chão no momento em que começou a tocar uma música lenta. "Ponho os meus olhos em você" – Ai! Amo essa música. Vamos dançar, Rick! – E puxou o amigo pela mão até o lado de fora da casa. Jessica sorriu para Gabriel e o puxou pela mão seguindo Nicolas.
– Eu não estou afim de dançar, Fê! – Disse seu namorado.
– Por que não, Cássio? Vamos acompanhar os outros e nos divertir um pouco. – Gabriel não olhou para trás, mas parecia que Fernanda estava irritada.
– Só não estou afim de... – Continuou Cássio, mas sua voz foi abafada pela música que estava alta do lado de fora da casa.
Muitos pares se formaram fazendo suas fantasias se misturarem ao compasso romântico do rock. Alguns se beijavam, outros giravam na levada dos parceiros e outros dançavam a distância apenas segurando as mãos, como Nicolas e Ricardo.
Jessica girou em torno de si segurando a mão direita de Gabriel e depois colou seu corpo ao dele fazendo-o segurar em sua cintura e balançando seus corpos lentamente no "um pra lá e um pra cá"
Para Gabriel, aquele abraço era o melhor lugar do mundo para se estar. Quente, aconchegante e macio. Estava gostando de Jessica ter ido a sua festa e, mesmo sem conhecer nada sobre ela, estava curtindo aquele momento. Talvez, como Camila sempre dizia, as garotas o cantavam e ele nem percebia. Não queria pensar no que deixou de ter, pois não o teria, estava interessado no momento em que vivia nesse exato segundo e por isso subiu a mão direita pelas costas da garota até sua nuca, olhou em seus olhos e a beijou.
Começaram tímidos, mas logo os gritos, aplausos e assobios tomaram conta do local. Ao abrir os olhos, Gabriel notou que aquela ovação era para ele e Jessica que sorria meio envergonhada, mas parecia gostar de toda aquela atenção.
– Da mais um beijo ai, Biel! Pra eu poder transmitir na live. — Disse Ivan se aproximando com os braços erguidos um sorriso largo no rosto.
– Não precisa né! – Gabriel estava constrangido com a situação, só que também estava orgulhoso do feito. - Alguém dá o play ai no PC pra essa galera voltar a curtir e a dançar?
– E aí, Biel. A live “tá” “bombando” e o aniversariante ainda nem apareceu nela, cara! — Ivan falou passando o braço por cima dos ombros de Gabriel. – Será que posso pegar seu namorado emprestado? – Disse ele sorrindo para Jéssica.
– Ah! Claro! Foi ele quem me disse que a festa era a fantasia, Biel. – Falou Jessica quando, Fernanda com muita pressa, passou por eles sendo seguida por Cássio.
– E a cara desse traíra mesmo. – Disse Gabriel com ar de ironia.
– Nem vem com essa, brozito. Se eu não tivesse avisado agora ela estaria tão sem graça quanto você. – Disse Ivan empurrando Gabriel. – Agora bora ali que a audiência nos chama. O público clama por nós.
Gabriel acompanhou Ivan até a entrada da casa onde algumas garotas tiravam fotos com Thorto que não parava de balançar o rabo. O portão de acesso à rua estava aberto e, como não viu Fernanda em nenhum lugar, ele supôs que ela estivesse do lado de fora com Cássio.
– Chega de esperar! Aqui está o aniversariante. E ai, Biel! O que está achando da sua festa surpresa/não surpresa? – Perguntou Ivan com o celular em mãos, andando de lado para encontrar o melhor angulo para a filmagem.
– Estou curtindo "pacas". Primeiro um jantar com a família e agora uma bagunça de leve com meus amigos que também fazem parte da minha família. Só tenho a agradecer a todos.
– A vania_99sz está dizendo que a gratidão enobrece a alma. Esse é nosso Biel, com o coração sempre humilde. – Ivan apontou a câmera para si e respondeu a internauta.
" Você é um imaturo, egocêntrico "
" Só por que eu não quis dançar com você? "
" Não é só por isso. Você sabe muito bem pelo o que tenho passado e nem tenta me animar. Hoje eu te pedi para buscar as fantasias e o que você fez? Desligou o celular e veio com a desculpa que a bateria tinha acabado!"
Ivan continuava sua entrevista com Gabriel. Inevitavelmente ele escutava a discursão entre Fernanda e Cassio que acontecia do outro lado do muro. Difícil não prestar atenção no que os dois diziam, pois um gritava com o outro e suas vozes ficavam mais alta que a música.
Thorto veio todo feliz sorrindo com os olhos e balançando o rabo freneticamente. Parecia ter superado o evento de horas atrás, coisa que Gabriel não conseguiu fazer. Ele abaixou para acarinhar seu cachorro enquanto Ivan fazia e respondia os comentários nas redes sociais e a briga do lado de fora continuava.
"Mentiroso! Eu mandei mensagem para sua mãe e ela disse que você estava assistindo tv!" - Esperneou Fernanda depois que Cassio disse que havia saído e não tinha onde carregar o celular.
"O que você quer que eu faça ou fale, Fernanda?"
"Se não sabe o que tem que fazer então é melhor a gente terminar! Para um relacionamento dar certo o respeito tem que ser mutuo, como você apenas se enxerga vá namorar com um espelho."
"Que seja! "
Alguns segundos se passaram o que sucedeu foi a batida da porta de um carro e o cantar de pneus anunciando que o rapaz havia deixado o local. Após um curto silencio do lado de fora só se ouvia os suspiros de lamento de Fernanda que parecia chorar.
– Biel, a re_htinha está perguntando se ainda tem...
– Pera aí, Ivan. – Disse Gabriel sem ouvir o resto da pergunta que o amigo estava fazendo e saiu pelo portão onde encontrou uma Fernanda sentada na calçada abraçando os joelhos.
– Você ouviu? – Perguntou ela quando ele se aproximou e sentou ao seu lado.
– É... Eu estava numa live com o Ivan e foi inevitável...
– Ai, Biel! Minha vida está de cabeça pra baixo. Não estou conseguindo me ajeitar no emprego, tenho andado triste por causa do Cassio, meus pais se separaram e antes de eu vir pra cá uma mosca entrou na minha boca e eu a engoli!
– A parte da mosca é brincadeira, né?
– Eu queria que fosse!
– Essas coisas acontecem, Kika! Você é uma mulher forte e vai conseguir superar. – Disse Gabriel passando o braço esquerdo por cima dos ombros da amiga e a apertando levemente. – O que aconteceu com seus pais?
– Mamãe pediu um tempo para papai, agora ele fica bebendo e cantando sofrência o dia todo.
– Conheci alguém assim hoje. – comentou ele posta sí. – E por que ela pediu um tempo? Você sabe?
– Mamãe sempre foi livre, assim como papai. Só que ele sempre correu atrás dela até que ela cedeu e se casaram, foi aí que eu fui concebida. Mas de uns meses pra cá ela teve uma crise existencial, disse que aquela não era ela e tinha que sair para refrescar a cabeça.
– E pra onde ela foi?
– Voltou para o Amazonas.
– Não sabia que ela era do Amazonas. A família dela é de lá?
– Meus avós não são mais vivos. A gente tem algumas casas por lá.
– Ela vai se encontrar e, quando menos vocês esperarem, voltará. Tenho certeza que acontecerá antes de seu pai ter cirrose.
– Ha! Bobo! – Disse Fernanda e deitou a cabeça no ombro de Gabriel. – Obrigado por ser meu amigo, Biel. A Jéssica tem sorte de estar com um cara legal como você.
– Nós só estamos ficando. Nos conhecemos a menos de um dia. Temos muito que aprender um do outro.
– Você está curtindo?
– Estou sim. Ela parece ser uma boa pessoa.
– Só não a faça sofrer. Continue sendo essa pessoa legal que você é.
– Obrigado, Kika! Vamos entrar e curtir o restante da festa?
– Vamos sim. Hoje é seu dia e não serei eu quem vai estragar. – Ao dizer isso Fernanda se levantou em um pulo e puxou Gabriel pelas mãos.
Os dois voltaram para junto de seus amigos. Ivan ainda filmava Joana que fazia poses como se estivesse soltando magia com o cajado com a esfera vermelha acendendo e apagando. Nicolas conversava com Ricardo num canto distante dos outros e Jessica dançava funk rodeada por garotos e parecendo gostar de todo aquela atenção. Quando ela o viu correu até ele. Todos se divertiram até o sol nascer.
NO MATAGAL DO IBIRAPUERA.
O Sábado passou rapidamente. Gabriel não precisou fazer as tarefas de casa pois seus amigos o ajudaram a organizar as coisas antes de irem embora.
Ficou boa parte do dia conversando com Jessica pelo aplicativo de mensagem do celular para se conhecerem mais e foi assim que ele descobriu que ela gostava da cor vermelha, de ir para o shopping e estourar o limite do cartão de seu pai e não gostava de andar pela natureza. Ela odiava os insetos.
Sem ter muito o que fazer, ele dormiu cedo e o domingo logo chegou. Foi avisado com mais de um mês de antecedência que teria que trabalhar aquele dia, pois a empresa de engenharia em que trabalhava havia fechado um contrato grande e teriam muito trabalho naquele mês.
Ele era jovem aprendiz na empresa de Arquitetura e Engenharia Fábio Gouveia.
Fábio era amigo de longa data de sua mãe e não hesitou em empregar Gabriel após um pedido dela. Por isso ele é tão esforçado no que fazia. Não queria passar a impressão que tinha proteção devido à amizade deles.
– Boa tarde, gato! A galera está se reunindo lá em baixo para ir ao “Ibira”. Até a Kika, com todos seus problemas, veio. Vamos te esperar na entrada do prédio. É um “Ó” ter que trabalhar aos domingo. – Tão rápido quanto entrou, Nicolas saiu da sala resmungando.
Ele trabalhava no RH da empresa, em uma sala de vinte metros quadrados onde havia sete mesas com divisórias separando-as e que eram encostadas em três das quatro paredes do local. Em cima de cada mesa havia um computador com teclado, mouse e um telefone.
Assim era a configuração padrão. Mas cada uma tinha sua decoração feita por seus ocupantes. Na mesa de Gabriel havia uma porta trecos e um porta retrato com um mosaico de fotos com integrantes de sua família. Havia também algumas folhas espalhadas, pois ele estava fazendo a digitalização de alguns documentos. Não revisava apenas os digitava.
A empresa estava fechando um contrato grande, por isso boa parte dos funcionários estavam trabalhando meio período neste domingo. Só que o expediente estava próximo do fim e Gabriel preparava-se para sair da empresa. Antes iria ligar para sua mãe e avisar que iria para o Parque Ibirapuera com seus amigos. Pegou o telefone e discou o número de casa. Após o terceiro toque ouviu a voz com sotaque nordestino de sua mãe.
– Alô. – Disse Dona Ester
– Sua bênção, mainha. Tudo bem?
— Que Deus te abençoe meu filho! Tudo bem sim e como você está? Já está se preparando para vir embora?
– Estou bem, também. Então, mãe. Era exatamente sobre isso que eu liguei. Um pessoal combinou de ir ao Ibirapuera e se despedir das férias tudo bem pra senhora eu ir junto?
– Por mim tudo bem, meu filho. Só não vai me chegar muito tarde por que você sabe como está perigoso andar em São Paulo durante a noite. E juízo, viu meu filho!
– Pode deixar! Não vou me demorar, Dona Ester. A senhora viu a Flor hoje?
– Ela está aqui colocando a casa de pernas pro ar. Flor vem aqui, Biel está no telefone e quer falar com você. –Bieeeeellll!" Deu para ouvir o grito agudo de Maria Flor. Depois de alguns segundos uma voz doce, rouca e ofegante chegou ao ouvido dele.
– Alô, Biel? Aonde você tá? – Disse Flor.
– Eu estou trabalhando, está tudo bem com você minha linda?
– Não sou linda, sou o Curupira!
– Oh! E o que você está aprontando com a vovó?
– A vovó fez bolinho de chuvaaaa! – E deu uma risada gostosa.
– E você gosta?
– Eu gosto!
– Já comeu quantos, Florzinha?
– Eu comi “catô”.
– Você comeu quatro bolinhos? Deixou pra mim também?
– Sobrou um montão de bolinhos. Você já vai chegar, Biel?
– Hoje, vou chegar mais tarde. Mas se você ainda estiver aí agente vai brincar de super-herói.
– Obaaaa! Então chega logo tá bom?
– Vou o mais rápido que eu puder. Passa o telefone pra vovó por favor, Curupira?
– Tá, xau Biel. Ummmmmmmmma (beijo)
– Oi, meu filho. - Disse Dona Lúcia.
– Então, estou indo viu, mainha? Tenha uma boa tarde. Beijos. Te amo.
– Também te amo muito, meu filho. Até mais tarde. Se cuida. – E desligou o telefone.
Gabriel, então, colocou o telefone no gancho, se levantou de sua cadeira, a encostou rente a sua mesa e foi até o ponto eletrônico. Colocou o indicador direito no leitor de impressão digital e o aparelho imprimiu um papel de dois por quatro centímetros que comprovava que ele estava dando a saída do serviço.
Pegou sua mochila, saiu da sala e passou pela recepção onde, ao lado do balcão preto, havia um grande vaso com uma planta chamada de Espada de São Jorge, tinha esse nome pelo seu formato esticado e pontudo que lembrava uma espada. Do lado de dentro do balcão, estava a recepcionista Tânia com seus cabelos castanhos, presos em um coque no topo da cabeça. Era branca com nariz pequeno e que parecia uma coxinha, covinhas nas bochechas e nos lábios um batom v Tinha olhos castanhos e um olhar de ternura. Usava uma camisa social com os três primeiros botões abertos e apresentava um grande decote, calça social preta e sapatilha preta com um lacinho rosa. Gabriel apertou o botão para chamar o elevado em frente ao balcão e cumprimentou-a:
– Tchau, Tânia. Bom Fim de domingo. – Disse Gabriel.
– Obrigado e um ótimo final de domingo pra você também, Biel. Vai para o “Ibira” com os outros?
– Vou sim. Sabe me dizer se já saíram?
– O Nick pediu para avisar que estão todos lá embaixo, esperando por você.
– Obrigado, Tânia. Se vir o Seu Mizael pode dizer para ele que eu já digitei o documento que ele me pediu e enviei para o e -mail dele?
– Pode deixar que eu o aviso sim. Oh! O seu elevador chegou. Divirta-se.
– Muito obrigado. – E entrou no elevador parado no andar, apertou o botão para o térreo.
Quando as portas fecharam, ele se virou para o espelho que tinha no fundo, deu uma arrumada em seu cabelo, uma girada em seu piercing do nariz e encarou seus olhos verdes. Vestia camisa azul, bermuda verde e chinelos azuis. Fechou os olhos e virou-se, no momento em que as portas se abriram, saiu do elevador, passou o crachá que estava pendurado um cordão no pescoço na catraca e dirigiu-se para a entrada do prédio onde seus amigos estavam reunidos e conversando alegremente.
Ricardo que vestia uma bermuda de moletom preta, camisa rosa e chinelos brancos, estava agachado por de trás dos jovens, aproximou-se silenciosamente, imitou o latido de um cachorro e apertou a perna esquerda de uma garota de cabelos castanhos, a pele branca e bronzeada, nariz pequeno e empinado e uma pinta em cima dos lábios do lado direito do rosto, olhos castanhos claro, magra, usava um conjunto branco com listras na horizontal preta de shorts curto e uma blusinha de alça, chinelos rosa e tinha um colar com uma pedra verde.
Fernanda deu um salto juntamente de um grito agudo, se virou e encheu Ricardo de tapas e xingos enquanto todos os colegas riam da pegadinha. Gabriel também riu e se aproximou do grupo.
– Estão esperando mais alguém? – Perguntou ele. As risadas diminuíram e Nick, que vestia uma bermuda azul, camisa branca e chinelos rosa, falou com os braços erguidos para os céus.
– Graças a Deus! Que demora em Biel! O que aconteceu, foi ao banheiro? – E todos voltaram a rir.
Ele olhou para Fernanda e viu que ela prestava muita atenção no rio Pinheiros onde um homem branco e de bermuda florida preparava-se para dar um mergulho. Fernanda segurava apreensiva o seu colar e só desviou o olhar do rio quando o homem já havia mergulhado, ela virou o rosto e os olhos dos dois se encontraram por longos dois segundos. Logo ela desviou o olhar para Nick.
– Não é má ideia. Mas não, engraçadinho. – Disse Gabriel. – Eu só parei para dar uma palavrinha com Tânia e pedir um favor a ela.
– Hummm! A Tânia do decote? – Disse Ivan com as mãos na frente do corpo, simulando seios. Vestia uma camisa havaiana cinza, bermuda com estampa de prancha de surf, chinelos azuis.
– Ouvi, enquanto passava pelos corredores, que ela terminou um relacionamento recente e está solteira na praça. – Disse Diogo. Era negro, com o rosto rosado, cabelos negros e longos estilo surfista. Estava um pouco acima do peso, vestia uma camisa preta, bermuda e chinelos verdes. Era um grande amigo se Ivan, mas não conseguiu ir à festa de Gabriel pois estava na praia com sua família.
– Olha! Parece que o Biel já está na corrida para o coração de Tânia! – Disse Ivan.
– Mulher mais velha e experiente. Vai ensinar muitas coisas pra você em! – Disse Diogo.
–A fila deve ser bem grande, em! Ela é um mulherão. Até eu tentaria alguma coisa, se ela me desse um sorriso mais torto. – Disse Ricardo entrando no bate papo.
– Ihhh! Acho que a Jessica não vai gostar nenhum pouco de saber que você está se enrabichando com outro rabo de saia! Hein, Biel?! – Disse Nick dando olhadelas para Fernanda e depois para Gabriel de forma discreta.
– Não estou nem me "enrabicha" com ninguém, nem em corrida e tão pouco entrei em fila alguma. Só pedi para ela dizer ao Seu Mizael que eu enviei o e-mail que havia me pedido e nada mais. Seus pervertidos. E Jessica e eu estamos nos conhecendo, não há nada sério entre nós. – Olhou para Fernanda que o observava atentamente – E galera, eu vi um homem entrando no rio e até agora ele não saiu, vamos lá ver se aconteceu alguma coisa com o cara! – Disse mudando de assunto.
– Não é necessário, eu o vi nadando para a direita e depois saiu do rio. – Disse Fernanda apressada.
– Boa, Kika. Daqui a pouco anoitece e a gente não aproveitou nada. Minha mãe não vai demorar pra me ligar, enchendo o saco pra eu ir para casa! – Disse Joana, que usava um macacão vermelho e apertado, com uma camisa branca por de baixo e chinelos de borracha branco. Era de fato uma garota muito bonita e atraente.
Ela e Fernanda não se davam muito bem. Talvez, uma não gostasse do cabelo da outra ou o tom da voz de uma desagradava a outra. Gabriel não sabia porquê elas não se batiam, mas as duas sempre iam para os lugares em que Gabriel topava ir com o grupo. Certa vez eles foram para um evento hippie que teve na Praça Charles Miller em frente ao estádio do Pacaembu.
Na ocasião, todos se divertiam vendo as roupas e brincos artesanais, quando ele ouviu o que parecia ser um urro de algum animal. Olhou para todos os lados da imensa praça e ninguém mais parecia ter se importado com o barulho, exceto Fernanda e Joana que se entreolharam assustadas e saíram correndo. Demoraram cerca de meia hora e reapareceram com alguns arranhões pelo corpo e com as roupas um pouco sujas. Quando Gabriel perguntou para elas o que havia acontecido as duas disseram que disputaram uma corrida e caíram no meio do caminho e logo mudaram de assunto falando das camisas com a estampa de Janis Joplin.
Os reunidos na frente do Centro Empresarial Das Nações Unidas começaram a andar pela Rua Arizona, ao lado do shopping D&D e dirigiram-se para a Avenida Roberto Marinho onde esperariam o ônibus que não tardou a passar. Gabriel ainda estava intrigado com o homem que havia desaparecido no rio Pinheiros e não acreditou em Fernanda quando ela disse que viu o homem saindo do rio, ela parecia estar querendo sair do assunto.
O ônibus seguiu caminho pela Avenida Roberto Marinho e em trinta minutos já estavam descendo no ponto da Avenida Santo Amaro com a Avenida São Gabriel, atravessaram a via e seguiram em frente na Avenida Padre Antônio José dos Santos até chegarem ao portão oito do Parque Ibirapuera.
– Ahhhhh! Finalmente, chegamos. Vamos galera. Vamos capturar alguns monstros virtuais para a coleção. – Disse Ricardo pegando o celular e abrindo aplicativo.
– Ai, Rick! Nós viemos aqui para relaxar ou para ficar correndo o parque atrás de animais ilusórios? – Ironizou Nicolas.
– Né! Nós vamos para a beirada do lago, relaxar e aproveitar um pouco o sol, enquanto jogamos conversa fora. – Disse Fernanda. – Se você quiser pode ir capturando seus monstros virtuais no caminho ou pode sair por aí e depois a gente se encontra.
Ivan e Diogo guardaram os celulares com a mesma velocidade que pegaram. Todos caminharam até o lago admirando a paisagem verde. O parque público reunia centenas de pessoas que praticavam exercícios físicos no gramado, andavam de bicicleta pelas vias bem sinalizadas, corriam, andavam de skate, ou simplesmente ficavam sentados ou deitados na relva ou em troncos de árvores caídos conversando livremente ou meditando.
O Ibirapuera, um parque dentro da cidade de São Paulo, mede cerca de um milhão e quinhentos mil metros quadrados de área verde, com o Lago das Garças. Mas o parque não é só beleza natural: Tem a Oca, um espaço para exposições que foi projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer; O Museu de Arte Moderna; Pavilhão da Bienal que recebe eventos como o São Paulo Fashion Week e as Bienais do Livro e de Arte de São Paulo; o Planetário do Ibirapuera e Auditório Ibirapuera também projetado por Niemeyer.
Todos se sentaram às margens do Lago das Garças e ficaram alguns segundos em silêncio, admirando os patos, garças, galinhas d'água entre outras aves que deslizavam nas águas. Gabriel deitou na grama fria, colocou as mãos atrás da cabeça, fechou os olhos e ficou curtindo o sol.
A tarde era ensolarada, com poucas nuvens no céu e fazia vinte e oito graus no momento, temperatura normal para o verão paulista. Ali, dentro do Parque, não se tinha o barulho infernal das ruas, era um ótimo lugar para esquecer do mundo e vagar lentamente nos pensamentos. Lembrou do sorriso inocente de Maria Flor que a essa hora já teria feito a amarelinha torta com giz escolar. Imaginou-se brincando com ela e sorriu.
A voz empolgada de Ivan invadiu seus ouvidos e o trouxe Gabriel de volta para o presente. Ele abriu os olhos e viu Fernanda sentada ao seu lado com as pernas na posição de Buda e olhando para o lago. Ainda não haviam conversado depois de sua festa.
– Como estão as coisas na sua casa, Fê? – perguntou ele sem se levantar.
– Uma bagunça organizada. Papai vai todos os dias para o bar e sempre volta bêbado. Depois fica horas sentido o cheiro dos perfumes de mamãe e cantando as músicas mais sofridas que você possa imaginar. Chega a ser ridículo. – Disse ela o encarando com o ar cômico.
– Se não fosse ridículo não seria amor. – Disse ele olhando os lábios, a pinta logo a cima, o nariz e voltando para os olhos de Fernanda e logo disfarçou apreciando o vôo distante dos pássaros acima deles.
– Olha só! Quase parafraseou Fernando Pessoa! – Disse ela com um sorriso largo. – Tanto ele quanto você estão certos. Afinal, amor é isso, não? Desejar, com todas as forças, estar com a pessoa e respeitar seu espaço caso ela não queira. Nesse ponto papai têm se saído muito bem. Ele respeita a decisão da mamãe e não força a barra.
– E ela têm dado notícias?
– Sempre conversamos. Hoje de manhã ela me fez uma visita.
– Mas ela não está no Amazonas?
– Ah!. Hum..! Foi uma chamada de vídeo. – Disse ela se virando para o grupo que discutia fervorosamente.
– Vocês têm que ver! Foram centenas de pessoas que perderam seus documentos, seus móveis, muitos barracos queimados! – Dizia Ivan com o olhar abatido. – Na hora em que eu cheguei lá o fogo já havia sido apagado, mas a fumaça ainda tomava conta do lugar!
– Nossa, cara! Que situação triste. – Lamentou Ricardo. – E a galera falou alguma coisa de ir para outro lugar para recomeçar?
– Que nada! O povo estava lá, alguns carregando baldes com água, outros tirando a parte queimada que não saia mais fumaça, outros martelando madeira para reconstruir os barracos, algumas fazendo e servindo comida para todos que estavam lá. Uma puta ação comunitária para reconstruir o local! – Agora Ivan estava com um brilho esperançoso nos olhos.
– Muito legal! – Disse Nicolas entrando na conversa. – E os lindos bombeiros estavam ajudando?
– Que nada. Não havia uma viatura sequer. Todos largados à própria sorte. – Disse Ivan parecendo furioso.
– Tão triste quanto a situação em que esse povo se encontra é o descaso do Estado para com eles. – Disse Joana após dar um gole em seu suco de goiaba.
– Verdade, Jô! Eles também pagam impostos e pra quê? Para custear obras na parte central da cidade? – Disse Nicolas com a boca cheia sem terminar de mastigar o pão que havia mordido.
– Mas o que você quer que o Estado faça? O prefeito tem que se desdobrar para manter as contas em dia. – Disse Diogo olhando para Nick.
– Tem que gerenciar melhor a verba. Olhar para a real nescessidade do povo. Ao invés de gastar milhões em um monotrilho que vai do aeroporto para a estação Morumbi do metrô pegar essa grana e investir na reurbanização da cidade.
– E o pessoal que trabalha em obra mora em peso na periferia. Pensa na quantidade de emprego que seria criado, pessoas abririam seus comércios por perto, empresas migrariam para mais perto da população, melhoraria a qualidade de vida, tempo no trânsito. – Disse Fernanda entrando na conversa e buscando o olhar de aprovação de Gabriel.
– Isso é algo que pode mudar e muito a vida das pessoas nas grandes metrópoles. Mas aí você acaba entrando em conflito com quem tem os comercios e empresas nos grandes centros, que é onde o dinheiro circula. Pra isso acontecer tem que haver conscientização em massa da população de que é necessário buscar o que lhes é de direito. – Disse Gabriel dando um banho de realidade em todos o grupo.
– Verdade, Biel. E é perigoso eles financiarem propagandas contra isso e fazerem a população acreditar que não é algo benefico. – Disse Ricardo quebrando o breve silêncio.
– Vamos parar com esse papo de louco que não vai levar a lugar nenhum e partir para a caaaçaaaa! – Disse Diogo com o celular na mão e abrindo o aplicativo do jogo. Após alguns segundos saiu andando com a cabeça baixa de olho no celular.
Ivan e Ricardo foram atrás dele também com os aparelhos em mão.
– Ahhh! Esses garotos, viu. – Disse Nick pegando uma pequena pedra e jogando no lago.
– E você é o que, Nick? – Indagou Fernanda.
– Eu sou mulher por dentro, gata. E por fora eu sou uma quase Marilyn Monroe. Ha! – Todos os presentes gargalharam gostosamente, Fernanda até engasgou. Gabriel procurou pelos garotos que haviam saído para capturar monstros virtuais e não os viu. resolveu ir procurá-los , afinal um monstro raro iria aparecer e ele não queria ficar de fora.
– Eu vou com os outros, eles não devem estar muito longe, prometo voltar rápido e qualquer coisa eu te envio uma mensagem, Nick. – Levantou rapidamente e saiu andando quando ouviu a voz de Joana.
– É, Nick! São todos iguais, só mudam de endereço!
Gabriel sorriu e seguiu andando pelo gramado até chegar na Rua do Sabiá, dentro do parque. Pegou o celular e, de cabeça baixa, começou a abrir o aplicativo do jogo. Olhou para frente na intenção de encontrar os amigos, mas viu uma bicicleta vindo em sua direção em alta velocidade. Ele fechou os olhos e levou as mãos até o rosto na tentativa de se proteger do impacto quando um turbilhão de folhas tomou sua frente. O ciclista chocou-se contra a parede de folhas com um baque surdo. Gabriel abriu os olhos e viu a bicicleta ao seu lado e o homem em cima de muitas folhas.
– Saí da ciclofaixa, garoto. Olha por onde anda! De onde veio esse monte de folhas? – Esbravejou o homem que usava roupas pretas coladas ao corpo e um capacete rosa.
Não era a primeira vez que folhas apareciam repentinamente quando Gabriel corria algum perigo. Quando tinha onze anos, brincava com seus amigos de esconde-esconde e ele resolveu se esconder na casa da vizinha. Aguardava que Lucas, o encarregado de procurar, afastar-se o suficiente para ele ir "bater cara". Viu que o garoto se afastou o suficiente, apoiou-se no muro e preparou-se para pular, sem fazer barulho. Carlos, que estava escondido no mesmo lugar, também teve a mesma ideia e, sem querer, empurrou Gabriel que se desequilibrou e caiu do muro. Olhou para o chão duro e pensou que seria uma difícil aterrisagem. Fechou os olhos na queda e sentiu cair em algo macio. Quando abriu os olhos se viu em cima de um amontoado de folhas que não estavam ali antes. Sem contar o episódio de dois dias atrás com os cipós. Parecia que a natureza gostava dele.
Gabriel ajudou o ciclista a se levantar, pediu desculpas tímidas. Olhou para trás, na esperança de os amigos não terem visto nada. Fernanda e Joana estavam de pé e de punhos cerrados. Gabriel acenou para elas na intenção de dizer que estava tudo bem e saiu andando, dessa vez pelo meio da rua onde as bicicletas não transitavam. Continuou em frente e viu um grupo de garotos correndo com os celulares nas mãos. Será que eles encontraram rastro do monstro raro? Gabriel correu em direção do grupo de jovens na esperança de encontrar com Ivan, Diogo e Ricardo.
Se desculpou com o ciclista, que continuava embasbacado com a repentina aparição das folhas, e saiu da Rua do Sabiá, passou por entre as árvores e entrou na Praça da Paz onde havia muitas pessoas olhando os celulares. Ele atravessou o local, ora olhando para o celular, ora para a multidão e nada dos amigos. Entrou no meio de um arvoredo onde ouviu uma risada marcante seguida de uma voz rouca.
– Vejo que tem potencial, garoto. Eu vi o que fez apouco com o ciclista. Tenho certeza de que é realmente você quem procurávamos.
Gabriel parou abruptamente e tentou recuar andando de costas, mas tropeçou em uma raiz e caiu sentado no chão e sufocou um grito. Na frente dele estava um homem negro musculoso, seus olhos eram inteiramente brancos, nas mãos haviam apenas três dedos como garras assim como os dedos no pé da única aperna. Usava uma saia e um gorro vermelho que dançavam com a brisa, pareciam ser feito do tecido mais leve do mundo. Tinha um cachimbo na boca e duas cabaças presas na cintura e desta vez não as asas não eram visíveis.
– Afinal de contas, o que é você? Por que está me seguindo? – perguntou Gabriel de olhos arregalados e boca aberta.
– Muitos me conhecem como Saci, mas prefiro ser chamado de Pedro. – Disse girando o cachimbo nas garras da mão direita.
– Saci? Você é apenas um mito, não existe! Como pode?! Como pode?! Devo estar delirando ou em um sonho muito demorado.
– Ou então você fumou alguma coisa já que está falando com algo inexistente. Talvez tenha enlouquecido, talvez nem esteja vivo. – Disse o monstro aproximando o rosto ao do garoto, arregalando os olhos brancos e sorrindo.
– Você deve ser algum tipo de ator que está em alguma filmagem. É isso? entrei sem querer em algum set de filmagem?
– Olhe para meu corpo, garoto. Vê algum tipo de corda me segurando?
– Não, não vejo nada. Por quê?
– Você acha que alguém com apenas uma perna poderia fazer isso?! – O homem se agachou e depois pulou tão alto quanto a copa das árvores caindo de pé sobre sua única perna, segurando o cachimbo e sorrindo. – Acha realmente que alguém normal, um ator, poderia fazer esse tipo de coisa? – Sorriu maliciosamente, girou em seu calcanhar, uma rajada de vento e misturado com folhas, pedras e poeira levantou-se e, quando a poeira baixou, o Saci havia sumido o deixando com ainda mais perguntas.
TRANSFORMAÇÃO.
Gabriel acordou, mas não abriu os olhos. Talvez tivesse sonhado um sonho muito louco onde se encontrava com o Saci em pessoa no Parque Ibirapuera e ele preferia ser chamado de Pedro. Quais as chances de isso acontecem? Bom, na última semana foram pelo menos três vezes! Mas pensando bem, quais as chances de as folhas terem aparecido na frente do ciclista bem na hora em que ele iria colidir com Gabriel? Ou dos cipós evitarem que Thorto fosse atropelado? Quais as chances de as folhas aparecerem bem na hora em que iria se espatifar no chão. Será que o Saci era seu anjo da guarda?
– Há! Há! Há! Há! Há! Há!
– Acordou, meu filho? Estava cansado, hein! São quase seis horas da manhã. Levanta belo adormecido! – Ouviu a voz arrastada de sua mãe Ester vinda da cozinha.
Ele abriu os olhos e ficou encarando o teto por algum tempo. Se, realmente aquilo aconteceu, o que o Saci quis dizer com ele ter um grande potencial e dele realmente ser a pessoa que eles procuravam? O que o Lobisomem quis dizer com ele ser filho de uns tais de Sol e Céu? Quem eram eles e por que estavam procurando por Gabriel? E, agora que o encontraram o que fariam?
Ele levantou e arrumou a cama deixando o lençol bem esticado, dobrou o cobertor, foi até o banheiro tomou um banho demorado e reflexivo. Será que mais alguém teria se encontrado com o Saci? Se contasse para Nick seria chamado de louco e receberia o conselho de visitar um psicólogo pois poderia estar muito estressado com a grande quantidade de serviço ou com o início do ano letivo.
Gabriel vestiu uma calça jeans azul clara, colocou uma camisa preta e foi para cozinha tomar café da manhã. Passou requeijão em uma fatia de pão, completou com fatias de presunto e queijo muçarela e colocou no micro-ondas para esquentar um pouco. Pegou uma xicara e colocou um pouco de café fresco, adoçou com açúcar, retirou o pão do micro-ondas e sentou-se na mesa para comer.
– Aí está você. – Disse Dona Ester, entrando na cozinha com o avental em mãos – Como estão as coisas no trabalho?
– Aquilo está uma loucura, mãe. As próximas semanas serão bem corridas pois haverá muitas contratações.
– Em épocas assim Seu Fábio não sai da empresa.
– Acho q ele literalmente está dormindo no serviço.
– Seu Fábio é realmente muito dedicado e tem boas pessoas ao seu lado.
– É sim. Toda a equipe está se esforçando muito para que a obra comece o mais rápido possível, mas pra isso tem que estar tudo regularizado. Hoje o dia vai ser bem corrido.
– Como você tem se desenvolvido na empresa? – Ester colocou um pouco de café em uma xicara, o adoçou com adoçante e se sentou à mesa com Gabriel.
– Tenho ido bem. Esforço-me e tento fazer as coisas com perfeição para não ter que fazer duas vezes.
– Você não pode tentar! Tem que fazer o melhor ou não fazer. É muito ruim quando alguém critica nosso trabalha. – Disse Ester e depois tomou um gole do café.
– Pode deixar. Mesmo com as coisas bem feitas, sempre tem um que fala mal.
– Deixe que falem. O importante é você fazer o seu melhor e a empresa reconhecer seu trabalho.
– Não deixo as críticas me afetarem. Absorvo aquilo que é construtivo e o resto apenas ignoro. Geralmente as pessoas não sabem o que falam e só o fazem para te atingir.
– São pessoas que tem um coração ruim! – Disse Ester pegando um biscoito do pote de vidro que estava sobre a mesa. – Mudando de assunto, como foi a festa? Ontem foi domingo e a gente não se viu.
– Foi muito boa, mãe. A senhora viu as fotos? Sabia que o Nick fez todo mundo vir fantasiado, menos eu?
– Vi as fotos sim e assisti um pouco da live que o Ivan estava fazendo. Quem você acha que ajudou o Nick a fazer a fantasia dele?
– A senhora sabia e não me falou nada, mãe?! – Gabriel se levantou e foi até a pia lavar a louça que havia sujado.
– Ele disse que era surpresa, então eu não podia falar né!
– Vocês dois sempre aprontando!
– O bom foi que a casa não ficou bagunçada! Eu pensei que passaria o sábado organizando tudo e pra minha surpresa estava tudo limpo. Não tinha nem louça na pia.
– A galera ajudou a arrumar. Nicolas intimou geral e em menos de uma hora estava tudo limpo e organizado. – Disse ele depois de secar e guardar o copo.
– O Nick sendo o Nick! – Disse Ester limpando a mesa com um pano branco.
– Agora tenho que ir, mãe. Não posso me atrasar. – Disse Gabriel pegando a mochila e dando um beijo na testa de Ester.
– Bom serviço, filho. Vai com Deus!
– Amém.
Gabriel saiu pela porta da cozinha, pegou o pote onde ficava a comida de Thorto e colocou um pouco na tigela em que o cachorro comia. Olhou a caneca de água e ela estava cheia. Parecia que ele havia se recuperado do susto que tomou há alguns dias atrás quando o Lobisomem, o Saci e o Boto apareceram na vizinhança. Coisa que o garoto ainda não conseguiu esquecer.
O dia estava nublado e caia uma fina garoa típica do outono em São Paulo, só que ainda faltava um mês e meio para esse começar. "Pode ser a transição entre as estações" Pensou ele enquanto andava até chegar no ponto de ônibus. Gabriel olhava para todos os lados imaginando que há qualquer momento um ser mitológico pudesse aparecer. Quem seria desta vez? Talvez a Caipora o abordasse rodeada de fumaça, pensou ele.
O coletivo não demorou a passar e ele, com muito esforço, entrou no ônibus. Na região havia muitas pessoas e o transporte público oferecia pouca condição para que todos pudessem se locomover com comodidade. Como Gabriel morava distante do final de uma das linhas ele tinha que se espremer entre a maioria dos passageiros que, como ele, viajavam em pé. Até o momento nada de anormal aconteceu e ele se permitiu distrair em uma conversa de bom dia com Jessica pelo celular.
Dez minutos depois de pegar o ônibus ele desceu e se dirigiu para a estação de metrô Capão Redondo. Naquele horário o local era sempre muito cheio de pessoas e automóveis. Ao lado da estação havia um terminal de ônibus intermunicipais que, sempre que chegavam de Itapecerica da serra e do Embu das Artes, deixava ali dezenas de pessoas que viajavam nas mesmas condições precárias que ele viajou. Mais de noventa e cinco porcento dessas pessoas se juntavam com as centenas que vinham de fora do terminal e subiam as escadas rolantes afim de entrarem no metrô que por sua vez também fazia o seu percurso com mais gente que deveria ter. Então Gabriel mais uma vez viajava espremido entre os demais passageiros e assim também foi no trem da CPTM que pegou da estação Santo Amaro Até a estação Berrini onde era sua última parada.
Ali o movimento de pessoas era menos intenso que no Capão Redondo, mas, como a calçada da Marginal Pinheiros era estrita e os pedestres andavam tão calmos que pareciam desfilar, sempre ficava difícil de andar e chegar até o centro empresarial aonde trabalhava.
Gabriel passou pela porta eletrônica e logo estava no saguão de entrada todo revestido de mármore carrara gióia. Passou pela catraca, cumprimentou o segurança que usava terno preto, camisa branca, gravata listrada com as cores vermelho e preto e um fone de lapela na orelha e entrou no elevador que estava parado de portas abertas. Normalmente naquele horário havia fila para pegar um dos seis elevadores, só que desta vez ele era o único passageiro. Apertou o botão do décimo sexto andar e alguns segundos depois ele estava na recepção.
– Bom dia, Tânia. Como vai? – Perguntou ao se aproximar do balcão da recepção.
– Bom dia, Biel! Estou ótima e você? – Perguntou Tânia abrindo uma gaveta e procurando algo. Ela usava um uniforme parecido com o do dia anterior, com o cabelo preso em um coque, batom vermelho e o mesmo decote de tirar a atenção.
– Estou bem. Muito trabalho hoje?
– Demais, menino. O Seu Juarez deixou esses documentos para você digitalizar. – Disse ela entregando um envelope de papel pardo para ele.
– Obrigado. Vou bater o ponto, tomar uma xícara de café e começar a digitar. – Disse Gabriel abrindo o envelope para ver a quantidade de serviço que teria.
– Um ótimo dia de serviço pra você!
– Obrigado, Tânia. É... Era mesmo este envelope? Ele está vazio.
– Ué, foi esse que o Seu Juarez me entregou. Vou ligar na sala dele pra ver se ele não se enganou.
– Não precisa. Eu vou lá e pego. Bom dia de serviço pra você. – Disse ele batendo um dedo no balcão e se afastando.
– Tudo bem, então. Bom dia.
Gabriel foi até uma porta de vidro que só abria para quem tinha um crachá roxo ou da diretoria. Como ele trabalhava no RH, encostou seu crachá roxo no leitor e esse liberou sua passagem abrindo a porta. Andou por um corredor largo onde havia um filtro de água branco com detalhes azuis fixado na parede e logo abaixo uma pequena mesa de madeira com alguns copos plásticos, uma bandeja com uma garrafa de café e uma cesta de palha com alguns biscoitos embalados. Diversas portas de madeira com pequenas placas descrevendo quem eram seus ocupantes completavam a decoração do local. Ele foi até a porta onde estava escrito Vice Presidente e bateu três vezes com os nós dos dedos.
– Pode entrar. – Disse uma voz grave de dentro da sala.
Gabriel girou a maçaneta, abriu a porta e entrou em uma sala pequena, porém aconchegante. No canto direito havia uma estante preta de dois metros de altura por um metro de comprimento, cheia de livros em suas prateleiras e um vaso de barro com uma planta chamada clorofito. Na frente da estante havia uma mesa em "L" preta e marrom com um notebook, um vaso de vidro de com orquídea branca e uma cadeira preta na frente. Atrás da mesa uma grande janela de vidro transmitia luz para o ambiente e na parede do lado esquerdo três quadros brancos com apenas alguns riscos em cada, se destacavam na parede azul escuro.
– Bom dia, Seu Juarez. Tudo bem? – Perguntou Gabriel fechando a porta enquanto o homem o cumprimentava. — A Tânia me entregou esse envelope e disse que era pra eu digitalizar os documentos, mas não há nada dentro dele. - E estendeu o envelope vazio para o homem negro, careca com uma barba bem feita e grisalha, que usava óculos e um terno preto e estava sentado do outro lado da mesa.
– Com toda essa correria devo ter esquecido de colocar os papéis dentro. Me desculpe. – Desde que Gabriel trabalhava ali Juarez tinha o mesmo olhar triste. – Esquece a digitalização, vou falar pra Tânia pedir um carro de aplicativo e você vai até a Paulista com o Nicolas. – Abriu a gaveta e tirou outro envelope pardo. Esse parecia ter algum volume dentro, pois até se curvou. – Aqui está o endereço. Vou ligar para o Rodrigo e pedir para ele autorizar a entrada de vocês. Ele deve demorar algumas horas até assinar todas as vias, então vocês podem aproveitar essas horas livres para passear e talvez visitar o parque Trianon.
– Como vamos saber que os documentos estarão assinados? – Perguntou o garoto pegando o envelope.
– Vou pedir para ele me avisar e te envio uma mensagem.
– Tudo bem. O senhor precisa de algo mais?
O homem deu um suspiro profundo e inesperadamente o encarou. Ficaram em um silencio por trinta segundos, o que para o garoto foi uma eternidade.
– Seja vigilante e sempre escolha o lado do bem. – Disse ele encarando Gabriel.
– O que quer dizer com isso?
– Nada demais. É algo que costumo levar comigo. Achei interessante compartilhar com você.
– Hum! Não vou me esquecer. – Disse o garoto saindo da sala. – Até mais tarde.
– Até.
– Rom dia. "Cof, cof"! Bom dia, Gabriel. – Ele ouviu uma voz feminina, porém rouca, pigarrear e o cumprimentar enquanto ele fechava a porta do escritório.
– Bom dia, dona Colette. Tudo bem? – Disse ele há uma mulher branca e magra, com o cabelo grisalho e curto penteado com um topete. Usava uma camisa social xadrez em vermelho e preto, calça jeans azul preta e bota marrom. Seus olhos eram fundos e amarelados.
– Vou bem e você? Muito trabalho para hoje?
– Sim! Essa semana tende a ser bem corrida!
– Você nem imagina o quanto! Um bom dia de serviço para você! – E entrou na porta de madeira envernizada que tinha uma placa que dizia: Supervisora Chefe.
Gabriel não teve tempo para desejar o mesmo pois a mulher o deixou sozinho com um forte cheio de cigarros. Colette era extremamente viciada e a única funcionária que podia fumar em sua sala. Todos os estagiários tinham medo de falar com ela.
Como ainda faltavam dez minutos para o início do expediente ele pensou em ir até o refeitório para tomar um café, passou ao lado da recepção sem ser notado por Tânia, que atendia o telefone, e entrou em um corredor próximo dos elevadores. Na parede havia um filtro de água todo prateado com um porta copo do lado, um cesto de lixo em baixo. Perto da porta e na mesma parede tinha um relógio de ponto biométrico onde ele colocou o dedão e após um segundo o objeto mostrou seu nome do visor digital e imprimiu um pequeno papel com alguns de seus dados comprovando que ele havia dado entrada no serviço.
Após colocar o comprovante no bolso da calça, Gabriel entrou no refeitório. O local com cerca de dezoito metros quadrados e era repleto de mesas redondas e em cada uma delas tinha quatro bancos. Em três paredes, micro-ondas e filtros de água ficavam suspensos em cima de prateleiras de madeira branca e na outra parede tinha quatro geladeiras brancas e duas pias embaixo das grandes janelas que davam luz ao local que estava ocupado por duas mulheres que conversavam alegremente na mesa mais distante. Uma loira de cabelos longos e solto por cima de uma blusa de lã rosa e a outra uma morena de cabelos lisos e longos por cima de uma blusa jeans azul. Ele sabia que eram Penélope e Emília. As duas trabalhavam com ele no RH. Em outra mesa perto da porta estava Ivan usando fones de ouvidos, uma blusa preta, calça jeans azul, sapato preto e de cabeça baixa.
– E aí, mano. Bom dia! – Disse ele se aproximando e se sentando na cadeira ficando de frente com o amigo.
– Salve, Biel! Bom dia! – Disse Ivan estendendo a mão direita para cumprimentá-lo e digitando no celular.
– O que "pegas"?
– Estou planejando meu programa dessa semana.
– No que pensou?
– Estou entre aquecimento global, doenças incuráveis e Terra plana. O que acha? – Disse Ivan agora o encarando.
– Só temas polêmicos e interessantes, em! Sua intenção é chamar atenção ou só jogar no ar mesmo? – Perguntou para o amigo que não tirava os olhos do celular.
– Eu quero que tenha alguma repercussão e que a galera interaja pra fazer o tema, qualquer que seja ele, se espalhe.
– Interessante! O que você acha do tema "Favela"?
– Desenvolva, Biel.
– O que você acha de "colar" ali na favela do marrocos e fazer conteúdo sobre a galera que mora la, sobre as condições de vida deles e o que eles esperam que seja feito no próximo governo?
– Porra, Biel! Curti a ideia! – Disse Ivan olhando para o amigo com brilho nos olhos.
– E você não precisa parar só nessa comunidade. Tem muitas favelas espalhadas pela cidade. Aposto que tem conteúdo para muitos vídeos!
– "Caraca", man! vou estudar com muito carinho o tema! Você topa ir comigo?
– Só "vamo"!
– "Demorô"! – E os dois saíram juntos do refeitório ainda conversando sobre os assuntos que poderiam virar conteúdo dos vídeos de Ivan.
– Gabriel, querido. Eu ia te ligar agora. O Nick está lá em baixo e o carro de aplicativo já está chegando. – Disse Tânia quando eles apareceram na recepção.
– Pensei que iria um pouco mais tarde. - Disse ele apertando o botão para chamar o elevador, tirando a mochila e entregando ao amigo. – Ivan, você coloca de baixo da minha mesa, por favor?
– Claro! Está atrasado para um encontro? – Disse Ivan pegando a mochila na hora em que o elevador chegou.
– Pelo o que parece estou sim. Ha! Ha! – Disse Gabriel entrando no elevador e apertando o botão do térreo.
Em poucos segundos ele desembarcava no hall dos elevadores onde o segurança ainda estava. Passou por uma das três catracas que dava acesso ao lado do saguão onde tinha algumas mesas espalhadas, um quiosque de café e salgados e o balcão da recepção com duas recepcionistas que conversavam alegremente. Ele se dirigiu até a grande porta de vidro que dava acesso à Marginal Pinheiros. Nicolas estava sentado no banco de madeira comendo uma coxinha e tomando um refrigerante em lata enquanto esperava o carro chegar. Usava uma calça jeans preta, uma camisa social roxa pra fora da calça e um sapatenis marrom. Hoje seus cabelos estavam presos em um coque samurai.
– Bom dia, Biel! Quer um pedaço? – Disse Nick oferecendo o lanche.
– Bom dia! Tomei um café reforçado.
– Ainda bem! Assim sobra mais! Do jeito que a Tânia falou, pensei que você já estivesse aqui em baixo.
– E eu pensei que o taxi já estava aqui. – Disse Gabriel se sentando ao lado do amigo e olhando para o intenso tráfego de automóveis da avenida à sua frente, para as embarcações navegando lentamente e algumas pessoas pescando num rio onde há alguns anos atrás isso era impensável de tão poluído que ele era.
– Essa semana as pessoas da empresa estão muito tensas. Espero que passe logo.
– Enquanto não contratarem todos os trabalhadores para a obra vai ficar assim.
– Ai, Biel. Tem que ser rápido. Não aguento trabalhar de domingo.
– Quando for dia de pagamento a gente vai se dar bem.
– Essa é a parte boa. Acho que é o nosso vindo ali. – Disse Nick apontando para o carro branco que se aproximava pela rua de pedras do conjunto de prédios. - Vou jogar isso no lixo. – E foi até a lixeira próxima do banco em que estavam e dispensou a lata de refrigerante vazia e o guardanapo em que outrora havia uma coxinha.
O Carro não demorou em encostar no meio-fio. Gabriel abriu a porta de trás do veículo e os dois entraram e se sentaram.
– Bom dia, rapazes. – Disse o motorista olhando-os pelo retrovisor com seus pequenos olhos castanhos. Usava uma camisa social branca com listras cinza. O homem branco aparentava ter cerca de sessenta anos, com um bigode tão cheio que tapava parte da boca. Tinha cabelos grisalhos apenas nas laterais da cabeça que em cima era lisa e brilhante.
– Bom dia moço. – Disse Nick. – Te passaram o endereço?
– A Tânia deixou especificado na do aplicativo. Colocaram os cintos?
– Já sim. Pode ir. - Disse Gabriel puxando o cinto para se certificar que estava bem preso.
O motorista seguiu com o carro de vagar para sair da área do condomínio, pegou a esquerda e entrou na Marginal Pinheiros onde acelerou no limite da pista. Gabriel abriu um aplicativo que mostrava como o trânsito estava e depois de colocar o endereço de destino e dar início à rota viu que cegariam em vinte minutos.
– Como estão as coisas, Biel? – Perguntou Nick olhando para ele.
– Estão bem e com você? - Disse Gabriel olhando para as pessoas entrando na estação Berrini.
– Tudo bem, também. E como é sua namorada?
– Ela é legal, divertida, simpática, bonita. Nem sei como ela se interessou por mim.
– Você é tudo isso também, Biel! Talvez tenha recebido milhares de cantadas das meninas por aí e nem se deu conta.
– É! Pode ser. – Disse Gabriel pensando nos acontecimentos dos últimos dias e lembrando-se do encontro com os seres folclóricos.
– Você está mesmo bem?
– Ah, Nick! Muita coisa tem acontecido comigo e não sei se dou conta de tudo isso. Pra falar a verdade eu acho que não sou capaz de fazer frente à essas coisas.
– Porque você acha que não é qualificado?
– Primeiro que eu não sei o que eles querem comigo e depois olha pra mim. Olha de onde eu venho!
– Biel, querido. Não importa de onde você veio e sim para aonde você vai e qual caminho vai pegar para chegar até lá.
– Como vou saber qual lado escolher se eu nem os conheço?
– Quem são eles? Quais são as suas opções?
– Não dá para dizer agora, Nick.
– Olha, Biel. Não importa quem ou o que é! Você deve sempre escolher o lado do bem. É sempre o caminho mais difícil, mas é o mais gratificante. – Disse Nicolas colocando a mão sobre o braço esquerdo de Gabriel afim de conforta-lo. – E tem seus amigos que sempre estiveram com você para ajudá-lo. Então relaxa.
Os dois conversaram alegremente sobre os vídeos polêmicos de Ivan enquanto o carro deslizava pela Avenida Nove de Julho.
Gabriel era uma pessoa que sempre lutava pelo bem e não tinha dúvidas de qual dos dois lados escolher. Além do mais sua mãe sempre disse que se ele virasse um delinquente ela mesma lhe daria uma surra até que se endireitasse. Só que ele não sabia onde o Saci morava. Teria que aguardar até que o ser monstruoso o visitasse novamente.
– Chegamos, garotos. – Disse o motorista parando o carro na frente de um grande prédio espelhado, se virando pra trás e sorrindo para eles.
Os dois desceram do automóvel. Gabriel começou a olhar ao redor. A Avenida Paulista era mesmo um local impressionante, um dos logradouros mais importantes do município de São Paulo. Ele sabia que a via tinha certa de dois mil e oitocentos metros e eram poucos os espaços sem prédios. Era uma das regiões mais elevadas da cidade, chamada de Espigão da Paulista. Considerada um dos principais centros financeiros da cidade, assim como também um dos seus pontos turísticos mais característicos, a avenida revela sua importância não só como polo econômico, mas também como centralidade cultural e de entretenimento.
Ali estava um grande número de sedes de empresas, bancos, consulados, hotéis, hospitais, como o tradicional Hospital Santa Catarina e instituições científicas, como o Instituto Pasteur, culturais, como o MASP e o SESC Avenida Paulista. Também não deixa de existir o lazer, contém grandes shoppings e uma diversidade enorme de lugares para comprar, por exemplo, desde o Shopping Paulista e o Cidade São Paulo, até os vendedores ambulantes.
Era impressionante a quantidade de pessoas nas calçadas e veículos que iam para todos os lados tentando encontrar seu espaço na larga e extensa via.
Ele olhou para o lado esquerdo e viu uma pequena área verde entre toda aquela floresta de pedras e logo acima das copas das árvores, em um pequeno espaço azul, mesmo sendo dia, a lua cheia tentava aparecer num céu pintado de cinza pelas nuvens.
– Biel, você vai lá entregar os papéis? Não precisa de mim para isso, né? – Disse Nicolas indo se juntar a ele.
– Tudo bem. O que vai fazer? Vai comer? – Disse Gabriel sorrindo para o amigo.
– Me conhece tão bem! Tome aqui. Tânia me deu cinquenta reais para comermos algo enquanto esperamos e eu troquei com o motorista. – Nicolas estendeu a mão direita com uma nota de vinte e outra de cinco reais e entregou a Gabriel. – Eu vou ao mirante do MASP e te espero lá. Quando sair daí me manda mensagem.
– Certo. Deixa alguma coisa pra eu comer, em!
– Então não demora. – Disse Nicolas e saiu andando na direção das árvores.
– Chega de admirar a paisagem. – Disse Gabriel para si girando em seus calcanhares e indo na direção da entrada do prédio. Era difícil de andar devido a grande quantidade de pessoas que passavam por ali.
Ele quase esbarrou em um senhor negro de terno azul claro que continuou andando e nem olhou para atrás quando o garoto pediu desculpas. Após se esquivar de algumas pessoas e com certa dificuldade, chegou até a entrada do prédio que tinha a base de dez metros de altura em pedra marrom, vidros pretos que iam do topo da base até a cobertura onde algumas plantas indicavam que lá em cima havia um grande jardim suspenso. Ele foi até a grande porta de vidros negros e empurrou por uma das duas maçanetas de madeira.
O chão do saguão de entrada era de cerâmica branca com alguns quadrados pretos. Sete metros depois da entrada havia um balcão de recepção preto fosco com cerca de cinco metros de comprimento onde havia duas atendentes brancas uma de cabelos castanhos presos e a outra com um black power loiro bem armado, as duas usavam maquiagens leves e uniformizadas com uma blusa de lã preta, era tudo o que ele conseguia ver das garotas. Atrás do delas tinha uma grande parede de bambus envernizados que se cruzavam e iam do chão até o teto. Em cada extremidade do balcão havia duas catracas e um segurança usando terno preto, camisa branca e gravata vermelha.
– Bom dia! Em que posso ajudar? – Perguntou sorrindo e com a voz suave para ele a garota de cabelos lisos.
– Bom dia! Eu tenho uma entrega para Rodrigo Jacundes no sétimo andar. – Disse ele se aproximando do balcão.
– Qual o seu nome?
– Gabriel.
– Ah, sim! O senhor já está pré-liberado. Me empresta o seu RG. – Continuou a garota agora digitando algo no teclado do computador.
– Aqui. – Disse Gabriel entregando o documento para a garota na mesma hora que um homem com cerca de um metro e noventa de altura, cabelos grisalhos, que usava um terno todo cinza passava pelas catracas e ia em direção à rua.
– Vanda. Quando os rapazes chegarem você autoriza a entrada deles, por favor? – Disse o senhor em tom gentil antes de alcançar a porta de vidro.
– Ah! Seu Rodrigo. Um deles está aqui. – Disse a garota apontando para Gabriel.
– Olá. – Disse o homem para o garoto que acenou com a cabeça. – Você pode fazer o cadastro e me esperar lá em cima ou deixar o envelope com elas e andar por aí. Só vou tomar um café e devo terminar de analisar e assinar até o almoço, então entrarei em contato com o Juarez e ele com você. O que acha?
– Por mim está ótimo. Vou terminar o cadastro e conhecer um pouco mais da Paulista. – Disse Gabriel sorrindo para o homem.
– Tudo certo. Meninas, vocês guardam o envelope até eu voltar? – Perguntou Rodrigo e as duas acenaram positivamente para ele. – Ok! Um bom dia a todos. – E saiu pela porta.
– Por favor seu Gabriel, olha aqui na câmera para eu tirar uma foto sua. – Disse a garota entregando o documento para ele e apontando um pequeno objeto preto na direção de seu rosto. – Pronto! Quando o senhor voltar é só pegar um crachá de visitante aqui com a gente e subir.
– Beleza! Aqui está o envelope. – Disse Gabriel passando o objeto por cima do balcão. – Mais tarde eu volto. Bom serviço pra vocês.
– Obrigada! Bom dia! –Disseram as duas garotas ao mesmo tempo enquanto ele passava pela porta de vidro e voltava para a avenida.
Nesse curto tempo o fluxo de pessoas passado pela calçada não diminuiu, tão pouco a quantidade de veículos na via. As nuvens ainda tapavam o céu e o sol e uma fina garoa ensaiava uma dança com o vento que parecia não ter decidido para qual lado ir, ao contrário de Gabriel que pegou o celular e enviou uma mensagem para Nicolas para saber onde ele estava, foi para a esquerda fazendo zig zag pelos espaços entre os pedestres.
Depois de cinco minutos andando pela a calçada e se esquivando das pessoas, Gabriel chegou no vão do MASP onde algumas pessoas vendiam artesanatos sentados em cima de lençóis. Uma mulher branca de dreads loiros que iam até a cintura, usando um grande vestido colorido, estava sentada no chão de pernas cruzadas e sorria para uma senhora gorda que usava blusa e calça pretos e apontava para os objetos à venda espalhados pelo lençol. O local era bem movimentado, assim como a escadaria do mirante onde muitos jovens estavam reunidos. Alguns tiravam fotos, outros conversavam, se beijavam, se cumprimentavam, ou apenas admiravam, ali de cima, a vista da Avenida Nove de Julho.
Gabriel olhava para todos os lados afim de avistar Nicolas em algum lugar, mas não o encontrou. O amigo ainda não havia visto a mensagem no celular e tão pouco atendia suas ligações. Ele desistiu da caçada, voltou pelo vão do MASP e atravessou a Avenida Paulista na intensão de ir até o parque Trianon. Como estava com sede, comprou uma garrafinha de água em um foodtruck que estava estacionado na frente da entrada do parque e entrou.
O local era cheio de árvores e coberto por suas copas, isso somado ao dia nublado deixava o caminho de pedras um tanto obscuro, mas nada que o impedisse de caminhar e olhar as grandes aranhas em suas extensas teias que iam de um caule a outro. Por onde quer que olhasse a vegetação reinava. Era difícil de acreditar que no meio de tanto concreto havia um espaço para sentar, relaxar e respirar.
Ali, os pombos pareciam não se importar com a presença humana. Enquanto Gabriel bebia quase toda a água da garrafa de quinhentos e dez ml's em um só gole ele viu algumas dessas aves andando livremente por entre as pernas de duas garotas ruivas, uma de vestido verde e a outra de vestido lilás, que passeavam tranquilamente e pareciam não se preocupar com os pássaros.
As garotas pararam na frente de uma construção com o telhado laranja a faixada coberta por azulejos brancos, uma porta de madeira envernizada e ao lado dela uma pequena placa com o desenho de uma mulher indicava que era o banheiro feminino. Enquanto uma entrou no sanitário a outra foi beber água em um dos muitos filtros espalhados pelo parque.
Gabriel olhou mais uma vez no celular e Nicolas havia recebido, mas ainda não tinha visto a mensagem, então resolveu reabastecer sua garrafa descartável com a água do parque num filtro próximo de uma estátua de mármore de um homem. Na base da obra tinha uma placa escrita: Bartolomeu Bueno da Silva, o segundo Anhanguera. Viveu de 1672 à 1740. Ele sabia que o homem tinha sido um importante Bandeirante, responsável por expandir parte do território brasileiro.
Ali, perto da estátua, parecia que a temperatura havia subido. Ele imaginou que talvez fosse a energia elétrica do filtro e pensando nisso encheu sua garrafa e foi se sentar num banco de concreto encostado em um Pau-ferro e de frente com a estátua.
Com o celular em mãos, Gabriel abriu o aplicativo de câmera para registrar a fauna e a flora do local. As aranhas inertes, pareciam adormecidas em suas teias, mas na realidade só aguardavam que algum inseto desatento ficasse preso nelas. Enquanto girava o celular e tirava as fotos, algo chamou sua atenção. A garota que antes estava de pé bebendo água agora estava se contorcendo no chão. Ele se levantou do banco em um pulo e correu na direção dela gritando por socorro.
Em poucos segundos ele chegou e se ajoelhou colocando a garrafa de água de qualquer jeito no chão e o celular no bolso. A menina se debatia e gemia serrando os dentes muito brancos. Parecia estar com muitas dores. Gabriel não sabia o que fazer. Tentou imobiliza-la segurando seus braços, mas foi arremessado por dois metros caindo de costas no chão.
- Marilia! Marilia! O que aconteceu com a minha irmã! O que você fez a ela? - Perguntou a irmã da garota ao sair do banheiro. Ele sabia que eram parentes, pois as duas eram iguais até nas sardas.
– Eu não fiz nada. Tentem acudi-la, mas ela me jogou aqui. – Disse Gabriel se levantando com certa dificuldade e indo de encontro às duas. – Não toque nela! Vamos procurar alguém para ajudar. – Continuou ele se aproximando da menina e pegando a garrafa de água que estava no chão. Ela estava com as duas mãos no rosto e uma expressão de terror e tristeza nos olhos.
– Ai, Má! Fala comigo! – Dizia a irmã agora soluçando e chorando.
A garota parou de se debater e gemer, mas não falou nada. Desta vez o som que ela emitia se parecia om um rosnado. Gabriel, que ainda gritava por socorro, se aproximou e viu que o rosto dela estava ficando coberto por pelos ruivos. Ele desconfiava do que vinha a seguir. Aquilo lembrava o homem que se transformou em cachorro em seu encontro conturbado com o Lobisomem.
– Ei! A gente tem que sair daqui agora! – Disse ele de olhos arregalados para a garota que ainda em prantos parecia não entender.
– Você só pode estar louco se pensa que vou deixar minha irmã sozinha nesse estado. – Disse ela pegando o celular em uma pequena bolsa rosa que estava na altura da cintura sendo sustentada por uma grande e fina alça que passava por seu ombro. – Eu vou ligar para o SAMU e pedir uma ambulância!
– Não estou louco, só que é difícil de explicar. Vem comigo que no caminho eu te conto.
– Eu vou ficar aqui até o resgate chegar. Não... – Ela parou de falar quando viu sua irmã ficando de quatro e começando a latir. A Garota, que antes se debatia no chão, agora balançava a cabeça de um lado para outro parando algumas vezes para mostrar os dentes e latir.
Seu rosto começou a esticar para frente e onde antes tinha um pequeno nariz empinado agora crescia um focinho preto. Suas orelhas ficaram cumpridas e caíram por sobre seu ombro não sem antes subirem para o topo da cabeça que ficava lentamente mais fina. Os pelos estavam mais nítidos e espalhados por todo seu corpo. Ela começou a morder e rasgar o vestido verde, como que se quisesse se livrar da roupa. Logo seu corpo estaria desnudo, não fosse a vasta pelugem alaranjada que ia da cabeça até o longo rabo. Ela se transformara em um grande Setter Irlandês, deu duas farejadas no ar e olhou fixamente para Gabriel.
– Marília? – Disse a garota de lilás.
– Algo me diz que ela não entende o que você fala. VAMOS CORRER! AGORA! – Gritou ele puxando a garota pelo braço e começando a correr.
Estranhamente, conforme avançava para a saída do parque, ele não viu nenhuma pessoa. Corriam sem olhar para trás. Passaram pela estatua do Anhanguera e continuaram pela estrita estrada de pedras. Chegaram a um ponto em que teriam que fazer uma curva fechada, Gabriel então decidiu cortar pelo canteiro de arvores e ao pular a guia ficou com o rosto coberto por uma grudenta teia de aranha. Seu maior receio era ter um daqueles enormes aracnídeos em suas roupas, mas não parou para verificar. Sem parar, se livrou do excesso do tecido branco e fino que estava em seu rosto desviando como pode das árvores e avistou a saída do parque.
– AI! - Ouviu a garota gritar e quando olhou para atrás ela estava caída com os pés enroscados em um cipó. Ele voltou para socorrê-la e viu não só um, mas oito cachorros correndo vorazmente em sua direção. Tentou puxar o pé dela, mas a planta parecia estar enrolada no tornozelo. Ele então segurou a planta na intenção de quebrá-la, mas ao tocá-la essa se afrouxou e a menina voltou a correr bem na hora em que um dos cães mordeu a planta em que ela estava presa.
Os dois avançavam e o cachorro, que antes era Renata, estava alcançando-os. Um feixe de luz solar iluminava o portão do parque. Só mais alguns metros e chegariam na rua. "Mas o que faremos depois? continuaremos correndo até que alguém pare os cachorros? Talvez o Saci apareça para nos salvar!" Pensou Gabriel e olhou pra trás afim de ver a distância entre eles e a matilha que para sua surpresa o mais perto estava há quase um metro dele.
A garota de vestido lilás já havia passado o portão e ele estava há três metros de distância dela. Temendo não conseguir sair do parque, Gabriel deu mais dois passos e pulou. Talvez alguém na calçada o visse sendo atacado por cães e o socorresse. Seu salto parecia ser eterno. Conseguia sentir o fraco calor do raio solar em sua cabeça, tronco e braços que vinha acompanhado do latido úmido do cachorro em sua orelha esquerda. Era tarde! Eles o alcançaram. Um trágico fim ser comido por cachorros em plena avenida paulista.
Teve um pouco de sorte ao cair e bater com a cabeça na garrafa plástica de água que segurava em sua mão direita, mas tinha certeza que a sorte acabou por ali. Um segundo após cair inerte na calçada gelada ele sentiu algo pesado caiu por sobre suas costas. A ideia de ter pedaços do seu corpo sendo arrancados por mordidas vorazes embrulhou seu estomago. Começou a ter comichão em suas pernas. Mas só sentia algo pesado por sobre seu corpo e nada de dor. Gabriel girou a cabeça para a direita o quanto pode e o que estava em cima dele era o corpo imóvel e nú de uma Renata que parecia dormir pesadamente.
Ainda sentia a comichão nas pernas. Com certa dificuldade, enfiou a mão no bolso e pegou o celular que vibrava desesperadamente. Era uma ligação de Nicolas.
– Fala, Nick. – Disse ele ao atender o telefone.
– Biel! Eu precisei sair correndo. Minha mãe caiu da escada e meu pai não está nem perto de casa para acudir ela e dentro do metro não tinha sinal para te avisar antes. – Disse o amigo.
– Tudo bem! Eu pego o documento e levo para o Seu Juarez.
– Eu já avisei a ele.
– Está bom! Mande notícias da sua mãe.
– Pode deixar, pretinho! Um beijo. Se cuida.
– Você também. – E desligou o celular encostando a testa na garra plástica viu que a água estava com o tom azulado e cintilante.
NÃO HÁ SEGREDOS.
– Mãe? MÃE?! – Chamou Gabriel quando entrou em sua casa. Aparentemente não havia ninguém no lugar.
Não tinha mais como ignorar o que estava acontecendo. Teria que procurar explicações e o único que poderia lhe ajudar, naquele momento, era o Saci. O problema era descobrir como o encontrar e enquanto não conseguia resolver esse detalhe, decidiu que era hora de desabafar com alguém e tentar enxergar as coisas por outro angulo e esse alguém tinha um nome e era Nicolas.
Gabriel colocou a mochila e a garrafa com a água azul cintilante ao lado da mesa de jogos, pegou seu celular deixou o corpo cair por sobre a cama enquanto abria o aplicativo de mensagem e dizia para o amigo que tinha que falar com ele hoje e não podia adiar. Logo abaixo havia algumas mensagens de voz enviadas por Jessica:
"Oi meu pretinho! Como está seu dia? O que acha de agente pegar um cinema na quarta?"
"Claro que sim, linda! Que horas é bom pra você?" – Perguntou ele ao responder a mensagem. Demoraria um pouco até que ela a visse então ele entrou no grupo de amigos no aplicativo de mensagens, mas não se interessou pelo assunto então não falou nada, bloqueou a tela do aparelho e fechou os olhos colocando as mãos entrelaçadas atrás da cabeça ficando assim até adormecer. Naquela tarde ele teve um sonho estranho.
Estava balançando lentamente em uma rede, como nunca havia se deitado em uma, teve dificuldades em sair desta. Viu-se em uma grande caverna bem iluminada, mas não havia lâmpadas, tochas ou outra coisa que iluminasse o local fresco e agradável. O chão não era de barro e sim de azulejos brancos com listras douradas. Lado a lado estes azulejos juntos formavam quadrados. Próximo da rede ficava uma escrivaninha marrom e sobre ela estava um pedaço de lápis, um pedaço de borracha verde e um papel em branco faltando um pedaço em uma das pontas.
O sonho ficava mais estranho a cada olhada no local. Próximo à rede, em cima de uma cama, coberta por um lençol azul claro, estava uma mulher branca adormecida. Alguns de seus dreads louro-esverdeados estavam espalhados de qualquer jeito por sobre seu rosto e Gabriel os tirou revelando o lindo rosto da mulher. Ela tinha algumas sardas espalhadas abaixo dos olhos fechados e seu nariz pequeno lembrava o dele. Seu rosto era fino e suas bochechas tinham um leve tom rosado. Era realmente muito bonita.
Ao pé da cama, também adormecido, estava um homem negro careca e nú que descansava a cabeça em cima de seu braço. Gabriel foi até ele e o cutucou, mexeu em seu ombro, o balançou, mas o ele não acordava. No chão, deitado de bruços, havia outro homem. Este era branco, usava uma espécie de vestido longo com diversas formas geométricas coloridas. Tinha barba e cabelos vastos e brancos. Estava deitado em uma posição estranha, seu dedo indicador da mão direita apontava para a mão esquerda e sua testa encostava o chão. A cena na caverna era assustadora.
Acima da cama, na parede, tinha uma frase escrita: "Contamos com você!" Uma luz alaranjada clareava uma pequena parte na outra extremidade da caverna. Gabriel foi até lá e viu um poço de lava borbulhante. Como todos haviam chegado ali se o que parecia ser a saída estava fechada e não tinha mais nenhum buraco ou porta? Ele colocou a cabeça sobre o poço e o calor o sufocou fazendo-o recuar imediatamente. Parecia que a caverna era protegida por uma espécie de magia. Ele esticou o braço direito por sobre o poço, sentindo todo o calor e uma bolha de lava estourou fazendo um pingo cair no dorso de sua mão.
Gabriel acordou suado e sentindo um forte ardor na mão direita. Ele olhou para ela e no local em que no sonho havia sido atingido pelo respingo de lava estava vermelho e tinha uma grande bolha de água causada pela queimadura. Ele correu para o banheiro, abriu a torneira da pia e deixou a água cair em cima da bolha por cerca de um minuto a fazendo diminuir. Abriu a porta do armário que ficava preso na parede em cima da pia, pegou uma pomada e passou no ferimento, depois pegou uma atadura e enfaixou a mão. Pegou o celular e viu que já eram dezenove horas e vinte minutos. Dormiu a tarde toda.
Tomou um banho rápido, com cuidado para não molhar o curativo, se arrumou, pegou a mochila e saiu de casa. Sabia que sua mãe ainda não tinha voltado da rua, pois ela o teria acordado aos gritos falando que estava atrasado.
A escola ficava ha cinco quadras de sua casa e ele levou apenas dez minutos para chegar no portão de entrada. Era fato que havia perdido a primeira aula como os demais alunos que entravam com ele. Apresentou sua carteirinha escolar e adentrou no pátio onde diversos grupos de jovens bem agasalhados conversavam livremente a céu aberto. Ele passou pelo grupo de Cáulon que não perdeu tempo em insultá-lo fazendo comentários sobre seu atraso. Gabriel apenas o ignorou e entrou em um grande salão onde a sua direita ficava uma pequena lanchonete com algumas mesas e cadeiras uniformemente espalhados, ao lado dela ficava a entrada da diretoria fechada por um portão de grades pintado de azul escuro, no fim do salão tinha um palco de madeira e em cada lado dele tinha escadas que levavam aos andares de cima. Ele caminhava às pressas para entrar na sala antes do sinal da segunda aula. Atravessou o salão cumprimentando e desviando de Lourenço, o professor de geografia que ia à direção da sala dos professores. O Homem tinha a mesma altura que Gabriel, cabelos grisalhos na altura dos ombros e o rosto cheio de pequenos buracos causados pela acne da infância, usava uma calça jeans larga e uma camisa preta com sapatos pretos seu andar lembrava um gingado de hip-hop.
Gabriel subiu dois lances de escada do lado direito do palco e chegou no comprido corredor onde haviam cinco salas de aula em cada um dos dois lados o que se repetia no andar superior e no corredor paralelo a esse. Ele caminhou até a sala sete que era onde a aula de história aconteceria. A porta estava aberta, então ele entrou.
O local estava cheio como sempre. Trinta e dois alunos, usando uniformes de camisa branca e calça e blusa verde, estavam sentados em carteiras que formavam sete fileiras. Ele foi até o fundo da sala onde seus amigos estavam sentados próximo à janela e se sentou na carteira vazia a frente de Nicolas e cumprimentou todos com um boa noite.
– Está atrasado, lindinho! Aconteceu alguma coisa? – Perguntou Nick.
– Dormi de mais. Perdi alguma coisa da primeira aula? – Respondeu Gabriel se virando pra trás e passou as alças da mochila no encosto da cadeira fazendo-a ficar pendurada.
– Não. A professora Ivanete veio se apresentar e dizer que era a coordenadora da sala e deixou a gente conversar. – Disse Joana.
– Boa noite, pessoal. Vou esperar mais cinco minutos pra ver se chega mais alguém. Fiquem à vontade. – Disse Pedro, o professor de história. Ele era negro, usava um pulôver preto com losangos vermelho e cinza por cima de uma camisa social branca, uma calça social e sapatos pretos. Era careca com olhos negros e profundos, tinha o nariz achatado e volumoso, sem barbas, o queixo um tanto arredondado e a boca carnuda e escura. Era um antigo conhecido de Gabriel pois era pai de Nicolas.
A sala, que antes haviam apenas murmurinhos em pequenos grupos, estourou em conversação, risadas e barulhos de cadeiras sendo arrastadas.
– E essa faixa na mão? – Perguntou Fernanda parecendo preocupada.
– É só uma queimadura de leve. Nada com o que se preocupar, Kika. – Ela parecia mais radiante depois do termino do relacionamento. – E como está sua mãe, Nick?
– Está bem. Ela só torceu o pé! Eu o enfaixei com uma toalha cheia de gelo e meia hora depois ela estava bem. Conseguiu entregar os documentos assinados?
– Ah, sim. Tive um pequeno contratempo, mas no fim tudo ficou bem.
– E qual foi esse contratempo, Biel? – Perguntou Joana com o braço apoiado por sobre a mesa e o rosto na mão, parecendo entediada.
– Depois eu conto.
– Tem a ver com o que você quer conversar? – Perguntou Nick.
– Tem sim.
– E o que é? – Perguntou Fernanda.
– Galera! Todos voltem aos seus lugares. – Disse o professor fechando a porta da sala.
– No intervalo a gente conversa. – Disse Gabriel se virando para frente.
– Para quem ainda não me conhece, eu sou Pedro Gomes de Benguela, professor de história. – Disse ele escrevendo o nome e a matéria no quadro negro que foi pintado no meio da parede de uma ponta a outra e com um metro de altura. – Como foram de férias?
– Bom! – Disse Emerson.
– Gostoso! – Respondeu Ana.
– Aproveitei muito! – Bocejou Guilhermina.
Todos se manifestaram. Cada um com uma resposta diferente.
– Bacana. – Continuou Pedro. – Mas agora estamos todos de volta para mais um ano letivo e que seja muito produtivo para todos nós.
– O senhor já vai passar algum conteúdo, professor? – Perguntou Márcia, Uma garota branca com cabelos ruivos e cacheados e mordendo o canto da boca batom com batom rosa claro.
– Sim, senhorita Alvarenga. Temos muito conteúdo este ano.
– Ah! – Suspirou ela decepcionada com a resposta.
– Prometo aguçar a imaginação de vocês! – Disse Pedro com um sorriso. – Hoje falaremos um pouco sobre história de São Paulo que foi escrita a fogo e a sangue pelos Bandeirantes. Alguém sabe me dizer quem foram eles?
– Sei que tem um monte de estradas e rodovias com os nomes deles. – Disse Ivan girando uma caneta azul despretensiosamente entre os dedos.
– Sim. Tem Vias, estatuas e outras homenagens feitas a eles espalhados pelo país. Mas o que esses caras fizeram? – Insistiu o professor com as palmas das mãos para cima e sorrindo largamente.
– Expandiram o território nacional? – Lorena uma garota morena de cabelos lisos e pretos respondeu com uma pergunta receosa de estar errada.
– Exatamente, senhorita De Lucca! Eles tiveram um papel fundamental na história nacional, mas não faziam parte dela, pois quem escreveu os livros da época foram os cariocas a partir de um ponto de vista deles. E lá em 1838, dezesseis anos depois do grito de independência, foi criado o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
"Em 1845, Dom Pedro Segundo lançou um concurso que se chamou: Como se Deve Escrever a História do Brasil. Quem venceu o concurso foi um Alemão chamado Von Martius. Ele escreveu um livro que durante anos foi o guia para se contar a história do Brasil e nele não havia nenhum bandeirante, até por que esse nome ainda não existia."
"Quando os senhores de São Paulo começam a enriquecer, graças ao cultivo do café em lavouras, os paulistas se deram conta que os feitos de seus antepassados não são citados nos livros e decidem contar a "história verdadeira". Então, nos anos vinte do século XX, estudiosos da época inventaram os bandeirantes."
– O que o senhor quer dizer com inventam? Eles não existiram? – Perguntou Gabriel na hora em que a porta se abriu e Cáulon entrou sem falar nada.
– Senhor Peçanha, aguarde do lado de fora, por favor. – Disse o professor ao garoto que saiu deixando a porta aberta. – Um minuto. – E saiu da sala fechando a porta.
A sala se inflamou com conversas paralelas que não duraram trinta segundos, pois Cáulon entrou pela porta seguido por Pedro. O garoto pegou uma cadeira e arrastou lentamente até o fundo oposto ao grupo de Gabriel.
– Voltando a sua pergunta, senhor Santos. Os Bandeirantes existiram! Só que eles não tinham esse nome. Eram criminosos. Fora-da-lei. E esse é mais um motivo para eles, até então, não fazerem parte da história nacional. - Continuou Pedro andando de um lado para o outro da sala.
"Os bandeirantes não se vestiam com aquelas roupas robustas que vocês veem nos livros ou nas estátuas espalhadas pela cidade. Na realidade eles andavam de pés descalços, com roupas esfarrapadas. Muitos falavam só o idioma Tupi e eram conhecidos como piratas do sertão. Gente que vivia do que roubava."
– Eles também pulavam em uma perna só, professor? – Perguntou Cáulon com o ar de riso no rosto.
– Ridículo! Rum! – Disse Nicolas baixinho!
– É possível que sim. Quando eles se machucavam, talvez. – Disse Pedro despreocupado e com a mão direita no queixo. – Bom! O nome bandeirante surgiu muito tempo depois desses caras terem caminhado pelo país. La no século XIX. Antes eles eram chamados de paulistas ou sertanistas, pois viviam no sertão. Alguém pode me dizer o que é sertão?"
– Segundo o site de busca significa deserto; terras selvagens, desabrigadas. – Disse Joana com o celular na mão.
– O site de busca está certo, senhorita Campos. Mas guarda esse celular. – Disse Pedro em tom de reprovação. – Só que naquela época as terras não estavam desertas, elas eram ocupadas por centenas de milhares de indígenas. Milhares desses nativos foram mortos em confrontos com os Bandeirantes e estima-se que cerca de quatrocentos mil índios foram escravizados e vendidos.
Pedro pediu para os alunos formarem grupos de até oito pessoas e fazerem um trabalho sobre um dos cinco bandeirantes que ele mesmo sorteou. O grupo de Gabriel ficou com Bartolomeu Bueno da Silva, o segundo anhanguera.
Mesmo Nicolas tendo um ataque de pelancas depois de Cáulon fazer uma piada sobre os bandeirantes se comunicarem através de sinal de fumaça causado por seus cachimbos, a aula correu bem. A atitude dele era compreensiva, já que o professor era seu pai.
– Nojento! - Disse Nick se sentando depois de Joana o acalmar. – Você tem dinheiro aí, Biel? Depois dessa eu fiquei com fome.
– Pode deixar que o lanche eu pago. – Disse Gabriel na mesma hora em que o sinal tocou anunciando o intervalo.
O arrastar de cadeiras e a falação recomeçou conforme os alunos se levantavam e seguiam para fora da sala e se juntavam aos demais jovens no corredor. Gabriel não queria pegar uma fila muito grande na lanchonete, então se adiantou e desceu as escadas antes dos demais. Estava ansioso em desabafar com Nicolas e tirar parte da angustia que sentia.
Foi um dos primeiros a chegar no local que ia lotando aos poucos.
– Boa noite, querido. O que gostaria de pedir? – Perguntou uma senhora branca e baixa, de cabelos brancos e curtos que usava óculos redondos com uma armação vermelha, um avental azul escuro com pequenas bolas brancas por cima de uma camisa preta.
– Boa noite, Dona Carlota. Quero dez coxinhas e um refrigerante de dois litros. – Gabriel fez o pedido sabendo que Nicolas não economizava a boca na hora de comer.
– O.K! Tudo fica trinta e sete reais.
– Aqui. – Gabriel pegou duas notas de vinte reais em sua carteira e entregou para a mulher.
– Obrigada! Pode se sentar na mesa doze que em breve eu levo para você. – Disse Carlota entregando o troco para ele.
Ele pegou os três reais, agradeceu e foi sentar-se na mesa branca com quatro cadeiras de madeira que foi apontada pela mulher. Não demorou muito e Nicolas chegou acompanhado por Fernanda e Joana.
– Olha! Aqui está o meu amigo “gatíssimo”. – Disse Nick um pouco alto para se fazer entender com todas aquelas vozes dos alunos que, em pouco tempo, ocuparam o salão. Ele Puxou a cadeira, colocou a mochila no chão e se sentou de frente com Gabriel. - Trouxe bastante dinheiro né? Você vai tem mais duas bocas pra alimentar. Há! Há, Há!
– Olá, Biel! A minha eu pago. – Defendeu-se Fernanda colocando a mochila no chão e sentando-se ao lado de Nicolas. Seus olhos encontraram com os de Gabriel e ela sorriu para ele. – Não precisa se preocupar comigo. – Disse afastando parte dos cabelos do rosto e os colocando atrás da orelha direita.
– Eu também pago a minha. – Disse Joana ao sentar-se entre Gabriel e Nicolas. Ela levantou a mão esquerda tentando chamar a atenção de uma atendente.
Logo uma mulher negra que usava uma calça preta, camisa branca, uma toca de rede preta e sapatos pretos chegou ao lado da garota.
– Boa noite, senhorita. O que gostaria de pedir?
– Quero um milk shake de morangos. – Falou Joana.
– Eu quero um açaí com banana e leite condensado. – Disse Fernanda.
– Eu quero um x-bacon e um suco de laranjas. – Pediu Nicolas e continuou assim que o atendente se afastou. - Vamos! Desembucha! O que está lhe afligindo, gato?
– É que eu queria conversar com você em particular. Até me adiantei e pedi dez coxinhas. Nada pessoal, garotas. – Desculpou-se Gabriel.
– Hum! Uma boa pedida para a entrada! – Disse Nick passando a língua nos lábios. – Você acha mesmo que elas não sabem tudo que você fala pra mim, lindinho?
– Tudo? – Espantou-se Gabriel.
– Hum! Tudo. – Sorriu Joana.
– Tudinho, tudinho. – E Fernanda ficou vermelha com a afirmação.
– Kika, então você sabe que...
– Sei sim. – Disse Fernanda ainda mais vermelha.
– Sabemos! Eu tenho que ir ao banheiro. – Falou Joana ao se levantar.
– Nicolas! Eu te mato! – Disse Gabriel olhando para o portão da diretoria e sentindo seu rosto esquentar. – Há quanto tempo você sabe, Kika?
– Acho que bem antes de o Nick me contar, eu vejo seus olhares para mim.
– E o que você acha disso?
– Biel! O que eu acho não importa. Você está em um relacionamento e o assunto é outro. O que você queria falar de tão importante com o Nick? Fiquei curiosa. – Fernanda era mestra em mudar de assunto.
– Diga logo que esse papo romântico já es tá me dando sono. Se bem que é tão bonitinho. – Nick sorriu ao dizer.
– Que seja. – Gabriel começou a dizer quando Joana sentou-se ao seu lado, apoiou um cotovelo na mesa, segurando seu rosto com a mão e o encarou. Todos na mesa o olhavam atentamente.
– Bem! Sabe ontem, quando eu sai para procurar o Ivan, o Ricardo e o Diogo no parque? – Ninguém falou nada, então ele continuou. – Teve uma hora em que eu entrei no meio de umas árvores e... Como eu vou dizer isso?
– Apenas deixe as palavras saírem. – Disse Joana.
– Também acho que essa é a forma mais fácil, gato! – Ironizou Nick.
– Não é tão simples assim. Bem. Foda-se. Eu vi o Saci.
– Tá bom! Deixa de piada e fala o que você veio aqui pra dizer, Biel. – Disse Nicolas calmamente enquanto Fernanda e Joana trocavam um olhar de cumplicidade sem Gabriel perceber.
– É exatamente isso o que eu vim lhe dizer, Nick! Eu vi o Saci! Bem, ele prefere ser chamado de Pedro, mas isso não muda o fato de eu tê-lo visto. Estava na minha frente, negro, alto, com um gorro e uma saia vermelhos, o cachimbo e só tinha uma perna.
– Vamos dizer, hipoteticamente, que você realmente tenha visto alguém. Como pode ter tanta certeza de que era o Saci, ou Pedro, e não uma pessoa fantasiada? – Perguntou Nick ainda calmo.
– Ele deu um pulo que passou da copa das árvores do parque e aterrissou como se não tivesse feito nada. E não tinha cordas prendendo o corpo dele! Depois girou e sumiu. – Gabriel rezou para que não estivesse parecendo um idiota na frente de Fernanda, agora que ele sabia que ela sabia que ele gostava dela.
– E pap... E o Saci falou com você? – Nick perguntou ao pegar uma coxinha da cesta de bambu coma s dez unidades trazidas pela atendente da lanchonete.
– Sim! Disse que eu era quem eles estavam procurando, que eu tinha potencial e chegaria longe com um bom treino. – Agora eu pergunto. Eles quem? Potencial para quê? Treino do quê? – Perguntou Fernanda.
– Talvez, você seja uma espécie de alienígena ou faça parte do universo dele. – Disse Joana calmamente, puxando o milk shake pelo canudo.
– Achei a história muito interessante. Você já tinha visto ele antes, Biel? – Pergunto Fernanda, parecia mesmo interessada.
– No dia do meu aniversário eu vi não só ele como também o Boto e o Lobisomem. – E Gabriel contou toda a história para os três amigos que ouviam atentamente.
– E por que ele acha que você tem potencial para alguma coisa? – Perguntou Nicolas, dando um gole em seu suco.
– Não sei, Nick. E tem mais. Hoje, quando você teve que ir até sua casa uma garota se transformou em cachorro no parque Trianon. – Depois de contar o que aconteceu ele tirou a garrafa com a água azul cintilante e mostrou para todos.
– E essa folha aqui? – Nick apoiou-se na mesa a descolou da garrafa. – Ela é muito bonita e diferente com essas pontas douradas. Qual é a espécie dela?
– Não sei, minha mãe me deu um bonsai de presente quando eu ainda era muito pequeno. Essa folha é dele.
– Ahhh! Posso ficar com ela? – E sem esperar a resposta colocou a folha no bolso da calça.
– Pode sim. - Disse Gabriel.
– O que você colocou na água pra ela ficar com essa cor, Beil? - Perguntou Joana pegando a garrafa.
– Nada. Eu a peguei no Parque Trianon e ela ficou assim depois de um tempo.
– E a garota se transformou depois de beber a água no filtro de lá? - Perguntou Fernanda tirando um frasco transparente de vidro da sua mochila. – Posso pegar um pouco da água?
– Se me prometer que não vai beber, pode sim. – Disse Gabriel.
– Prometo. Eu conheço um químico. Vou ver se ele sabe me dizer o que está misturado a ela. – Disse Fernanda pegando a garrafa de Joana e despejando um pouco da água no frasco. Depois o tampou e o guardou em sua mochila.
– Você já tinha feito as folhas voarem como fez ontem no parque ou no dia do seu aniversário? – Perguntou Nicolas ainda interessado.
– Uma vez quando era pequeno. Elas apareceram e amorteceram minha queda.
– Bom! Acho que temos que esperar até que algum ser do nosso folclore apareça novamente e revele o que eles querem com você. – Joana falou pensativa. – Talvez as folhas apareçam quando você está em perigo e o treinamento pode ser para aprender a controlar isso.
– É tudo muito interessante, só que sem mais pistas não vamos conseguir chegar a lugar nenhum. – Disse Fernanda segurando o colar de ouro com a pedra verde em seu pescoço.
– Então, vamos mudar de assunto. – Apressou-se Nicolas. – O Rick nos convidou para fazer uma trilha e aproveitar uma cachoeira em Paranapiacaba nesse domingo. O que acham? Tem até horário, vamos estar todos em frente do metrô Capão às quatro e meia da manhã por que é um pouco longe.
– Eu topo. – Disse Fernanda.
– Eu também. – Joana disse um tanto receosa. – Tenho que ver com mamãe antes. Ultimamente, ela anda tão apegada a mim. Ha!
– Tenho que ver com minha mãe também, mas é quase certeza que eu vou. – Disse Gabriel.
– Espero que você vá. – Fernanda falou ficando corada. – Espero que todos possam ir. – Apressou-se ela em corrigir.
– Ahhhhh! O amor não é fofo, Jô? – Disse Nicolas batendo palmas.
– Oh se é, Nick! – Disse Joana sorrindo. Gabriel sentiu o rosto esquentar mais uma vez.
Logo, mudaram de assunto e o Saci havia sido esquecido por todos. Ficaram na lanchonete até o soar do sinal indicar que as aulas seriam retomadas. Os próximos dois períodos foram de literatura e a professora Mércia também passou muito conteúdo da matéria, fazendo-os copiar da lousa parte da biografia de Machado de Assis.
CONFUSÃO ARMADA.
A semana de Gabriel passou rápido. Na quarta-feira foi ao cinema com Jessica e viram um filme sobre diferença social em que uma família muito pobre tentava se infiltrar no cotidiano de uma família muito rica. Ele achou o drama muito interessante. Na quinta-feira, quando chegou do serviço, Camila e Maria Flor estavam em sua casa com sua mãe e, de tanto brincar com sua prima, acabou se atrasando para a aula. Com a grande quantidade de serviço e o trabalho escolar, sexta- feira e sábado passaram no que pra ele foi um piscar de olhos.
Gabriel acordou, tentando lembrar do sonho que acabou de ter. Dois homens conversavam sobre uma mulher que estava precisando de ajuda. Se não fosse um sonho, poderiam pedir uma ambulância. Talvez estivesse muito cansado da semana cheia e os estranhos acontecimentos também podem ter mexido com seus pensamentos.
Olhou para o relógio e faltavam dez minutos para as quatro horas, horário em que iria despertar. Levantou-se, tomou um banho, colocou uma camisa verde, uma bermuda jeans larga e uma bota marrom, pegou sua mochila, foi até o quarto de sua mãe e deu um beijo em seu rosto.
– Juízo hein, menino. Juízo. – Disse Dona Ester sonolenta. – Se cuida. Bom passeio.
– Pode deixar, “mainha”. Vou me cuidar.
E saiu da casa para encontrar-se com os amigos na frente do metrô Capão Redondos. Chegou ao local as quatro e trinta e cinco da manhã. Todos já estavam reunidos aguardando a estação abrir, o que iria acontecer dentro de cinco minutos.
Eles vestiam roupas leves e carregavam mochilas. A previsão do dia era de calor. Além da mochila Ivan levava levava também um violão.
– Enfim o Margarido apareceu! – Disse Nick quando Gabriel se aproximou. – Pensamos que não viria. Eu já ia ligar para o senhor, Biel.
– Não calculei bem o tempo até aqui e não passou nenhum ônibus enquanto eu vinha. – Disse Gabriel bocejando.
– Agora é só esperar o metrô abrir e... Pah! Quatro horas de transporte público e mais duas horas andando na trilha até chegar ao pote de ouro, a Cachoeira da fumaça. – Disse Ricardo, alegremente enquanto um funcionário do metrô, que vestia seu uniforme composto por calça, camisa de manga curta e sapatos cinza, veio abrir as portas.
– Bom dia, garotada. Madrugaram na porta hoje. Vão passear? – Disse o rapaz com um sorriso na voz.
– É... Sim. Vamos fazer uma pequena viagem e tentar voltar ainda hoje. – Ironizou Ivan ao passar pelo funcionário. – Bom dia de trabalho.
–Bom dia e divirtam-se. – Se despediu o funcionário.
Entraram no primeiro trem que saiu da estação, foram até Santo Amaro onde fizeram baldeação e pegaram o trem até Pinheiros. Desceram cinco lances de escada rolante e mais uma baldeação até a estação Paulista. Entraram em um trem até a estação Tamanduateí e foram até a cidade de Rio Grande da Serra. Ricardo não estava brincando quando disse que seriam quatro horas de transporte público. O que mais cansou não foi estar no transporte e sim a caminhada que tinham que fazer para chegar em cada trem.
– Agora é só pegar um ônibus e pedir para o motorista nos deixar na primeira trilha, depois... – Dizia Ricardo, irradiando felicidade por dar a notícia aos presentes.
– Deixa-me adivinhar! Pah! Mais duas horas de caminhada por uma trilha. Acertei? – Perguntou Nick. Parecia irritado. – Gente, só eu estou com fome aqui?
– Vamos comer alguma coisa naquela lanchonete ali? O Nick tem que comer pra manter o corpinho. – Falou Diogo dando risada e Ivan logo o acompanhou nos risos.
– Você acha que é fácil manter-se em forma assim, benhê?! – E Nick passou a mão pelo corpo e deu uma rebolada.
– Poupe-nos dessa visão, Nick. – Falou Gabriel. – Eu também estou com fome. Vamos parar na lanchonete por vinte minutos e comer alguma coisa. Consegue esperar. Rick?
– Consigo sim. Eu também estou com fome. – Disse Ricardo. Parecia mesmo desapontado com a ideia de ter que parar para comer.
Todos pediram a mesma coisa, pão na chapa e café. Enquanto comia, Gabriel percebeu que um garoto branco, com os cabelos dourados amarrado em um rabo de cavalo e uma cicatriz do lado esquerdo do rosto o observava fixamente. Encararam-se por alguns segundos, o garoto desviou o olhar e saiu do restaurante pegando o celular para fazer uma ligação.
– Vocês viram como aquele cara era estranho? – Perguntou Gabriel.
– Que cara? – indagou Fernanda.
– Aquele loiro que estava aqui.
– Eu nem percebi. – Disse Joana dando uma mordida em seu pão.
– Ah! Eu o achei ele gatinho. – Disse Nicolas.
– Eu também o achei estranho! Parecia que estava te encarando. Você o conhece, Biel? – Disse Ivan depois de bater na mão de Diogo que, sorrateiramente, tentava pegar o pão em seu prato.
– Que eu me lembre não.
– Será que ele é da cidade? – Continuou Nicolas mordendo os lábios. Parecia muito interessado no garoto.
– Como se você tivesse alguma chance, Nick. – Falou Ivan passando a alça do violão pelo braço.
– Ficaria surpreso se soubesse das minhas aventuras, Ivanzinho. – Disse Nicolas levantando-se da cadeira após tomar o ultimo gole de café.
– Concordo. – Riu Fernanda. Gabriel reparou que Ricardo ficou muito agitado e apressou-se em dizer.
– Vamos andando, galera. Demoramos muito para chegar até aqui e o tempo para aproveitar o lugar é curto. Ainda falta um trecho de ônibus e mais uma boa caminhada mata adentro por uma trilha.
Andaram da Avenida José Belo até chegar na rua José Maria Figueiredo e pegaram o ônibus da linha 424.
– Bom dia, seu motorista. Quando a gente estiver chegando à primeira trilha para a Cachoeira da Fumaça o senhor pode nos avisar? – Pediu Diogo.
– Claro que sim, garoto. – Disse o motorista, um senhor negro e gordo com barbas grandes que usava uma camisa social azul clara, com uma gravata azul escura da cor da calça. Parecia muito feliz e acelerou o ônibus.
O ônibus atravessou a cidade pela Rua José Maria Figueiredo e diversos passageiros embarcaram. Todos estavam apreciando o passeio pela pequena cidade de Rio Grande da Serra. Em alguns minutos saíram da cidade e entraram na Rodovia Deputado Antônio Adib Chammas e após dez minutos, enquanto Ivan, Diogo e Nicolas dançavam a Macarena, ouviram a voz do motorista:
– O Próximo ponto já é o da trilha. Cuidado para não se perderem. Bom passeio, garotada.
–Valeu, “Motô”. – Gritou Ivan pegando suas coisas do banco. O ônibus parou e todos do grupo desceram.
–Bom galera! Prontos para a caminhada? – Perguntou Ricardo tomando a frente da fila.
Andaram cinco minutos pela Rodovia até chegarem a uma entrada entre as árvores. Entraram mata adentro seguindo Ricardo.
– Ahh! Alguém trouxe repelente? Tem mosquito pra todo lado. Olha o tamanho desse! – Protestou Fernanda, erguendo a mão e mostrando o mosquito morto.
– Ai, amiga. Eu tenho um repelente aqui na mochila. – Disse Nicolas, prontamente e parou para pegar o frasco azul. – Os mosquitos não são nada. Tu já viste o tamanho dessas teias de aranha? Que medo!
– É proporcional ao tamanho de suas donas que ficam lá “paradonas” só esperando que um desses mosquitões caiam em sua teia e... Vrauu! – Diogo imitou um animal dando o bote em sua presa. O garoto tropeçou em uma pedra e caiu de cara no chão de barro pisado. As risadas espalharam-se pelo local descontraindo e fazendo-os deixar de lado os gigantescos insetos.
Continuaram a andar pela mata até chegar ao Lago Cristal, um estreito rio que represava em uma grande bacia formando uma piscina natural e depois continuava seu curso em um fino canal.
Um lagarto verde passou perto de Joana que deu um salto e abraçou Ivan que estava ao seu lado. Gabriel olhou com atenção para o animal e viu que ele tinha uma cicatriz abaixo do olho esquerdo.
– Pode abusar, Jô. Estou aqui pra te proteger. – Disse Ivan retribuindo o abraço que logo foi desfeito pela amiga. Estava mais vermelha que um morango.
– Só te abracei porque era quem estava mais perto de mim. – Disse a garota ainda mais vermelha. – Podia ter abraçado uma árvore se ela estivesse no seu lugar.
– Uhum! Claro que podia. – Disse Ivan em tom de desdém.
– Só seguirmos o rio e logo chegamos à cachoeira. – Enfatizou Ricardo cheio de si.
Andaram por mais uma hora seguindo o fluxo do rio. O caminho era cercado pela flora da Mata Atlântica e o percurso nem sempre era seguindo o rio. Em certos trechos eles tinham que pular de um ponto a outro para não pisarem na lama, em outros não tinha como pular e os sapatos ficaram pesados com a terra grudada.
Havia diversas espécies de árvores diferentes. Talvez fosse sua ânsia de chegar ao destino, mas Gabriel pensou ter visto algumas plantas fazerem pequenas reverencias conforme o grupo passava. Vez ou outra eles se espremiam por fendas na terra causadas pela erosão. Mas quando chegavam novamente às margens do rio, hora estreito e hora largo, podiam lavar os sapatos e tirar a poeira acumulada do corpo.
Gabriel estava sentado em uma pedra de frente para o lago, admirando a paisagem verde ao redor. Nicolas aproximou-se, pegou uma garrafa e sentou-se ao seu lado.
– Muito bom estar na natureza, né Nick. – Disse, abrindo a garrafa e bebendo um pouco do seu conteúdo.
– Demais, Biel. Meu pulmão até levou um susto quando inspirei o ar limpo. – Disse Nicolas esticando as pernas.
– Há! Há! Há! Tem muita vida aqui. Fico com receio de pisar em algum animal sem querer. Olha ali mais um lagarto. – E apontou para o bicho que olhava para ele na outra margem do rio. Ele reparou que esse também tinha uma cicatriz debaixo do olho. – Ei! Aquele é o mesmo lagarto que deu um susto na Jô!
– Como você sabe? – Perguntou Nicolas, apertando os olhos para focalizar o animal.
– A cicatriz debaixo do olho esquerdo. Tenho certeza que é o mesmo. – Gabriel levantou-se e começou a caminhar na direção do rio, mas o lagarto correu para dentro da mata.
O grupo voltou a andar até chegaram a um trecho íngreme com cerca de trinta metros de extensão e muitas pedras grandes. Eles se seguravam nelas para subir como se fosse uma escalada. Nesse ponto, o barulho das águas parecia mais forte.
Quando alcançaram o topo puderam ver uma pequena cascata de água cristalina que descia entre as pedras e abastecia uma grande piscina natural. Ali algumas pessoas se banhavam, corriam e pulavam brincando na natureza.
–Bem! Aqui estamos! Senhoras e senhores o que seus olhos apreciam é a famosa Cachoeira da Fumaça em Paranapiacaba. Vamos aproveitar! – Ricardo jogou a mochila e a camisa nas pedras e pulou na água. Ivan, Nicolas, Diogo e Joana fizeram o mesmo.
Gabriel olhava toda a vegetação na esperança de encontrar alguma da mesma espécie que seu bonsai, mas nenhuma das que viu chegava sequer perto de parecer com a dele.
Aquele era o topo da cachoeira e a visão era espetacular. Ele aproximou-se da beirada da queda e se inclinou para olhar melhor. A água descia por entre as pedras e no fim da queda se formava um rio que desaparecia por entre as árvores. Distante, depois do imenso tapete verde formado pela vegetação, dava para ver as cidades de Cubatão e São Vicente que findava na praia. Gabriel Ficou admirando a vista por alguns minutos sem perceber que alguém sentava ao seu lado.
– É lindo, não? – Era Fernanda que escorou a cabeça no ombro direito dele.
– Realmente muito lindo! – Passou o braço por cima do ombro dela e ficaram juntos apreciando a paisagem.
– Você teve alguma resposta do químico sobre o composto na água, Kika? – Perguntou Gabriel.
– Ainda não, Biel. Mais tarde eu vou mandar uma mensagem pra ele e ver se já tem algum resultado. – Disse ela.
Dois pássaros dançavam em sincronia no ar enquanto poucas nuvens passeavam pelo céu azul.
– Os pombinhos vão ficar aí namorando ou vão aproveitar essa água maravilhosa? – Gritou Nicolas num salto antes de se chocar contra o rio mais uma vez.
Depois de uma hora relaxando e brincando na água gelada no topo da cachoeira, eles saíram para fazer um piquenique. Nicolas estendeu uma toalha de mesa no chão onde todos despejaram os lanches que trouxeram. Logo a toalha estava repleta de bolos, pão, patê, sucos, balas, bolachas e todos se deliciavam.
– Galera! Só tenho a agradecer a força que vocês deram na arrecadação de alimentos. A população da favela do Marrocos que recebeu a doação ficou muito grata. – Disse Ivan observando Nicolas cortar um pão de sal e colocar uma banana dentro. – Isso ai fica gostoso?
– Hum! Isto aqui fica divino, meu caro amigo. quer um pedaço? - Disse Nicolas oferecendo o lanche para o amigo.
– Não! Obrigado. Vou comer uma coxinha mesmo.
– Não sabe o que está perdendo! E como está a reconstrução das moradias?
– O solo mal esfriou e metade dos barracos que foram queimados já haviam sido reconstruídos.
– Algum órgão do governo ajudou? – Perguntou Ricardo enquanto colocava suco de laranja num copo de plástico para Nicolas.
– Que nada. Foi tudo com doação. Nós fizemos uma força tarefa e arrecadamos uma grana dos comércios próximos. Alguns moradores também ajudaram com tábuas e ferramentas.
– Ainda bem que a própria população se ajuda, né! - Disse Joana passando, delicadamente, pate numa fatia de pão de forma.
– Vocês não sabem da maior. Eu abordei um garoto, falei da situação e perguntei se ele poderia ajudar de alguma forma. Sabem o que ele me disse?
– O quê? - Perguntou Fernanda olhando Ivan atentamente.
– Disse que não ajuda vagabundo. Que se a pessoa acordar cedo e ir trabalhar ela vai conseguir reconstruir o barraco sem ajuda de ninguém!
– Mentira?! – Disse Nicolas com a boca cheia de pão.
– Não to aqui fazendo juízo de valores, mas o cara não tinha mais de que dezoito anos, estava dirigindo um carro que no mínimo foi dado pelos pais, nunca deve ter batido um prego numa barra de sabão e fica falando uma asneira dessa. – Disse Ivan colocando uma casca de banana dentro do saco plástico que estava reservado para guardar o lixo.
– O pior é que esse tipo de preconceito está implantado na sociedade. O rapaz que você abordou é o tipo de pessoa que tem um estilo de vida e julga o outro a partir desse estilo de vida. Não para pra pensar que a pessoa com um salário mínimo tem que pagar as contas de água, luz, colocar comida dentro de casa, comprar material escolar, roupa entre tantas outras coisas necessárias para a sobrevivencia. – Disse Gabriel antes de morder uma maçã.
– E ainda tem que ficar feliz de chegar no final do mês sem ficar doente. Se isso acontecer o estrago pode ser ainda maior. – Disse Joana encarando o grupo com o rosto numa expressão de perplexidade.
– Como seria bom se o mundo fosse um lugar mais justo e sem essa exploração descontrolada de ser humano para ser humano.
– Fico comovido com essa sua utopia de mundo perfeito, mas você está se esquecendo de que as pessoas não querem igualdade. As pessoas querem guerra. E é essa guerra que faz o mundo se mover e se renovar. – Era Cáulon junto com mais uma garota e três garotos. Um deles era o que Gabriel tinha visto na lanchonete há algumas horas atrás. Todos vestiam roupas pretas e riam da piada de seu companheiro.
– Concordo com tudo o que o Ivan falou. – Gabriel disse ao se levantar. – Se o mundo fosse um lugar mais justo poderiamos, quem sabe, até acabar com as guerras.
– Eu não iria querer viver num lugar assim, com pouca ou sem nenhuma competitividade e com gente da ralé tendo a mesma coisa que eu. Quero tudo. Quero o mundo!
– Alguém arrogante e prepotente como você não chegaria tão longe. – Disse Fernanda e todos já estavam de pé ao lado de Gabriel.
– Calma, linda sereia. Não faça movimentos bruscos, filha de Iara. Esse pessoal aqui pode atacar caso se sintam ameaçados. – Disse Cáulon apontando para seus companheiros.
– Não sei se você prestou atenção na conversa, mas nós queremos paz. Então, fofinho, nos dê licença que estamos aproveitando o dia entre amigos. – Disse Nicolas aproximando-se de Cáulon. – Apesar de você ser um gatinho, não queremos nos misturar com sua turma.
– Olá, Nicolas! Como anda seu pai? Pulando em uma perna por aí? – Mais uma explosão de risadas veio dos companheiros de Cáulon.
– Ele conhece todo mundo, é? – Perguntou Ricardo. – Olha cara! Eu não sei quem você é e nem quem foram as pessoas que formavam a décima descendência de sua família. Só que nós viemos de muito longe para curtir uma tarde entre amigos, então, por favor, queira nos deixar em paz!
– Por que ele perguntou se seu pai está pulando numa perna, Nick? – Disse Gabriel confuso.
– Depois a gente conversa sobre isso, Biel. – Nicolas se virou mais uma vez para o garoto. – Será que poderia pegar o seu rumo, hein?! – E fez um sinal com as mãos para Cáulon e seus companheiros afastarem-se.
– O que é isso em sua camisa? – E com um rápido movimento o garoto pegou alguma coisa do bolso da camisa de Nick.
– Eu não vou pedir duas vezes. – Disse Nick, se inflando de raiva de um jeito que Gabriel nunca tinha visto antes. – Devolva-me isso.
– Onde foi que você conseguiu essa folha? - Cáulon ainda olhava para a planta com atenção. – Foi aqui nessa floresta? Impossível! Eu rodei cada centímetro desse lugar atrás da árvore. Será que deixei alguma coisa passar?
– Você vai se arrepender! Depois não vai chorar para a mamãe! – Disse Joana com os punhos fechados.
– Devolve logo, Cáulon. Não queremos encrenca. – Fernanda ofegava de raiva enquanto Nicolas bufava de raiva e se aproximava do garoto.
– Sai pra lá, “viadinho”. – E tentou empurrar Nick que não se moveu e nem se abalou com o empurrão. – Se vocês querem tanto essa folha vão ter que tirá-la de mim. – Ao dizer isso ele correu na direção árvores com seus companheiros nos calcanhares.
– Ahh! Você não vai fugir. Não vai mesmo! – Disse Nicolas e saiu correndo atrás do bando.
– Nick! Não vá! Volte!–- Disse Fernanda. – Ele não tem jeito mesmo! Vamos, Jô! Biel fique aqui com Diogo e os outros – Continuou ela correndo para alcançar Nicolas.
– Eu não vou deixar vocês irem sozinhos. – Disse Gabriel começando a correr. – Vocês fiquem aqui e cuidem das nossas coisas. Nós já voltamos. – Antes de entrar na mata ele gritou para Ivan e aos outros. – Eu espero que a gente volte. – Disse baixinho.
– Estão em um time bem equilibrado e se a gente for atrás, podemos nos perder. Melhor ficarmos aqui mesmo. – Disse Diogo.
Era difícil correr por aquele lugar. Tinha que desviar das árvores, seus cipós e também prestar atenção no caminho cheio de pedras e lama. Não conseguia ver ninguém por entre todas aquelas folhas. Gabriel parou e tentou ouvir passos ou vozes. Escutou barulhos que vinham da esquerda e começou a descer o barranco, tentando alcançar os companheiros. Chegou a uma clareira onde todos estavam parados e encarando-se.
– Me devolva esta folha. – Dizia Nicolas, há poucos centímetros de Cáulon.
– Só devolvo se me disser onde a conseguiu. – O rapaz respirava rápido e não tirava o olhar de Nick.
– Nunca que você vai saber, gatinho. Se não devolver por bem, vai me devolver por mal.
– Isso é o que vamos ver. – A aparência de Cáulon e seus amigos começou a mudar rapidamente. Ele assumiu a forma de um jacaré que ficou em pé sobre duas patas e tinha uma cicatriz em cima de seu nariz e os outros pareciam grandes lagartos bípedes. – Vem pegar. – Balançou a folha na frente do corpo com o rabo, colocou ela na boca e, mais rápido do que os olhos de Gabriel puderam acompanhar, Nicolas bateu com as costas em uma árvore que se quebrou e caiu por cima do amigo. O garoto se levantou, afastou a árvore como se fosse uma pequena pedra e sacudiu a poeira da camisa.
– Essa camisa foi caríssima e você me fez sujá-la. Eu não acredito nisso! – Nick pegou algo no bolso da bermuda, esticou a mão direita à frente do corpo e um cachimbo de madeira maior que ele apareceu. Ele escorou o cabo em seu ombro como se não fosse um guarda-chuvas. – Você me fez descer do salto. – Disse apontando o enorme cachimbo para Cáulon.
– O que você vai fazer? Me fumar? – Antes que o garoto começasse a rir, uma pancada o atingiu no rosto fazendo-o ser lançado contra uma grande rocha que se partiu com o impacto.
Gabriel não podia acreditar no que seus olhos viam. Como Nicolas podia ser tão forte, e de onde veio aquele cachimbo gigantesco? Será que ele era filho do Saci?
Não teve tempo para pensar no assunto. Os amigos de Cáulon correram em direção de Nick com as presas de fora. Se ele fosse atingido, poderia ter graves ferimentos. Gabriel inclinou-se para alertar o amigo, quando uma rajada brilhante e uma grande bola de água atingiram os homens-lagartos. Procurou para ver de onde os ataques vieram e viu que Joana estava com o cajado, que usou na festa de aniversário dele, na mão apontando para o local do impacto e Fernanda estava com os braços esticados e as mãos juntas à frente do corpo.
Joana corria levemente com saltos precisos pelas pedras no caminho. Bolas de energia saiam de seu cajado em disparada até o grupo de lagartos que se esquivavam rapidamente dos ataques. Um dos lagartos tomou folego e cuspiu uma gosma roxa na direção dela que escapou por centímetros. O golpe acertou uma árvore que começou a murchar e veio ao chão.
– Cuidado para isso aí não acertar você, Jô. – Gritou Fernanda desviando de um cuspe roxo. – Parece ser uma mistura de veneno com ácido. – Passou a mão no caule de uma árvore caída e dela saiu uma grande quantidade de água. Ela bateu com a palma da mão e metade do liquido saiu em disparada acertando em cheio a boca do lagarto que havia disparado o ácido. Ele caiu de joelhos com a mão na garganta. Engasgado e sem ar o monstro se debateu até voltar a ser um garoto desmaiado na grama.
– Boa, Kika! – Disse Joana, enquanto Nicolas corria rapidamente na direção de Cáulon que já havia se recuperado do baque anterior.
Nick rodou o cachimbo com os braços para o ar e golpeou de cima para baixo. Subiu uma grande quantia de poeira e folhas.
– Isso! – Disse Gabriel baixinho.
Mas Cáulon deu um grande salto antes de ser golpeado e vinha descendo em queda livre dos ares em alta velocidade na direção de Nicolas.
– OLHA PRA CIMA, NICK! – gritou Gabriel sem pensar.
Nicolas deu um passo para trás, enquanto Cáulon girou no ar antes de atingir o chão, flexionou as pernas pegando impulso e, depois de um rápido salto, acertou Nicolas com a calda que se defendeu do ataque com o braço, no momento em que três bolas ácidas voavam em sua direção.
– Kika, agora! – Gritou Joana disparando algo branco com o cajado e Fernanda, com movimentos dos braços, jogou o restante da água que retirou da árvore. Os dois disparos se chocaram no ar e uma grande esfera de gelo caiu na frente de Nicolas defendendo-o das bolas ácidas.
Elas mandaram outra rajada de poderes, dessa vez contra Cáulon. Nicolas levantou-se e arremessou o cachimbo para que os ataques se combinassem. O garoto estava encurralado, não tinha para onde correr. Seria acertado em cheio.
Um tremor tomou conta do local. Era tão forte que até as folhas das árvores começaram a cair. Gabriel se apoiou em uma pedra, que estava ao seu lado, para não cair e achou aquilo muito estranho. No Brasil não aconteciam tremores tão fortes. Ele olhou para Cáulon e do chão, na frente do garoto, começou a emergir uma rocha que foi ficando cada vez maior e robusta. Conforme saia da terra o pedregulho tomava a forma. Cabeça, ombros, braços, tronco e pernas.
O monstro marrom, com aspectos humano e duas vezes maior que Nicolas, recebeu os ataques em sua barriga e uma mistura de pedras e barro se espalhou ao redor de Cáulon.
Daquela distância, tudo que Gabriel conseguia ver era que o ser monstruoso tinha grandes espinhos que saiam do alto das costas e o barro em seu corpo formava músculos.
O monstro olhou para baixo e o lugar da barria que foi atingido começou a se regenerar. Ele levantou o rosto redondo, abriu a grande boca, que tinha a mandíbula para frente com duas presas que iam até o meio das bochechas, e soltou um urro ensurdecedor fazendo todos tamparem os ouvidos com as mãos.
– O reforço chegou e na hora certa. –Disse Cáulon aliviado. – Eu não quero ter que matar vocês, apenas me digam onde foi que arrumaram essa folha.
– Ai, ai, ai, fofinho. Se você acha que nos assusta com esse seu bichinho de estimação está enganado. Não vou falar nem morto. – Disse Nicolas que já estava com o cachimbo nas mãos e corria na direção do monstro de pedra e barro. Deu um golpe certeiro que tirou parte do ombro esquerdo que logo se regenerou e com um rápido movimento com o braço, o golem mandou Nicolas de encontro à vegetação. O garoto quebrou três árvores com as costas antes de conseguir parar com os pés enterrados no chão.
– Então vou tirar essa informação de vocês à força. – Cáulon saiu de trás do monstro e correu para o lado cuspindo sua saliva corrosiva na direção de Nicolas que se defendia com o grande cachimbo.
– Vai sonhando. – Disse Joana jogando uma grande quantidade de energia que estava concentrando no gigante de pedra.
O monstro parou a bola de energia com a mão direita e mandou na direção de Fernanda que fez uma barreira de água para se proteger e, com o choque, foi jogada para trás. Joana estava caída sem forças e Nicolas estava ocupado em uma batalha com Cáulon. O monstro de pedra corria em direção de Fernanda a passos pesados e impulsionou o braço direito para golpear a garota.
–Kikaaaaa! – Gabriel gritou esticando as mãos para frente.
O golem parou antes de conseguir atingir Fernanda. Gabriel notou que a perna esquerda do monstro estava enrolada com muitos cipós que saíram do chão e o impediram de continuar o ataque. Seu grito chamou atenção do ser de barro que com muita facilidade arrancou os cipós de sua perna e começou a correr em sua direção. Em poucos segundos havia sido alcançado. Gabriel ficou sem reação. Uma onda de pensamentos tomou sua cabeça. Saiu de casa sem dizer para a mãe que a amava. Quanto iria perder da vida? Quanta risada deixaria de dar? Não se declarou para a garota que amava. Não ouviria mais a delicada vós da Flor dizendo que era o curupira. Tudo estava perdido e era seu fim.
“Talvez eu nem sinta dor” – pensou ele.
Fechou os olhos para receber o golpe. A qualquer momento. Agora! Pah! Um forte vento passou por suas orelhas, mas o golpe não o atingiu. Ele abriu os olhos e se deparou com a parte de trás de uma mão grande o bastante para abraçar uma bola de basquete. Seguiu olhando o braço musculoso que tinha algumas cicatrizes, um bracelete de ouro nos bíceps, um colar de folhas no pescoço e os cabelos com chamas vermelhas ficavam em cima da cabeça com um rosto de javali coberto de pelos. Tinha chifres na têmpora e, mesmo com as presas saindo de sua boca, ele tinha um sorriso paternal.
– Desculpem o atraso. – Disse um vozeirão grave e com um solavanco mandou o golem na direção de Cáulon e seus companheiros lagartos que desviaram com um salto. – Está tudo bem com você filho?
– Como?! Se estou bem?! Vou ter que tomar remédios contra ansiedade pra ficar perto de bem? – Indagou Gabriel de olhos arregalados.
– Há! Há! Muito espirituoso! Eu sou o Curupira! Em breve a gente conversa. – E pulou na clareira onde a batalha acontecia.
O golem não gostou da interferência e armou uma investida contra o Curupira que com um rápido movimento com as mãos o prendeu dentro de uma esfera de energia fazendo-o desaparecer.
Fernanda ajudava Nicolas a se levantar com muita dificuldade. Joana, ainda meio zonza, caminhou pela clareira e se aproximou do ser folclórico.
– Por que demorou tanto para chegar, pai? – Disse Joana.
– Vim o mais rápido que pude, filha. Qual o motivo de toda essa confusão? – Curupira agora estava com a aparência de um homem de trinta e cinco anos e, se não fosse pelos cabelos em chamas, parecia um humano normal.
– Cáulon pegou uma folha do bolso de Nicolas e quis saber onde ele havia conseguido. Sabe como é o Nick, desceu das tamancas e quis brigar. Esse é o resultado. – Disse ela colocando as mãos na cintura.
– E quem invocou o golem?
– Saiu da terra e veio ajuda-los. – Disse Joana, apontando para o grupo de lagartos.
– O porquê de todo esse alvoroço, Cáulon? Só por causa de uma folha? Com tantas árvores aqui, por que pegar a folha do Nick? O que será que sua mãe vai achar disso quando eu aparecer na sua casa puxando você pelas orelhas?
– Desculpe-me, Senhor Marcus. Eu só estava querendo um pouco de diversão.
– Parece-me que queria mais do que apenas diversão, até invocou um golem!
– Foi só para dar um susto mesmo, senhor. Não deixaria que chegasse tão longe a ponto de matar alguém.
– Humm! Se eu não tivesse chegasse a tempo aquele garoto estaria morto.
–Apenas um pequeno descuido. – Cáulon estava de cabeça baixa, ajoelhado no chão enquanto Curupira diminuiu de tamanho e abaixou até chegar o rosto perto do dele.
– Deixe-me ver essa bendita folha. – Disse, estendendo a mão esquerda.
Cáulon levantou a cabeça, abriu a boca, pegou a folha e com a mão fechada fez um movimento para entregá-la, mas rapidamente cuspiu uma goma roxa nos olhos de Curupira que ficou momentaneamente cego e urrou de dor. Joana correu ao encontro do pai e uma fumaça preta encobriu o local. Fernanda lançou duas bolas de água e envolveu Joana e Curupira protegendo-os. Nicolas soprou em seu cachimbo e um forte vento fez a fumaça se dissipar. Na confusão, Cáulon e os outros haviam desaparecido.
NÃO PENSE NO PASSADO, OLHE PRA O FUTURO.
Curupira estava com as mãos estendidas por sobre Nicolas que tinha o corpo cheio de hematomas que sumiram aos poucos foi a vez de Fernanda. Os poderes de cura dele agiam rapidamente. Gabriel olhava atento o cabelo flamejante do ser que estava na sua frente. “Será que é quente?”. Aproximou a mão vagarosamente até as madeixas de fogo e antes de serem tocadas se transformou em cabelo.
– Acho que acabamos por aqui. – Disse Curupira, levantando-se e colocando as mãos na cintura. – Estão todos bem? – As duas garotas acenaram positivamente com a cabeça, mas Nicolas olhava com um tom choroso para sua roupa.
– Olha só o que aquele filho de uma “jacaroa” fez com minha linda camisa. Vamos embora! Tenho que passar no shopping para comprar roupas novas.
Curupira deu algumas palmadinhas nas costas de Nick e dirigiu-se a Joana.
– Como você está, minha filha? – Perguntou ele para Jô.
– Eu estou bem, papai. Só um pouco zonza. Acho que gastei muita energia naquele último golpe, mas vou me recuperar. – Disse ela.
– E você, Kika? Tudo bem? – Perguntou o homem para Fernanda.
– Nada que um bom banho de cachoeira não resolva, Marcus. – Disse ela olhando para Gabriel que retribuiu o olhar.
– Afinal de contas, o que Cáulon tinha pego de vocês?
– Ele afanou uma folha de um bonsai que minha mãe me deu quando eu ainda era criança. Mas o que há de tão precioso nessa planta afinal? – Disse Gabriel desviando os olhos dos de Fernanda.
– Como ela é? – Perguntou curupira para ele.
– Tem o formato triangular é verde e as pontas são douradas. – Falou Gabriel.
– Onde foi que sua mãe conseguiu esse bonsai?
– Ela nunca me falou onde foi exatamente, só que havia encontrado por aí, quando ainda era uma muda e levou para casa.
Curupira encarou Gabriel mais de perto, cheirou seu Black Power, depois olhou nos olhos verdes dele, segurou e levantou seus braços, apertou suas pernas. O garoto ficou meio sem jeito com o repentino interesse do ser folclórico.
– Pedro me falou de você. Disse que você fez uma barreira de proteção com cipós e folhas! É verdade?
– Pedro? O Saci? Meu professor de história e pai do Nick? – Perguntou o garoto olhando para o amigo.
– Ai, Biel! Sem drama. Olha para mim! Isso aqui sim é um problema. – Disse Nicolas ainda olhando para suas roupas.
– Sim! Esse mesmo. Ele costuma ser bem discreto. – Falou Curupira com um sorriso.
– É! Eu o conheço. Sempre foi muito legal comigo. – Disse Gabriel se sentando num tronco de árvore que estava caído próximo ao grupo.
– E ele é mesmo. Muita gente boa, o Pedro. E seu filho puxou seu ótimo senso de humor, não mesmo Nick? – Disse Marcus.
– Vou contar tudo para papai! Ele vai dar boas cachimbadas no rabo empinado daquela lagartixa! Oh se vai. – Disse Nicolas se sentando ao lado do amigo.
– Agora que o senhor falou do Seu Pedro, o que ele quis dizer a respeito de eu ter um grande potencial e eu ser a pessoa que eles procuravam?
– Esse seu bonsai, o caule dele é azul? – Perguntou Curupira.
– Sim! Como sabe? Conhece essa espécie de árvore?
– Essa, Biel, é a árvore da cura. É a espécie mais rara entre todas as árvores e o único exemplar que existe em todo o universo está na sua casa. Se Cáulon sabe quem você é, ele irá deduzir isso e dirá para Cuca que não medirá esforços para conseguir pegar a árvore. Temos que a proteger até que seja a hora de ser usada. Eu tenho um bom esconderijo. – Disse Curupira parecendo preocupado.
– Este bonsai está na minha casa desde que me entendo por gente e nunca ninguém tentou pegá-lo.
– Nunca ninguém soube onde ela esteve. – Disse Fernanda segurando o colar em seu pescoço.
– Estamos a milhares de anos vasculhando cada canto desse mundo a procura dessa árvore. Um dia sentimos a sua presença. Foi quando você tinha evitado de se espatifar no chão fazendo um punhado de folhas aparecer do nada. Tivemos que te observar de perto para ter certeza de que o poder veio de você e enquanto isso continuamos procurando a planta pelo mundo. Até agora. Depois do que vem fazendo nos últimos dias não temos mais dúvidas de que você é... – Curupira hesitou em continuar a frase.
– Que eu sou o quê? – Perguntou Gabriel.
– Falamos disso depois. Agora vocês têm que voltar para junto de seus amigos. Eles devem estar preocupados. Nos veremos em breve, Gabriel. Manda um abraço para seu pai, Nick! Espero que seus pais se entendam, Kika! Se cuida, filha. – Curupira abaixou os braços e uma chama vermelha o substituiu fazendo-o desaparecer.
Ninguém respondeu as perguntas que Gabriel fazia enquanto voltaram para a cachoeira. Ivan tocava um pop rock dos anos noventa no violão e Ricardo andava de um lado para outro preocupado.
– Eu tinha que ter ido junto, Nick é muito frágil pra enfrentar valentões assim. – Dizia ele.
– O Nick é frágil? Daquele tamanho todo? – Diogo encarou Ivan ao dizer. – As meninas são mais frágeis, não acha?
– Sim! Claro! As meninas. Sim. Eu incluo o Nick nesse meio. Sabem como ele é. Tem a alma feminina. Há! Há! Há. – Riu Ricardo meio desconcertado.
– Sei... Suspeito. – Ivan olhava para Ricardo com atenção quando avistou os garotos, emergindo por entre as árvores. – Olhe lá Rick, o Nick voltou.
– Ah! Graças a Deus! Está tudo bem com você Nick? – Ofegou Ricardo chegando mais perto. – Por que demoraram tanto? E o que aconteceu com suas roupas?
– O Nick protegeu-nos do Cáulon, rolando com ele no mato. Por isso sua roupa ficou assim. – Disse Joana, piscando para os outros.
– É! O nosso Nick pode ter a alma feminina, mas é muito macho! – Fernanda disse se adiantando e indo sentar-se na toalha onde antes estava fazendo o piquenique. – Eu estou com fome! Espero que vocês não tenham comido tudo.
– Estou começando a achar o Nick não é o único com essa tal alma feminina. – Disse Diogo baixinho para Ivan e os dois começaram a rir.
Depois de comerem e recuperarem as energias que faltavam, todos caíram na água para se divertirem como se nada tivesse acontecido. Gabriel não conseguia parar de pensar na batalha, mesmo com todas aquelas brincadeiras. Saiu da água e foi sentar-se nas pedras da queda d'água. Ficou imóvel olhando para a cidade logo abaixo. Não aceitava ser tão fraco a ponto de não conseguir mexer-se para ajudar seus amigos que, se não fosse por Curupira, teriam morrido.
– Não se cobre, Biel. Você não sabia o que fazer e mesmo assim nos ajudou. Se não tivesse me protegido, eu estaria morta. – Disse Fernanda se sentando ao seu lado.
– Eu nem sei como fiz aquilo, Kika. Se o Curupira não segurasse o golpe do monstro de pedra eu que estaria morto. – Lamentou Gabriel levando o olhar para longe de Fernanda.
– Foi mesmo uma sorte tio Marcus ter chegado bem naquela hora. – Disse ela colocando a mão por cima da dele. – Depois de alguns treinamentos tenho certeza que você ficará tão forte quanto qualquer um de nós.
– Por que você nunca me disse nada?
–Não queríamos dar um falso alerta, nem sabíamos se era mesmo você.
Gabriel abaixou a cabeça, fechou os olhos e cerrou os punhos respirando fundo.
– Mas se tivesse me dito antes, talvez eu pudesse ajudar mais.
– Não vamos pensar no que e nem como poderia ter sido se você soubesse. Hoje, agora, você já sabe um pouco. Ficará mais forte do que pode imaginar. Só espero que não se esqueça de mim. – Disse ela deitando a cabeça no colo de Gabriel que afagou os cabelos dela.
– Eu nunca vou me esquecer de você. Sempre que estou ao seu lado, sinto-me mais forte e... Não quero te perder.
Voltar para casa pareceu ser mais rápida do que a ida até a cachoeira. Gabriel mal se atentou que já era noite e estava na estação Capão Redondo se despedindo dos companheiros. Quando foi se despedir de Fernanda, a garota surpreendeu-o com um rápido beijo na boca deixando-o sem reação.
– Eu quero ser o padrinho, em! – Disse Nicolas num tom baixo só para Gabriel ouvir depois se despediu de todos entrando no carro de aplicativo como fizeram todos.
Gabriel chegou em casa e não conseguia esconder o sorriso de felicidade no rosto. Entrou pela porta lateral, colocou a mochila em cima do sofá e as chaves no pote em cima da estante, próximo a televisão.
– “Mainha”, cheguei!
– Como foi seu dia, meu filho? – A voz de Dona Ester veio da cozinha.
– Um pouco estranho, mas no geral foi muito bom!
– Eu acabei de passar um café, quer um pouco?
– Eu quero sim, mãe. - O garoto já estava na porta da cozinha com o sorriso ainda estampado no rosto.
– E esse sorrisão? Posso saber o motivo? – Disse Ester servindo uma xícara de café para o filho.
– Não sei como explicar, mainha.
– É por causa de uma garota?
– Sim.
– É Jessica? Usaram preservativo?
– Não é ela. Foi Fernanda.
– Que bom, meu filho. Fico feliz! Vocês usaram preservativo?
– Não é nada disso, mãe. Foi só um selinho e nada mais.
– E como fica sua relação com a outra garota?
– O que aconteceu entre eu e Kika foi só uma casualidade. – Disse Gabriel se levantando e colocando a xícara sobre a pia.
– Vocês são jovens! Que resolvam entre si. – Disse Ester esticando o braço esquerdo e entregando seu copo para o garoto. – Seu tio perguntou quando você vai falar com ele para resolver a questão do seu visto.
– Por mais que seja uma boa oportunidade, é aqui que eu quero ficar, mãe. – Disse ele começando a lavar a louça.
– O motivo são as garotas?
– Não. O motivo é que aqui estão as coisas que eu amo! A senhora, a Flor, Camila, meus amigos, meu trabalho. Enfim.
– Nós estaremos aqui quando você voltar.
– Mesmo assim, não quero me distanciar de ninguém.
– Bom! Se você está decidido, tudo bem! Vai decepcionar seu primo. – Disse ela secando o copo com um pano.
– Ele supera.
Após mais de uma hora conversando com sua mãe, Gabriel tomou um banho e foi para seu quarto relaxar, pois teria uma longa semana pela frente. Mas o estrese dos próximos dias seria amenizado pelo simples fato de a Fernanda estar por perto. Deitou em sua cama e começou a lembrar dos acontecimentos e revelações daquela tarde. Logo pegou no sono.
Teve um sonho estranho. Estava viajando muito rápido pelo universo, em uma enorme nave espacial. Na imensa sala de controles ele conferia o radar ultrassônico para se certificar que não bateriam em nada durante o percurso.
– Mais duas galáxias e chegaremos à Via Láctea! Muito em breve vamos pousar no planeta em que meu irmão está. Depois que eu tiver a árvore da cura poderei usar seu poder para evitar que o universo desmorone. Vou proteger tudo aqui após a inevitável morte de mamãe. A Cuca deu notícias? – Disse ele com a voz rouca e fraca olhando pelo vidro e apreciando o brilho das estrelas.
– Sim, senhor. Ela está perto de encontrar a árvore e disse que os poderes de seu irmão enfim despertaram. – Disse alguém com uma voz fina e nasalada atrás dele. Gabriel não conseguia ver seu dono.
– Isso não será problema. Em pouco tempo meus subordinados mais poderosos chegaram na Terra e ele não terá a mínima chance. Nem Jurupari pôde com eles. Cof! Cof!
– O senhor está bem, meu amo?
– Estou ótimo! A Cuca falou o quanto está perto de encontrar a árvore?
– Ela disse que na data marcada ela estará esperando com o prometido no que eles chamam de aeroporto.
– Certo! Em dois anos terrestres chegaremos lá e espero ver aquele lugar sem nenhum humano. Deixe-me só!
–Como desejar, meu senhor!
Gabriel acordou suado e com a respiração acelerada. Olhou para o relógio e já era hora de levantar para ir trabalhar. O que significava aquele sonho? Nicolas certamente teria um bom comentário a fazer depois que escutasse sua história.
Levantou-se, tomou um banho e se arrumou. Colocou uma camisa verde, uma calça preta e em sapato branco. Foi até a cozinha e tomou café da manhã. Eram sete horas e entrava no serviço às nove. Seu trajeto não levava mais que quarenta minutos, então ainda tinha algum tempo.
Foi até o quarto de sua mãe e despediu-se com o beijo no rosto de todas as manhãs e ouviu o "se cuide" de sempre.
No caminho de trem para o serviço, olhou para o rio Pinheiros com águas cristalinas, onde muitos banhistas e pescadores aproveitavam a manhã ensolarada do fim do verão. Observou algumas crianças jogando bola às margens do rio e quando foi necessário uma delas mergulhou para pegar a bola. Será que ele teria feito o rio se limpar quando chegou a esse planeta?
Como pode ter feito isso sem ter consciência do que fazia? Se tinha todo esse poder por que só conseguia fazer aparecer algumas folhas no seu caminho?
Era tudo muito novo na vida de Gabriel, seus pensamentos só giravam em torno dos últimos acontecimentos, mas tudo se esvaía quando pensava no beijo que Fernanda lhe deu no dia anterior. Sabia que poderia superar qualquer coisa, desde que ela estivesse ao seu lado.
O dia no escritório parecia não ter fim. Ainda não tinha visto Nicolas, mas o encontraria no refeitório quando fosse almoçar.
Gabriel terminou de digitar as planilhas e arrumá-las quando Sônia, uma funcionária do Recursos Humanos trouxe-lhe algumas folhas para anexar junto ao registro do respectivo funcionário. Quando ele começou a ler de quem era a carta tomou um susto. Era um pedido de demissão de Nicolas. Não podia acreditar. Levantou-se e foi até a recepção na esperança de ainda encontrá-lo.
– Tânia, você sabe para onde o Nick foi? - Perguntou ele à recepcionista, que olhava mensagens no celular.
– Ele veio logo cedo, entregou a carta de desligamento e foi embora. – Disse a mulher guardando o aparelho rapidamente.
– Logo cedo? E ele disse o motivo de pedir demissão?
– Só falou que tinha alguma coisa importante para fazer e que não teria tempo para o trabalho. – Disse ela olhando para o lado – Uma pena. Ele trabalhava muito bem! Tinha futuro. Talvez tenha ganhado uma viajem para o exterior em alguma promoção.
– É muito estranho mesmo. – E saiu deixando Tânia refletindo sozinha. Foi até o refeitório e assim que entrou Ricardo o abordou.
– Hey, Biel. Você soube que o Nick nos deixou? – Parecia muito triste.
– Esse lugar não será o mesmo sem ele. – Disse Ivan com olhar malicioso.
– É! Ele trazia um brilho para a empresa. – Completou Diogo com o mesmo olhar.
– Ah, sim! – Ricardo parecia desconcertado. – Papai também lamentou a saída dele. Sabe dizer o motivo, Biel? Ele deve ter dito alguma coisa para você, não disse?
– Não, Rick. Eu fiquei sabendo só agora quando a carta de demissão chegou à minha mesa. – Falou Gabriel desapontado.
– Nossa! Depois de termos um ótimo final de semana juntos ele some desse jeito. Sem falar nada! - Comentou Ivan.
– Cruel. Muito cruel. - Disse Diogo ao se levantar para pegar a comida no micro-ondas.
Ninguém falou mais nada durante o almoço. Era muito estranho o desaparecimento de Nicolas sem ao menos ter lhe dito nada. Depois de tudo o que passaram no último final de semana. Esperava receber notícias nas próximas horas.
Naquela tarde, depois do expediente, Gabriel foi até a floricultura em que Fernanda trabalhava com Jéssica e não a encontrou.
– Então, lindo. Ela veio mais cedo e pediu as contas. Sabia que não aguentaria muito tempo. Pra trabalhar aqui a pessoa tem que ter fibra, e ela parecia tão molenga e sentimental. – Disse Jéssica mexendo no celular e respondendo os garotos que haviam comentado uma foto que ela tinha postado de biquíni nas redes sociais. A garota nem sequer se despediu de Gabriel quando ele saiu da loja.
Eles também não foram para a escola nos dias seguintes. Joana e Cáulon também desapareceram e o professor de história havia sido substituído.
A semana se arrastou lentamente e Gabriel não tinha recebido nem uma mensagem. O telefone de Nicolas estava desligado e sempre que ele ligava para o amigo dava caixa postal. O mesmo acontecia com os números de Fernanda e de Joana. Todos saíram do grupo da empresa no aplicativo de celular. Até as fotos que Nick costumava colocar diariamente nas redes sócias deixaram de ser postadas. Qual era o motivo do silêncio?
Todos os dias da semana quando Gabriel ia para a estação Berrini pegar o trem sentido Santo Amaro ele reparava que naquele ponto o rio estava um tanto quanto agitado. Só decidiu ir até ele na sexta feira para relaxar um pouco e curtir o restante do fraco sol de outono. Não quis ir com Ricardo e os outros para o evento de captura de monstros no parque Vila Lobos.
Atravessou a plataforma paralela a da estação que dava acesso ao rio. Não tinha ninguém por perto. Só ele e a natureza. Deixou a mochila no chão, tirou a bermuda, pois estava de sunga, e deu um mergulho. Não podia acreditar que aquele rio foi poluído um dia. Hoje suas águas eram limpas e os peixes nadavam livres por ele. Garças e outros pássaros vinham se aproveitar da fartura de alimento que o lugar lhes oferecia.
Gabriel afundou a cabeça na água e de olhos abertos pode ver a diversidade de vida que havia ali. Quando estava prestes a emergir viu alguma coisa passar muito rápido na sua frente e não conseguiu distinguir o que era. Colocou a cabeça para fora e percebeu que algo nadava a sua volta. Não podia ser um tubarão. Era um rio de água doce.
Começou a nadar de forma veloz até as margens do rio quando a coisa saiu de perto dele. Começou a subir o pequeno barranco e algo segurou sua mão. Olhou para cima e viu Fernanda sorrindo para ele.
– Olá, Biel. - Disse a garota bondosamente.
– Oi, Kika. Como vai?
– Estou bem e muito cansada, essa semana não tive tempo para nada. – Disse a ela ao se sentar ao lado da mochila do garoto.
– O que aconteceu com vocês. Por que saíram dos serviços e não aparecem mais na escola? – Disse ele abrindo a mochila e pegando uma toalha para se secar.
– Foi tudo muito rápido. Tivemos que começar a treinar. As coisas podem ficar movimentadas por aqui. – Disse Fernanda estendendo a bermuda para que ele pudesse se vestir.
– Bem que podiam deixar o telefone ligado. – Disse ele se sentando ao lado dela depois de vestir a bermuda.
– Onde estamos não tem sinal de telefone. Eu tentei falar com você a semana toda, mas nada do que eu fizesse era suficiente para chamar sua atenção.
– Se eu soubesse que era você teria vindo antes.
– Ainda bem que hoje você resolveu vir tomar um banho de rio. E com essa sunguinha super na moda! Há! Há! Há! - Disse a garota. Parecia um pouco envergonhada em comentar sobre as roupas de baixo dele.
– Gostou?
– Amei. – Disse ficando muito vermelha.
Gabriel olhou para o rosto dela por um período em que nenhum dos dois disse nada. Fazia muito tempo que não via Fernanda. Ela tinha algumas olheiras e parecia muito cansada. O brilho da pedra em seu colar ofuscou a vista dele e fechou rapidamente os olhos.
– Parece que essa pedra ai tem luz própria. – Disse piscando e tentando se acostumar com a visão embaçada.
– Bonita, não é? – Estava muito tempo na estante de casa. Depois de muito insistir meu pai me deixou fazer esse colar. Disse para eu ter cuidado, que é uma pedra muito rara e que encontrou quando o rio ficou limpo, perto de umas árvores petrificadas.
– É realmente muito bonita. – Disse Gabriel aproximando o rosto da pedra e pensou ter visto um brilho dourado.
– Eu gostaria de ter mais tempo, mas não tenho, Biel. Estou aqui para lhe dar um recado. – Disse Fernanda ainda mais vermelha do que antes.
– Sou todo ouvidos. – E, ao perceber que estava muito perto do pescoço dela, se afastou.
– Tio Marcus quer te ver amanhã às três da manhã no portão de entrada do Parque Santo Dias.
– Por que tão cedo?
– Não sei, mas você tem que estar lá esse horário. Ele não gosta de atrasos. – Disse ela se levantando. – Ainda não sei o que tem naquela água, mas estamos perto de descobrir. – A garota deu um beijo demorado no rosto dele. – Deixa eu ir! Agente se vê depois. – E com um mergulho desapareceu no rio deixado Gabriel sozinho.
TAREFA.
Três horas da manhã e Gabriel estava em frente ao portão de entrada do parque Santo Dias, como Fernanda havia lhe orientado no dia anterior. A noite estava estrelada e com poucas nuvens, muito agradável, caso quisesse fazer uma caminhada. Já não se via mais a lua no céu estrelado.
Ainda estava com muito sono. Não sabia se realmente tinha dormido, quando o relógio despertou naquela manhã. Arrumou-se no automático e saiu de casa o mais rápido que pôde. Não queria atrasar-se e causar má impressão ao Curupira.
Três e dez, marcava o relógio, quando Gabriel o consultou em seu braço esquerdo. Será que estava no lugar certo? Começou a andar quando ouviu uma voz já conhecida.
– Aonde pensa que vai, garoto? – Era o Curupira e já estava do outro lado do portão. Não tinha a aparência de antes e seus pés não estavam virados para trás. Vestia uma bermuda de algodão, um tanto folgada, uma camisa com um esboço de dois coelhos e chinelos de dedo preto.
– Quando foi que o senhor chegou aí? – Perguntou já sabendo a resposta.
–Eu só apareci! Venha. Quanto antes a gente começar melhor. – Disse fazendo um gesto convidativo com a mão.
– Como eu vou entrar?
– Pulando o portão, uai.
Gabriel não gostou da ideia de ter que invadir o local, mas escalou o portão.
– Siga-me! Temos que ficar em um lugar que ninguém nos incomode.
– Quem viria para o parque a essa hora da manhã?
– Ficaria surpreso se eu contasse.
Os dois caminharam por um caminho de terra por entre as árvores até chegarem em um pátio escuro.
– Além de fazer as folhas te protegerem o que mais você sabe fazer, Gabriel? – Perguntou Curupira sentando-se em um tronco de árvore cortado como um banco.
–Eu nem sei como eu faço as folhas aparecerem. – As palavras saíram sem Gabriel pensar.
– Imaginei que não. – Disse Curupira pensativo. Quer ser forte?
– O bastante para proteger quem eu amo. – Disse o garoto sem titubear.
– Está disposto a suportar qualquer tipo de treinamento?
– Sim! Qualquer coisa.
– Lembre-se dessas palavras. – Disse pegando um vaso onde havia terra em uma das mãos e retirou algo do bolso. – Uma planta precisa de basicamente três coisas, além da terra, para crescer: Água, luz e calor. – Disse enterrando o dedo na terra do vaso. – Quando a semente recebe água e calor, começam a brotar raízes dentro da terra. Eis então o começo do processo de germinação. – Pegou um regador ao lado de seu tronco e molhou a terra no recipiente. Depois, fez as chamas do seu cabelo acenderem e colocou o vaso próximo a ele.
– Primeiro a planta cresce para baixo e se firma, depois que aparece o broto e ela cresce para cima. Quando encontra a luz do sol as folhas começam a aparecer. Veja. – Mostrou o vaso. Onde antes só havia terra agora tinha um pequeno broto de girassol.
– Que veloz. – Gabriel pegou o vaso e o olhava com atenção.
– Não costuma ser tão rápido. Eu tenho certos privilégios com a natureza.
– E o que o senhor espera que eu faça?
– Você terá que fazer essa planta crescer sem precisar dessas coisas. – Disse entregando outro vaso já com a semente enterrada.
– Como espera que eu faça isso?
– Da mesma forma que fez aqueles cipós crescerem e se enrolarem na perna do golem.
– Mas eu não sei como eu fiz aquilo.
– Estou aqui para te ajudar a “saber” como fazer.
Gabriel pegou o vaso e ficou olhando para ela por dez minutos. Estava se achando um idiota, pensou até que estava sendo enganado. Como ia fazer uma planta nascer apenas olhando para a terra.
– Parece que não sou qualificado. – Olhava com atenção para o vaso.
– Claro que é. Tem que acreditar em si. Tem que acreditar em seu potencial. Não pense que as coisas vão acontecer de uma hora para a outra. É seu primeiro dia de treinamento e ficaria surpreso se conseguisse fazer algo logo de cara.
– Com essas palavras eu até fiquei animado para receber esse treinamento. – Voltou a olhar para o vaso.
– Você não está se concentrando. Lembre-se do que eu falei. As plantas começam a nascer para baixo. Tente imaginar que a semente germinou e está criando raízes. Veja isso dentro da sua cabeça e acredite que isso esteja acontecendo dentro do vaso em sua mão. – Curupira o olhava atentamente.
– Certo!
Dois finais de semana treinando direto e Gabriel não teve progresso. Um dia Curupira pegou a semente de dentro do vaso e dela estava saindo uma raiz, mas era de tanto ficar na terra e não pelo esforço do garoto.
– Não pensei que fosse precisar disso, mas vou te passar um pouco de energia. Você tem que ser forte para suportá-la. Pode ser que leve dias para que consiga se acostumar e se não se adaptar, você poderá morrer.
– Não vou morrer! Estou pronto para aguentar qualquer coisa. – Disse decidido. Aquele treinamento não era só para ele, era para sua mãe, era para a Maria Flor, era para Camila, para seus amigos. Não podia ser fraco e desistir.
– Pois bem. – Curupira juntou as mãos em oração e concentrou-se. As chamas de seu cabelo ficaram maiores e agitadas. Começou a separa-las e um brilho intenso irradiou entre elas. Ele a segurou em apenas uma mão e a colocou na testa de Gabriel fazendo a energia entrar lentamente em sua cabeça.
– Eu estou muito bem, não sinto nadinha. – Disse o garoto olhando para três curupiras.
Sua respiração ficou ofegante e, não aguentando o peso de seu corpo sobre suas pernas, ele caiu ajoelhado e com as mãos no chão. Sentia-se sufocado, tentava respirar, mas o ar parecia não alcançar seus pulmões.
Começou a rolar no chão em agonia com as mãos na garganta e uma forte dor que parecia que sua cabeça iria explodir.
Marcus, vendo o sofrimento do garoto, ajoelhou -se e colocou a mão na cabeça dele para tirar a energia, mas Gabriel segurou firme em seu braço.
– O que pensa que está fazendo? – Perguntou o garoto babando e com os olhos esbugalhados. – Não faça nada! Eu vou passar dessa fase do treinamento. – E tirou a mão do homem de sua testa.
As dores e agonia continuaram por mais alguns minutos, o que para Gabriel pareciam anos. Deu socos conta o chão duro e quebrou dois dedos da mão direita. Por alguns segundos ele concentrou-se na dor que sentia na mão e ignorou as outras dores.
“Concentração”. – Pensou.
Deitado no chão e segurando a mão direita com a esquerda, ele, mesmo sentindo as dores e a falta de ar, ficou imóvel. Fechou os olhos e tentou não pensar em nada. Apenas concentrando-se para absorver a energia. Deu certo. Com exceção da dor na mão direita as outras foram cessando lentamente e ele pode respirar com mais facilidade. Abriu os olhos e conseguiu focalizar apenas um curupira sorridente.
– Muito bem. Parece que você começou a entender. – Disse o homem pegando a mão direita do garoto. – Vamos dar um jeito nisso aqui.
Um calor agradável envolveu a mão do garoto e as dores em seus dedos passaram. Ele conseguia abrir e fechar a mão como se nada tivesse acontecido.
Curupira pediu para que ele se sentasse e entregou o vaso para ele.
– Tenta de novo.
Gabriel elevou o vaso na sua frente, respirou fundo e fechou os olhos, imaginando que a semente estava criando raízes. Logo a imagem de Fernanda apareceu em sua cabeça e ele teve que fazer muito esforço para voltar a pensar na semente.
Imaginou com mais clareza uma pequena raiz nascendo como um embrião e ficou repetindo a imagem nos pensamentos. Passaram quinze minutos, quando Curupira falou.
– Vamos ver o resultado?
Gabriel entregou o vaso para o homem que enfiou a mão na terra. Pegou a semente e ali tinha uma pequena raiz, com cerca de dois centímetros, saindo dela.
– Muito bem, Biel. Mais algumas tentativas e logo estará fazendo a semente brotar.
Os encontros com Curupira foram constantes nos finais de semana. Sempre sábado e domingo no período da madrugada. Gabriel não se importava. Pelo contrário, gostava dos treinamentos. Só não gostava do silêncio dos amigos que desde a aparição de Fernanda não teve mais notícias de nenhum deles.
– Sabe como estão os outros? – Perguntou certa manhã.
– Estão muito focados em seus treinamentos e esperam que você esteja tanto quanto eles. A propósito, Fernanda me pediu para entregar isso para você. O Pai dela trouxe-me ontem, à noite. - Curupira retirou um envelope do bolso e o entregou para o garoto
.
"Biel, estou me esforçando muito em meus treinamentos e sempre que fraquejo penso em você! É o que me dá forças para continuar.”
“O treinamento é muito puxado e mamãe não me dá tempo para respirar. Ela e papai estão em pé de guerra com a separação de bens e eu estou ficando maluca com tudo isso.”
“Espero que esteja se saindo bem com o tio Marcus. Ele é um paizão não é mesmo? (Risos)”
“Muito em breve vamos nos ver. Papai e os outros estão fazendo as devidas proteções no local de encontro para que ninguém nos visite de surpresa.”
“Precisamos que você volte no parque Trianon e pegue um pouco de terra, os restos de qualquer animal morto (pode ser de inseto) e a folha de qualquer planta que estejam próximos do filtro que você pegou a água. Depois leve tudo, inclusive uma folha do seu bonsai, na Alameda dos Arapanés nº 1485 e procure pela Patrícia. O local é uma farmácia de manipulação.”
“Saudades!”
“Ps.: O Nick e a Jô te mandaram um abraço."
Ele colocou a carta dentro do envelope e o guardou no bolso.
– Vamos voltar ao treinamento! – Falou animado.
O outono em São Paulo era de se admirar. Um dia quente e seco, o outro com um frio de congelar. Naquela segunda o céu estava limpo e depois de um exaustivo expediente de trabalho Gabriel conseguiu se livrar de Ricardo que a cada dez minutos perguntava se ele tinha noticias de Nicolas e entrou no trem a caminho da Paulista.
Tinha que pegar os objetos que Fernanda descreveu na breve carta encaminhada para ele.
O percurso no transporte público não era demorado e meia hora depois de sair do serviço ele estava no parque Trianon. A Avenida Paulista estava movimentada como sempre. Os automóveis, pedestres e animais exerciam seu direito constitucional de ir e vir. Desde o incidente com a garota que se transformou em cachorro ele não visitou mais o local que, para sua surpresa, estava interditado. Uma placa no portão de entrada dizia que estava fechado para manutenção.
– Boa tarde! Uma água com gás bem gelada, por favor. – Disse ele se aproximando do ambulante sentado em uma cadeira de madeira próximo do portão. O homem era branco, com barba e cabelos grandes e brancos. Usava uma camisa social branca com listras vermelhas por fora da calça social preta e chinelos azuis. Tinha com ele algumas sacolas com pipocas, salgadinhos e outras guloseimas e um grande isopor térmico azul claro de onde tirou a garrafa de água.
– Três e cinquenta. – Disse o homem, com a voz cansada e fofa, entregando o objeto para Gabriel.
– Aqui. – Disse o garoto entregando o dinheiro trocado e pegando a garrafa. – O senhor sabe me dizer o que aconteceu com o parque?
– Certa tarde, os homens de terno vieram fechar e disseram que seria feita uma manutenção. Só que depois da vinda deles ninguém mais apareceu por aqui, nem um pedreiro sequer.
– Entendi! Bem, obrigado pela informação. Tenha uma boa tarde! – Disse Gabriel se afastando do vendedor ambulante.
– Hei, garoto. Psiu. Vem cá! – Disse o homem olhando para todos os lados enquanto chama Gabriel fazendo movimentos com os braços.
– Oi?! – Disse o garoto ao se reaproximar.
– Quer saber o que penso? – Disse o homem num sussurro que foi abafado pelo barulho dos veículos que passavam na avenida. Gabriel teve que chegar ainda mais perto do homem que continuou. – Acho que o lugar foi invadido por alienígenas. – Continuou ele com os olhos arregalados ainda olhando para os lados para se certificar que ninguém os ouvia.
– Por que o senhor acha isso? – Perguntou Gabriel se mostrando interessado e ouvindo o “tssss” após abrir a garrafa de água com gás.
– Teve um dia que muitas pessoas entraram por esse portão e sabe o que saiu ai de dentro? – Disse o homem ainda mais baixo.
– O que? – Perguntou Gabriel também sussurrando após beber um gole da água.
– Cachorros. Isso o que saiu. – Disse o ambulante fazendo sinal de positivo com a cabeça.
– E por que acha que havia alienígenas aqui? As pessoas não podem ter saído pelo outro portão?
– O parque só tem esse portão e, a menos que as pessoas estejam morando ai ou tenham pulado as grades para saírem, acho que elas foram substituídas por cães. Tenho certeza que foi isso que aconteceu e os engravatados do governo federal estão escondendo a informação para que não haja pânico.
– Então ai dentro deve ser muito perigoso! Tem como entrar por algum lugar?
– Na Alameda Santos, em baixo da passarela as grades são mais baixas. Você pretende se aventurar dentro do parque?
– Não! Apensa curiosidade. – Mentiu Gabriel. – Obrigado por tudo. Vou indo.
– Não comente com ninguém que eu falei isso com você. – Apressou-se o homem em dizem enquanto o garoto se afastava.
– Pode deixar que seu segredo está guardado. Adeus! – Disse o garoto tendo certeza de que o vendedor dizia isso para todos que quisessem ouvir.
Gabriel caminhou pela calçada procurando não se esbarrar ninguém, o que era sempre difícil devido a grande quantidade de pessoas e pombos que andavam por ali.
Quando estava onde a luz do sol batia era sempre muito quente, mas quando chegava às sombras parecia que a temperatura baixava para dez graus e foi isso o que aconteceu assim que ele começou a descer a quase deserta Alameda Casa Branca que de um lado tinha um grande prédio com sua faixada toda em vidros com duas motos, uma vermelha e a outra preta paradas na entrada do edifício e um homem todo de preto fotografando as árvores do outro lado da rua que com suas copas ajudavam a deixar a via coberta pelas sombras.
Andou per cerca de três minutos até chegar à Alameda Santos, onde virou a direita e continuou caminhando até chegar em baixo da passarela onde tinha o desenho de um Saci segurando uma tocha e na fumaça estava escrito “Fim Ao Egoísmo”. Gabriel achou a pintura engraçada, pois a silhueta do ser folclórico era totalmente diferente de sua forma real e interessante pelo que dizia a frase.
Ali as grades de ferro pintadas de verde que cercavam o parque eram bem mais baixas e sem muito esforço o garoto as conseguiu pular. Segurando em algumas raízes ele subiu o barranco com pouco mais de três metros de altura onde muitas folhas secas estavam espalhadas pelo solo e, com um pouco de dificuldades, ele chegou nas ruas dentro do parque.
Estava de frente a uma grande praça de formato redondo que era rodeada por bancos de madeira e pequenas lixeiras. Sabia que estava perto da entrada e seguiu pela via de pedras pelo seu lado esquerdo.
Não podia ter trafego humano, mas a vida selvagem continuava initerruptamente e tomava conta do local. Ele viu uma grande teia de aranha que, presa em duas árvores, ia de um lado ao outro da rua. Tinha quase três metros de altura por sete de comprimento. Ele achou fascinante. Desviou por de trás das plantas para não estragar a obra de arte feita pelos aracnídeos e continuou seu trajeto até chegar na frente da estatua do Segundo Anhanguera o fazendo lembrar do dez que tirou no trabalho escolar da aula de história. Sentiu calor e imaginou ser da repulsa em lembrar que o homem ali homenageado havia matado milhares de índios ao desbravar o Brasil, na época, selvagem.
Caminhou até perto do banheiro feminino onde estava o filtro de água de metal em que a garota havia matado sua sede antes de se transformado em cachorro. Tirou três sacos plásticos de dentro de sua mochila e coletou uma folha comprida, um punhado de terra e os restos de uma lagartixa que estava sendo desmembrada por muitas formigas. Elas se dispersaram quando ele tocou no cadáver do pequeno animal. Colocou cada um dos objetos em um saco diferente e os guardou na mochila. Bebeu o restante de sua água e jogou a garrafa dentro da lixeira próxima.
Mais uma vez Gabriel estava dentro do transporte público. Desta vez indo a um lugar que nunca havia estado antes. Ele seria breve em sua visita à Patrícia. Queria chegar em casa a tempo de ir para a escola, pois teria prova de matemática.
Como já estava próximo do fim da tarde o trem da linha lilás começava a ficar cheio de pessoas. Uma senhora branca com um metro e sessenta de altura e mais de sessenta anos de idade, magra e com os cabelos brancos presos em um coque no alto da cabeça. A mulher usava um vestido vinho, meias marrons e chinelos de dedo preto deu um sermão em todos dizendo que mesmo com as dificuldades do dia tínhamos que manter o espírito jovem, levar sempre um sorriso no rosto e começou a dançar balançando os braços levemente abertos, como se estivesse batendo asas entre os passageiros ao som de uma música que tocava dentro de sua cabeça.
Gabriel não viu o rosto da jovem senhora, mas gravou no celular tudo o que ela disse e mandou para Ivan pelo aplicativo de mensagem. Talvez aquilo se tornasse tema de um de seus vídeos nas redes sociais.
Ele desembarcou na estação Eucaliptos que ficava na frente do Shopping Ibirapuera em Moema, um bairro nobre da cidade de São Paulo com milhares de prédios, comércios, empresas e avenidas compridas. O bairro era subdividido com uma parte tendo as ruas com nomes de pássaros e a outra parte com nomes de índios. Pelo endereço que Fernanda colocou na carta, Gabriel deduziu que ia onde os nomes das ruas eram com nomes de índios que ficavam do mesmo lado da estação.
Gabriel pegou seu celular e abriu o aplicativo de mapas, digitou o endereço descrito na carta e clicou em rota. O aparelho calculou o tempo e o caminho mais curto até o local. Não estava longe. Levaria menos de três minutos para chegar.
Ele atravessou a praça da estação onde tinha algumas pessoas sentadas nos bancos mexendo em seus celulares, outras conversando. Um senhor negro com a barba grande e branca parecia cochilar gostosamente, sua cabeça com cabelos grisalhos abaixava lentamente e levantava rapidamente sem ele abrir os olhos. Caminhou uma quadra pela Avenida dos Eucaliptos até alcançar a Alameda dos Arapanés. Olhou para o celular na intenção de ver a direção que tinha que tomar e quando levantou a cabeça quase trombou com uma garota morena com roupas de ginástica que, por estar secando o rosto com uma toalha, também não olhava o caminho.
Passou pela academia e parou na frente do caule de uma grande Figueira-brava. O vento leve fazia as folhas da grande copa da árvore farfalhar enquanto algumas maritacas se comunicavam para dizerem que aquela árvore era território delas ou apenas uma conversação despretensiosa. Ele não conseguiu ver as aves que se camuflavam entre as folhas com suas penas verdes, mas sabia que estavam lá por seus cantos que pareciam gritos.
O celular o alertou que ele havia chegado ao seu destino. Com dois andares, a fachada azul clara, a porta de ferro aberta e duas janelas no alto pintadas de branco e uma cadeira de balanço preta na entrada o lugar tinha aspecto de casa. Não fosse a pequena placa com o dizer “Farmácia de Manipulação” pendurada ao lado de uma samambaia com os galhos quase tocando o chão, ele teria pensado que estava no lugar errado.
Ele colocou o celular no bolso da calça, entrou no estabelecimento e por dentro pode sentir o cheiro doce de erva cidreira e ver as paredes pintadas de cinza grafite, com dezenas de prateleiras com produtos e medicamentos bem enfileirados por de trás de um balcão de madeira envernizada onde uma mulher de cabelos loiros e cabeça baixa mexia no celular despreocupadamente.
– Boa tarde. – Disse Gabriel se aproximando.
– Olá! Boa tarde. Em que posso ajudar? – Disse a mulher levantando a cabeça com um largo sorriso nos lábios pintados com o batom vermelho. Ele levou um susto quando a viu.
– Tânia? – Perguntou espantado.
– Quem? Eu? Não, me chamo Vânia. – Disse ela fechando a cara e olhando sério para o garoto.
– Sério? Você se parece muito com a recepcionista de onde eu trabalho. – Ele olhava a mulher atentamente. Ela usava um avental cinza claro por cima de uma blusa de lã rosa. Tirando a roupa bem comportada ela era a cópia idêntica de sua companheira de serviço.
– Você deve estar falando da minha irmã pervertida. Saiba que sou civilizada e tenho respeito por mim. Não me confunda mais com ela! Em que posso ajudar?
– Desculpe. Gostaria de falar com a Patrícia. – Disse ele um tanto desconcertado coçando a nuca, mas ainda atordoado com a semelhança entre as duas.
– Qual seu nome?
– Me chamo Gabriel. Sou amigo da Fernanda, ela quem me pediu para vir aqui.
– Ah! Sim. Ok! Loro, faça sua parte. – Disse ela abaixando a cabeça e voltando a mexer no celular.
Gabriel só notou que no galho cerrado no fundo da sala havia um pássaro quando este bateu as asas e levantou voo repetindo por três vezes, antes de sumir no corredor, a frase:
– Dona Patrícia! Gabriel quer lhe falar!
Menos de um minuto depois uma mulher com cerca de um metro e setenta de altura apareceu no corredor com o pássaro em seu ombro direito. Ela era magra e usava um tênis preto, camisa branca de mangas curtas por dentro da calça jeans azul escuro. Seu lindo sorriso cavalar, com parte dos dentes a mostra, lembrava um dono e apresentador de uma emissora de tv famosa. Tinha um nariz nem fino e nem grosso e os olhos castanhos pequenos com as sobrancelhas muito bem feitas. Não só a boca, mas todo o rosto dela parecia sorrir. Era branca com a pele bem bronzeada pelo sol. Parte de seus cabelos castanhos estava preso do lado direito da cabeça e outra parte estava toda bagunçada como se ela tivesse acabado de acordar. O pássaro voou do ombro dela de volta para o galho e começou a comer algumas sementes de girassol enquanto ela se aproximava.
– Ora! Ora! Se não é o tão procurado Gabriel. Venha! Entre! – Disse Patrícia fazendo um gesto de puxar com a mão direita, abrindo a portinhola do lado esquerdo do balcão e deu um abraço no garoto o deixando sem reação enquanto Vânia mexia no celular indiferente ao momento. – A Kika disse que você viria! Eu estava ansiosa em te conhecer.
– Ela me pediu para lhe trazer algumas coisas. – Disse ele começando a tirar as alças da mochila dos ombros.
– Lá dentro nós vemos isso. Vamos. Acompanhe-me. – Disse ela passando o braço por cima dos ombros de Gabriel e puxando-o de forma amigável. Ele olhou para o relógio na parede próximo do papagaio e eram cinco horas da tarde. Podia se dar o luxo de demorar apenas meia hora se quisesse chegar a tempo da primeira aula.
– Pode ter um papagaio de estimação? – Perguntou ele ao passarem pela ave.
– Ah! Sim. É um tanto burocrático, mas possível. – Disse ela ainda sorrindo. – Loro está aqui por que quer. A porta e janelas estão sempre abertas no horário comercial. Tudo o que ele faz é voar até o topo da casa para tomar banho de sol e volta para o tronco.
– Ele deve gostar muito de vocês. Esta aqui há quanto tempo? – Perguntou ele curioso.
– Faz tantos anos que nem me lembro mais. – Disse ela dando um tapa no ar.
– Ele nunca tentou fugir?
– Que nada. Certa vez um garoto tentou subir na casa, escalando pelas janelas, enquanto Loro tomava seu habitual banho de sol... Pobre garoto. – Disse ela balançando a cabeça negativamente.
– E o que aconteceu?
– Tchss! Nada de mais. Esquece. Entre. – Disse Patrícia após abrir uma porta branca no fim do corredor e o empurrar para dentro. – Não ligue para a bagunça.
O espanto que teve ao ver a irmã gêmea de Tânia não se comparava com o que teve agora. Um forte cheiro de amônia entrou por suas narinas e a grande sala de paredes outrora brancas era uma completa zona.
Havia três grandes meses de madeira separadas no centro da sala. Na que estava de frente para a porta tinha uma espécie de caldeira misturadora que sacodia um cilindro de vidro com um liquido rosado dentro. A máquina tinha um cano com uma válvula e um manômetro antigo. Este cano tinha um escape de pressão para cima parecido com um apito de trem. Sempre que o manômetro chegava próximo de seu limite o apito soltava uma risada fina e dele saia uma fraca fumaça branca.
Na mesa paralela a essa tinha um microscópio óptico branco ao lado de uma caixa de ferramentas azul com o serrote a mostra. Na outra mesa tinha alguns livros empilhados, papéis espalhados, um becker de vidro vazio e três balões de erlenmeyer, cada um com uma espécie de liquido verde claro sob uma fina camada de espuma marrom.
As quatro paredes também estavam ocupadas. Em uma delas tinha uma grande estante repleta de livros ao lado de uma janela de vidros entreaberta. A outra tinha manchas pretas espalhadas por toda sua extensão, as manchas continuavam no chão e no fogão que estava encostado nela. Parecia que havia acontecido uma explosão.
A terceira parede era ocupada por uma bancada de madeira com uma máquina de banho-maria com seis vidros dentro, cada um com um líquido de cor diferente. Na última parede tinha uma espécie de camará selada com uma pequena mesa branca e um microscópio do lado de dentro e seus oculares do lado de fora e duas luvas que eram presas na parede plástica para poder manusear o que estava do outro lado.
Além das manchas pretas, o chão também tinha uma gosma amarelada que parecia viva, pois se mexia lentamente. Tinha também dois tapetes rosa e branco entre as mesas e muitos papéis amassados espalhados por todas as partes.
– Nossa! Er... Belo laboratório! – Disse Gabriel após andar pela sala.
– Coloque sua mochila em um canto e pode usar aqueles recipientes. – Disse Patrícia colocando um óculos com vidros que deixavam seus olhos grandes e enfiando as mãos nas luvas da câmara selada.
– O que devo fazer? Pensei que eu iria apenas lhe entregar o que peguei no parque. – Disse ele colocando seus pertences ao lado da mesa com o microscópio.
– Ah! Não! Estou ocupada com algo muito importante. – Disse ela com a voz baixa e um ar misterioso. – Primeiro tire alguns daqueles vidros do banho-maria e coloque esses três balões de erlenmeyer que estão em cima da mesa com um líquido verde em sus lugares por dez minutos.
Gabriel retirou dois frascos com líquido cinza da água e os colocou com cuidado por sobre a bancada de madeira. O terceiro só tinha pequenas bolhas de sabão que estouraram e deixaram um forte cheiro de framboesa quando o garoto o aproximou do nariz. Ele colocou o frasco perto dos outros e completou a máquina de banho-maria com os três apontados por Patrícia.
– O que é aquela coisa amarela se mexendo ali no chão? – Perguntou ele se reaproximando da mulher após colocar seu celular para despertar em dez minutos.
– Aquele é o Beto. – Disse ela concentrada em sua tarefa no microscópio.
– O que é o Beto? – Continuou ele nãos e contentando com a resposta.
– Ele é um acidente. Certo dia eu estava cozinhando um pouco de carboidratos, proteínas, lipídios e sais minerais em um pouco de água tudo dentro de uma panela de barro. São os componentes da vida, sabe?! Só que eu fazia enquanto comia um cachorro-quente. Meu vidro de mostarda estava entupido e eu o apertei tão forte que a tampa se soltou fazendo voar mostarda para todos os lados, só não percebi que caiu dentro da panela também. Coloquei dois fios desencapados dentro da mistura para dar pequenas descargas elétricas e fui embora. No dia seguinte a panela estava vazia e Beto, que é um organismo multicelular, estava no chão. Até hoje ele não deu nenhum sinal de inteligência.
– Ele se alimenta?
– Sim! Seu cardápio é composto por baratas e lagartixas. Acho que foram as primeiras coisas que ele encontrou depois de sair da panela.
– Você conseguiu criar vida. Que legal!
– Depois dele nunca mais consegui e eu já gastei litros e mais litros de mostarda tentando.
– Há! Há! E no que você está trabalhando agora?
– Em uma super bactéria que se multiplica de forma muito rápida.
– Isso não pode acabar com a vida?
– Se cair em mãos erradas, com certeza! – Disse ela baixinho aproximando seu rosto do dele. Gabriel sentiu um forte cheiro de vinho.
– E o que pretende fazer?
– Estou estudando como ela se multiplica tão de pressa para eu poder usar isso a meu favor.
– Como usaria a seu favor?
– Isso é segredo. Três, dois, um. – Quando ela terminou de contar o celular do garoto despertou. – Pode retirar os vidros do banho-maria e coloque os objetos que retirou do parque cada um em um recipiente diferente.
Ele, espantado com a noção de tempo da mulher, fez o que ela pediu. Pegou a folha de seu bonsai e colocou sobre a mesa, depois pegou os sacos em sua mochila, retirou os restos da aranha e colocou em um vidro e repetiu o gesto com a folha e o punhado de terra. O balão de erlenmeyer com a folha e a aranha morta ficou com o líquido totalmente preto e o que recebeu a terra ficou levemente acinzentado.
– Como eu suspeitei! – Disse Patrícia por sobre o ombro de Gabriel o assustando. – Apenas os micro-organismos da terra foram afetados enquanto as árvores e animais do local estão recebendo toda a radiação! Aquele cachorrinho do Lôbi foi literalmente longe de mais.
– O que quer dizer com isso? – Perguntou ele ainda olhando para os vidros.
– A lua, ao contrário da Terra, não faz movimento de rotação, ou seja, um lado dela está sempre apontado para o sol enquanto o outro nunca recebe a luz. Aqui na Terra a luz solar é utilizada pelos seres vivos para gerar energia. Já na lua não se tem seres vivos, apenas algumas pedras muito raras que ficam do lado escuro e absorvem a energia da luz solar que toca o solo da lua. São pedras muito difíceis de serem encontradas, já que ficam em um lado totalmente sem iluminação e conseguiu encontrar uma e a está usando para transformar os humanos em lobisomens.
– Como isso é possível? – Perguntou Gabriel interessado no assunto.
– Ele deve ter banhado a pedra com seu sangue fazendo-o se misturar a radiação emanada pela pedra e se misturando ao solo e a água. Venha comigo. – Patrícia pegou um dos recipientes com o líquido preto e saiu da sala sem olhar para o garoto que a seguiu prontamente.
Patrícia entrou pela porta do outro lado do corredor e subiu as escadas com uma iluminação fraca. Chegaram a uma porta de ferro e antes de entrar ela pegou um óculos escuros que estava pendurado na parede e entregou a Gabriel, depois colocou outro em seu rosto deu um leve soco na porta que começou a se mover.
Eles entraram em uma grande sala com as paredes pintadas em verde bandeira, três janelas bem espalhadas, uma porta no fundo, dois grandes sofás em couro marrom acompanhados de dois grandes pufes coloridos e uma tv de quarenta e duas polegadas na frente, uma mesa de sinuca perto da porta pela qual entraram outra de tênis de mesa, quinze celas de um metro de largura por dois de comprimento cada uma com uma cama bem arrumada, em cima de algumas tinha laptops, outras tablets ou celulares. Mas o interessante era o que estava no meio da sala. A miniatura de um sol flutuava sem nenhum tipo de apoio dando calor e luz ao local.
– Uau! – Disse ele. As surpresas não paravam de acontecer.
– Olhe o que acontece quando a radiação da pedra da lua se encontra com a luz solar. – Disse ela mostrando o frasco com o líquido verde para ele.
– Desapareceu! Então é só fazer as pessoas contaminadas tomarem banho de sol que fica tudo bem? – Perguntou ele animado enquanto Patrícia voltava para a porta das escadas.
– Agora veja o que acontece quando ele está longe da luz solar. – Disse ela mostrando o vidro nas sombras.
– Voltou a ficar preto. Quer dizer que as pessoas ficaram contaminadas para sempre? – Disse ele um tanto desanimado.
– Seria certo que isso aconteceria, mas graças a você é possível que haja uma cura.
– O que quer dizer com esse “graças à” mim? – Disse ele fazendo sinal de aspas com os dedos.
Patrícia retirou de seu bolso a folha do bonsai que Gabriel havia deixado sobre a mesa e mergulhou rapidamente uma das pontas no frasco.
– Essa planta limpa tudo deixando apenas o que é necessário para a vida. – Disse ela mostrando o vidro que mesmo nas sombras só tinha um líquido transparente e apenas o cadáver da aranha mergulhado nele.
– Então o que temos que fazer é... – Gabriel começou a dizer quando foi interrompido por uma voz conhecida que vinha de dentro da sala-cela. Ele recuou dois passos e inclinou o corpo para trás e viu a garota que havia se transformado em um Setter Irlandês no parque Trianon acompanhada de sua irmã gêmea.
– ...então mamãe convenceu o Leandro a... – Vinha dizendo a garota que usava óculos escuros, uma calça de moletom rosa, tênis e camisa branca e os cabelos amarrados em um rabo de cavalo. – É ele, Rê!
– Ele quem Emília? – Perguntou a outra garota que tinha os cabelos soltos e usava um macacão preto e óculos escuros redondos, tênis rosa e camisa vermelha.
– O garoto que me salvou na Paulista! – Disse Emília apontando para Gabriel.
Renata atravessou a sala correndo e em poucos segundos alcançou Gabriel, o agarrou pelos ombros e lhe deu um beijo na boca.
– Muito obrigada! Não sei o que seria de mim se eu tivesse feito algo contra minha irmã! – Disse ela chorando ainda agarrada ao garoto enquanto Emília estava incrédula com as mãos na boca.
– Não precisa agradecer. – Disse Gabriel sem jeito.
– Obrigada! Obrigada! – Dizia Renata abraçando-o e com a cabeça sobre o ombro dele.
– Se ela te beijou por ter salvado a irmã dela, imagine o que fará quando souber que você trouxe a cura. – Disse Patrícia entrando no quarto segurando uma jarra de vidro transparente com água, uma folha verde com as pontas dourada boiando dentro e alguns copos plásticos nas mãos.
– SÉRIO?! – Gritou Emília desmoronando no chão e começando a chorar.
– Nem em um milhão de anos eu poderei te pagar. Muito obrigada por tudo! – Dizia Renata aos prantos e soluçando.
– O que está acontecendo? Ouvi alguém gritar. – Um garoto negro entrou ofegante pela porta dos fundos. Era pouco mais baixo que Gabriel, tinha olhos pequenos e nariz largo e empinado, careça e sem barba tinha vinte e sete anos. De seu rosto redondo só dava para ver sua grande boca, pois o antebraço direito estava sobre o rosto seus olhos enquanto pegava um óculos escuros com a mão esquerda. O rapaz corpulento usava um bermudão jeans preto, uma bota bege e uma camisa de um time de basquete larga e verde.
– Vamos finalmente ser curados, Marcelo! Vamos poder voltar para nossas casas. – Disse Renata soltando os ombros de Gabriel e indo juntar-se a sua irmã.
– Como assim? – Perguntou o rapaz apoiado na parede para recuperar o folego e olhando o grupo ainda com uma expressão de alerta.
– Nosso amigo aqui nos trouxe objetos que nos permitiu colher informações do que está acontecendo com vocês e como combater isso. – Disse Patrícia colocando água em um copo e entregando para Renata que bebeu tudo em um gole.
– Vocês estão bem? – Perguntou o garoto se aproximando e agachando ao lado de Emília e Renata.
– Estamos sim, Mama! Estamos felizes por Gabriel ter nos trazido a possibilidade de voltarmos as nossas vidas. – Disse Renata tocando o rosto do rapaz com a mão direita. Gabriel pensou que o melhor seria o garoto não saber que ela o havia beijado.
– E onde está essa tal cura? – Perguntou Marcelo se levantando.
– Aqui nesta jarra. A Renata foi a primeira a beber. – Disse Patrícia com seu largo sorriso. – Como se sente querida?
– Normal! Parece que nada mudou. – Disse ela mais calma.
– Vamos aproveitar que os outros não desceram e fazer um teste? – Perguntou Patrícia chegando perto do sol em miniatura. – Pode fechar a porta e se certificar que ninguém vai entrar, Marcelo?
– Não seria bom ele beber a água antes? – Perguntou Gabriel um tanto vacilante.
– Marcelo foi primeiro infectado que nós encontramos. Ele tem uma resistência impressionante e é o único que consegue controlar sua transformação.
– Eu fui uma das cobaias daquele Lobisomem asqueroso há pouco mais de um ano. Morei na rua por um tempo até conseguir me controlar nas transformações e poder voltar para minha família que pensava que eu havia morrido. – Disse Marcelo fechando as janelas depois a porta e colocando o peso de seu corpo sobre ela.
– O que acham de eu entrar em minha cela? – Perguntou Renata um tanto espantada.
– Não será necessário. Se alguma coisa acontecer eu estarei aqui para controlar a situação. – Disse Patrícia colocando a jarra e os copos sobre a mesa de sinuca e erguendo a mão direita que estava quase tocando o pequeno sol. – Emília, querida. Se afaste um pouco de sua irmã só por precaução, sim?
– Tudo bem! Tudo bem! – Disse a garota andando de costas prestando muita atenção em sua irmã.
Gabriel olhava tudo com apreensão. Como que Patrícia não se queimava estando tão perto da fonte de calor e luz da sala era uma das perguntas que faria depois do experimento acontecer.
Ela fez um gesto com a mão e estralou os dedos. O sol apagou mergulhando todos no breu.
– Então, Rê! Diz alguma coisa. – Disse a voz de Marcelo após alguns segundos de silêncio.
– Estou curada!
No caminho até o parque Gabriel em todos os infectados que dormiram em celas por meses. Não podia acreditar que alguém pudesse fazer tamanha atrocidade contaminando, também, idosos e crianças. Cada vez mais ele tinha a certeza de que tinha escolhido o lado certo. O lado do bem como tantos o haviam instruído.
Riu ao lembrar-se de Armando, um senhor branco de setenta e três anos de idade, com cabelos brancos apenas na lateral da cabeça. Tinha a bochecha enrugada e caída assim como seus olhos azuis e seu nariz grande e torto. Usava calça xadrez em vermelho e cinza com duas alças que passavam pelos ombros e uma camisa vermelha e sandálias de couro. O homem disse que se encontrasse com Lôbi pessoalmente lhe daria um golpe com a bengala bem no meio dos cornos para ele aprender a não fazer mal a mais ninguém. Também se emocionou ao lembrar-se da mãe que aos prantos viu seu bebe de apenas 10 meses, assim como ela, ser curado assim como outras dez pessoas que moravam no quarto sobre a farmácia.
– Você se lembra do que a Patrícia disse né?! – Perguntou Marcelo ao começarem a subir a escura Alameda Santos. O garoto insistiu que também queria ir ao parque para poder acabar com o plano de Lôbi, mas Gabriel achava que ele queria ir para impressionar Renata.
– Lembro sim! Temos que encontrar o cristal da lua e neutraliza-la com essa pedra do sol banhada na água da folha milagrosa. – Gabriel não queria dar a informação de que a folha era de seu bonsai.
– Certo! Temos que ser cuidadosos para não alertar quem estiver de guarda. – Disse Marcelo quase sussurrando.
– Já disse que quando vim aqui hoje a tarde não tinha ninguém de guarda. Duvido que agora haja. – Disse Gabriel parando em frente do grafite do Saci.
– Entendi! Vou só me certificar! – Disse Marcelo apontando o rosto pra cima e fechando os olhos. Seu nariz foi esticando lentamente e depois de cinco segundos se parecia com o focinho de um pastor belga, longo e preto.
– Quais são suas transformações? – Perguntou Gabriel pela primeira vez curioso com os poderes do garoto.
– Depende da situação. Como eu consigo controlar a mutação, posso me transformar no cachorro que eu quiser. Pelo menos os que eu conheço. – Disse Marcelo farejando o ar. – Tem um cheiro de cachorro vindo ai de dentro.
– Será que não é da galera que foi infectada ou de um cão qualquer que mora dentro do parque? – Perguntou Gabriel abaixando o tom de voz.
– Faz mais de um mês que o local está fechado para humanos e lá dentro pode ter um cachorro de rua ou um guarda de Lôbi. Por via das dúvidas vamos ter que ser cautelosos. – Disse Marcelo agarrando Gabriel pela cintura e pulando para cima da ponte que ia de um lado para outro da Alameda Santos interligando os dois lados do parque. O garoto tinha dado um salto de mais de quatro metros de altura, com um peso extra, sem ao menos tomar impulso. – Pra qual lado temos que ir?
– Pelo que entendi o tal cristal deve estar próximo do filtro de água, então vamos por aqui. – E os dois foram pelo caminho que dava no banheiro feminino andando com cartela, pois Marcelo insistia que havia mais alguém no parque e estava certo.
Um homem branco e gordo, de cabelos castanhos e lisos e bigodudo estava sentado no banco na frente da estatua do Segundo Anhanguera farejando o ar. Mesmo com o frio o homem usava camisa regata por dentro da caça de sarja preta e chinelos azuis. Ele colocou a vasilha plástica branca com a comida no banco, se levantou e começou a caminhar na direção dos dois garotos enquanto mastigava o osso da coxa de galinha frita que estava comendo.
– Te avisei que o lugar estava sendo guardado. – Disse Marcelo sussurrando e escondido atrás de uma árvore.
– Certo! Certo! E o que vamos fazer? – Perguntou Gabriel atrás da árvore ao lado tirando a teia de aranha que havia envolvido seu braço direito.
– Fica aqui! Eu vou tentar distraí-lo. – Disse Marcelo saindo de trás da árvore. – Boa noite, amigão! Me pediram para vir te substituir. – Disse ele sorrindo e se aproximando do homem ao se apresentar.
– Boa noite! Eu sou o Romulo. Quem te mandou? E quem está com você? – Disse o homem com sua voz nasalada e olhando por cima dos ombros de Marcelo e ainda farejando o ar.
– Quem me mandou foi Lôbi e eu estou só. – Disse Marcelo olhando pra trás.
– Estou sentindo um cheiro de humano. – Disse o homem empurrando o garoto pelo ombro e caminhando na direção de onde Gabriel estava.
– Ah! É que essa roupa é de um primo meu. Você deve estar sentindo o cheiro dele. – Disse Marcelo correndo e se colocando na frente do homem.
– Faz sentido. Ainda bem que Lôbi mandou você mais cedo. Estou com uma tremenda dor de barriga que me fez passar a tarde toda no banheiro. – Disse Romulo caminhando na direção do banco e pegando a vasilha plástica. – Aqui é muito simples. Basta não deixar ninguém se aproximar dessa área e se alguém tentar você da cabo do sujeito.
– Então é bem simples. Acho que dou conta da tarefa. Pode ir cuidar da dor da barriga e descansar que eu tomo conta das coisas por aqui. – Disse Marcelo enquanto o homem se afastava.
– Temos que ser rápidos. – Disse Gabriel andando nas pontas dos pés na direção do banheiro feminino.
Enquanto ele procurava na parte de baixo olhando entre os vasos sanitários, em baixo da pia, batendo no espelho para ver se estava oco, Marcelo procurava em cima da laje olhando de baixo dos telhados, próximo da caixa d'água e não tiveram sinal do cristal lunar.
– Hei, Romulo! Cheguei! Romulo? – Disse uma vós suave e calma cinco minutos depois deles começarem a busca. Gabriel que procurava perto do filtro de água do lado de fora, correu para dentro do banheiro.
– Opa! Tudo bem, Moça? – Marcelo se apresentou depois de pular do telhado, segurando o boné para não voar, e se aproximar da mulher que até onde Gabriel conseguia ver era branca com dreads enrolados em cima da cabeça, usava brincos de pena azuis que iam até a altura dos ombros. Ela estava com uma calça de moletom rosa, tênis branco e blusa de frio preta.
– Eu sou a Berta. O quê você faz aqui? Onde está o Romulo? – Perguntou a mulher olhando na direção em que estava Gabriel.
– Romulo está arrumando as coisas para ir embora, se é que já não foi. Lôbi me pediu para vir substitui-lo.
– O Lôbi te pediu?
– Sim!
– Pessoalmente?
– Correto!
– Engraçado! Eu passei o dia na casa dele e não te vi por lá. – Disse ela ainda olhando para o banheiro.
– É que eu fui bem cedo pra poder dormir durante o dia já que eu vou ficar a noite toda acordado.
– Entendi! E qual era a cor da camisa que ele estava usando? – Mesmo naquela distância Gabriel conseguia ouvir a conversa e sabia bem a resposta para a pergunta. Ele cruzou os dedos torcendo para que Marcelo se ligasse na pegadinha.
– É... Hum..! Era cinza! – Disse o garoto com a voz titubeante.
– Errado! Lôbi nunca usa camisa! Agora eu quero que me responda sem mentiras. O que você faz aqui e quem é o humano que está no banheiro?
– Já falei que o Lôbi me mandou aqui e não tem ninguém no banheiro!
– Mentiroso! – A mulher disse mais parecendo um rosnado. – O Lôbi não te mandou aqui e eu sei que tem alguém no banheiro. Mesmo que o cheiro dele se confunda com o das árvores eu consigo sentir.
– Oh! Berta! Os dois vão ficar aqui hoje ou só veio instruir o novato? – Romulo vinha saltitando na direção dos sois.
– Idiota! Ele está aqui para pegar o cristal! – Disse a mulher colocando os caninos para fora da boca.
– Você me enganou? Como pode fazer isso? Ahhhhhh! Só de raiva eu vou te dar uma surra! – Disse Romulo jogando a mochila no chão e avançando a passos pesados na direção do garoto.
– Gabriel! Continue procurando. Eu vou tentar segurar esses dois! – Gritou Marcelo levantando os punhos cerrados.
Romulo o alcançou e desferiu uma sequência de socos na altura de seu rosto, mas o garoto era ágil e movia a cabeça de um lado para o outro evitando os golpes. O homem esticou o braço direito acima de sua cabeça e o abaixou muito rápido.
– Se essa porrada me acertasse eu estaria acabado. – Disse Marcelo pulando para a esquerda enquanto Romulo, curvado, abria um buraco de quarenta centímetros no chão com o soco.
O garoto não tinha tempo para pensar. Berta já estava agachada ao seu lado com as mãos apoiadas no solo o atingindo com uma rasteira fazendo-o bater com as costas no chão. Com a mesma velocidade que caiu ele se levantou, só que Romulo, recuperado do golpe anterior, estava atrás dele o segurando pelos braços. Berta se levantou e deu um soco que pegou em cheio no rosto do homem o fazendo soltar Marcelo que havia desviado do golpe movendo a cabeça para a direita.
– Ahhhhh! Você quebrou meu nariz! Era pra acertar ele e não eu! – Romulo rolava no chão, com as mãos no rosto enquanto praguejava aos berros.
– A culpa é sua por não ter segurado ele direito. – Esbravejou a mulher sem tirar os olhos de Marcelo que corria em sua direção.
O garoto que deu um salto de três metros de altura armando um golpe com os dois pés contra a mulher, mas esta foi salva pela barriga de Romulo que ainda com as mãos no rosto e parecendo maior que antes, recebeu todo o impacto do golpe segurou Marcelo pelas pernas, o girou acima de sua cabeça como se fosse uma blusa e o arremessou contra a árvore atrás do banco de madeira.
Como alguém podia pular tão alto ou quebrar o chão com apenas uma porrada? Gabriel se fazia essas perguntas assistindo a cena da porta do banheiro. Aquilo tudo, para ele, era muito insano.
– Pegue o outro! – Disse Berta caminhando na direção de Marcelo que se levantava com dificuldades. - Eu cuido desse aqui.
Romulo se aproximava do banheiro feminino dando risadas e com um sorriso sombrio no rosto. Gabriel não tinha para onde correr. Estava encurralado. Sua missão iria falhar e muitas pessoas mais seriam infectadas. Ele não era forte o bastante para combater o grande homem que estava cada vez mais perto, nem rápido o suficiente para correr. Só não se permitia morrer sem lutar.
– Vamos lá. – Disse Gabriel baixinho após sair do banheiro. Fechou os olhos e ergueu os braços a meia altura, como se estivesse em oração. – Os treinamentos não podem ter sido em vão. Imagine a semente germinando! Imagine a raiz expandindo e o caule crescendo...
THÁÁÁP!
Gabriel pensou que havia conseguido fazer uma árvore crescer, mas ao abrir os olhos viu Marcelo com os dois braços na altura do rosto, numa espécie de escudo, defendendo o golpe de Romulo.
– O que você pensa que está fazendo, cara? Vai logo procurar o cristal! - Disse o garoto com a voz saindo da garganta, pois estava fazendo força para não ceder.
– Certo! – Disse Gabriel correndo para a lateral da construção. Tinha que se concentrar em encontrar o objeto. No momento era a única forma de ajudar Marcelo.
Era difícil de enxergar, com o local fechado o parque contava com apenas trinta por cento de sua iluminação normal. Gabriel tirou o celular do bolso e ligou a lanterna. Com o pequeno feixe de luz ele começou a vasculhar as latas de lixo coladas na parede. Ao mexer em alguns sacos, três ratos correram para o meio dos arbustos assustando o garoto. Ele continuou procurando entre as árvores em meio ao barulho da batalha. Chegou perto da estátua do Segundo Anhanguera e sentiu novamente o fraco calor de raiva em seu corpo ao lembrar das atrocidades cometidos pelo explorador. Não tinha tempo para pensar nisso e apontou a luz do celular a sua volta. Quando iluminou a base da estátua, notou que nela havia uma pequena porta de ferro pintada de branco, trancada por um cadeado prateado. Ele pegou uma pedra grande que estava perto de seu pé, ajoelhou perto da estátua e começou a golpear o objeto, mas o que quebrou foi a pedra.
Gabriel ouviu um latido rouco e de trás da estatua o que viu foi um pit bull preto com um metro de altura rosnando para Romulo e Berta. O cachorro parecia uma pantera. Ele tentou quebrar o cadeado com outra pedra que também se espatifou ao mesmo tempo em que ocorreu uma explosão. Quando olhou novamente para a luta, viu o cachorro voando em sua direção. Não teve tempo para nada além de pular para seu lado esquerdo. O pit bull se chocou com a estátua fazendo os estilhaços caírem por toda a parte.
– Por que usou a runa de explosão com esse fracote? – Perguntou Romulo enquanto Gabriel rastejava até Marcelo que voltara a ser humano.
– Ele estava me irritando. Enterre o corpo dele. Vou pegar o outro garoto. – Disse Berta que começou a andar na direção dos garotos e parou repentinamente. - Rápido! - Gritou ela.
– Força, Marcelo. Levante! Não podemos desistir. – Dizia Gabriel ajoelhado e com Marcelo em seus braços.
– O cristal. – Disse o garoto com a voz fraca apontando para o local onde a estátua ficava antes de desmaiar.
Gabriel entendeu o motivo de Berta, desesperada, ter começado a correr transformada em um golden do tamanho de um cavalo adulto. Na base oca da estátua estava o objeto mais escuro que ele já virá antes. Se não soubesse o que era, teria jurado que ali havia um buraco muito fundo. Ele deixou o corpo inerte de Marcelo no chão e correu na direção do cristal enquanto tirava da mochila a pedra-do-sol que Patrícia havia lhe dado antes de dizer que era conhecida como A bruxa, mas que era apenas uma alquimista.
Apesar de ter o tamanho de um hipopótamo, Romulo, que havia se transformado em um buldogue inglês, corria muito rápido e chegaria no cristal antes de Gabriel. Mas este saltou por cima dos escombros da estátua e foi na direção de Marcelo deixando o caminho livre para o garoto que encostou a pedra no cristal.
Um circulo de fumaça alaranjada saiu da fusão entre os objetos envolvendo e se dissipando rapidamente do local.
– Romulo! Você é um completo idiota. – Disse Berta que voltou a ser uma mulher antes de desmaiar.
Gabriel desabou, havia terminado a tarefa. Pelo menos ali ninguém mais seria infectado. Seu celular vibrou em seu bolso. Era uma mensagem de Ivan.
“Caraca, cara! Como você sabia que a professora de matemática iria faltar hoje? NÃO TEVE PROVA! Uhuuul!
Ps.: Daorinha o vídeo da tiazinha dançando no metrô! Curti pacas a mensagem que ela passou!”
Depois da batalha no Parque Trianon, Gabriel ligou para Patrícia que arrumou toda a bagunça num passe de magicas, menos a estátua do Segundo Anhanguera que foi um pedido do garoto. Ela também levou Berta e Romulo, também Marcelo dizendo que cuidaria dele.
Ele seguiu sua vida normalmente. Frequentava as aulas, trabalhava, saia com a namorada e curtia a vida em família, isso quando dava tempo.
Após treinar todos os finais de semana nos cinco meses que passaram Gabriel já conseguia fazer uma árvore nascer e crescer em poucos segundos. Curupira estava muito animado com os resultados. Vez ou outra trazia cartas de Fernanda e Nick. Gabriel viu Joana treinando algumas vezes sempre do mesmo jeito: flutuava em uma esfera de energia e apenas meditava.
Disse certa vez, no terreno de sua casa que ficava em um grande descampado, que a magia dependia de um esforço mental e não físico. Quando Gabriel pediu uma demonstração a garota fez aparecer em sua mão uma espécie de runa flamejante e arremessou, o objeto tocou o chão e fez uma explosão em um raio de dez metros.
– Uau! Isso vai fazer um estrago, o se vai. – Disse ele impressionado. – Pode me ensinar?
– Magia não aprende em livros. Ou você nasce bruxo ou apenas admira. Há!Há!|Há! – Disse a garota, cheia de si.
– Verdade. A Joana nasceu e em poucos segundos já flutuava sozinha. Orgulho para esse velho aqui. – Curupira saiu para ver o motivo da explosão.
Os dois, Gabriel e Joana, ficaram muito próximos. A garota fazia ligações por magia para Fernanda e Nicolas e os quatro colocavam a fofoca em dia. Nicolas não estava mais tão gordo, até onde Gabriel conseguia ver a gordura do amigo deu lugar a músculos, mas continuava a mesma pessoa de sempre.
– Vamos, Biel. Está na hora de você ir descansar. Amanhã, seu treinamento não será comigo e sim com o Pedro. – Curupira estendeu a mão para o garoto segurar. – Quando eu disser pula, você pula.
Gabriel sabia bem o procedimento de transporte instantâneo do Curupira. Os dois ficaram envoltos das chamas mornas e, após um pequeno pulo, os dois estavam na frente do portão do parque Santo Dias. Curiosamente, sempre que faziam isso não havia ninguém passando pela rua.
– No próximo sábado, você tem que estar aqui às sete da manhã. – Sorriu Curupira.
– Vou poder dormir um pouco mais. – Disse Gabriel animado.
– Sim! Descanse bem. Pedro não costuma pegar leve como eu. – Ficou em chamas e logo só restou a fumaça.
JURUPARI, CAIPORA, LOBISOMEM E A PROPOSTA.
Na segunda-feira de manhã, Gabriel estava verdadeiramente cansado. Os treinamentos com Marcos eram, na maior parte das vezes, bem tranquilos, mas este último o deixou exausto. Gastou tanta energia no dia anterior, que nem parecia ter tomado um café-da-manhã bem reforçado, há uma hora e meia atrás. Seu estômago parecia tão vazio que dava a sensação de ser um buraco sem fundo dentro de sua barriga.
No escritório, sua mesa estava cheia de envelopes de vale-alimentação que teriam que ser entregues hoje para os novos funcionários em uma obra recém iniciada. Ele tinha que protocolar cada um dos envelopes com o nome das pessoas a quem seriam entregues em uma planilha antes deles saírem da empresa e serem entregues aos seus donos.
Gabriel apenas ligou seu computador e correu até o refeitório a fim de comer algo, antes de começar a trabalhar. Saiu da sala, passou pela recepção ainda vazia, virou no corredor e entrou ofegante na cozinha. O local estava deserto, mas havia bolos, pães, suco, café, leite, frios e frutas que fizeram o estômago do garoto roncar de ansiedade.
Empurrou garganta abaixo duas fatias de bolo de laranja, fazendo-as descer com generosos goles de suco de caju. Cortou rapidamente um pão de queijo colocando entre as fatias presunto e comeu como se não houvesse amanhã. Três minutos depois estava fazendo o caminho de volta para sua mesa.
A recepção não estava mais vazia, a cadeira agora estava preenchida com Tânia, seus lindos lábios pintados com batom vermelho e seu decote exuberante.
– Bom dia, Tânia! – Disse Gabriel apressando o passo. Não podia perder mais nenhum minuto.
– Bom dia, Biel. – Falou Tânia acompanhando o garoto com o olhar. – Eita! Que pressa arretada é essa? Vai em algum encontro? – completou com seu ar de feliz e um sorriso no canto da boca.
– Tenho um encontro com o trabalho, mulher! Uma pilha de benefícios a protocolar e logo o povo sai para entregá-los na obra em Alphaville.
– Então, Biel. Hum… O pessoal sairá em dez minutos. A dona Colette resolveu de última hora que fará uma vistoria na obra e, você sabe como ela é, vai ficar lá o dia inteiro medindo cada centímetro em busca de irregularidades.
– Vai ser impossível passar tudo aquilo para a planilha em apenas dez minutos. – Falou o garoto com um certo desespero na voz.
– Nesse caso, você terá que ir com eles. Na van tem bastante espaço. Irão você, o Ivan, a Colette e o Seu Juarez.
“Menos mal” – . Pensou Gabriel em sua mesa juntando os envelopes e os prendendo em um elástico. – “Pelo menos não vou precisar fazer o serviço com pressa e correr o risco de esquecer de protocolar algum envelope na hora de digitar na planilha. Vou poder fazer com calma e depois conferir para ver se está tudo certo.”
Pegou a mochila e os envelopes, passou por Tânia, desejando um bom dia que foi retribuído com aquela voz doce e apaixonante, entrou no elevador que estava parado no hall da recepção e apertou o botão “3ss” (terceiro subsolo).
Os três já o aguardavam no local. Juarez estava dentro do carro ao volante usando uma camisa cor de vinho, Colette estava com os cabelos curtos e bem penteados com um topete (Gabriel gostou do novo corte) calça jeans preta, camisa social xadrez em vermelho e preto, bota de obra e fumava um cigarro, enquanto lia um panfleto. O garoto tentou se lembrar se já a havia visto sem um cigarro na boca, um pensamento em vão. Ivan estava encostado na traseira do carro com fones de ouvido, camisa preta e larga com o a silhueta de Renato Russo, calça larga preta e um All Star também preto. Esse por sua vez deu um largo sorriso ao ver o amigo.
– É você quem se juntará conosco nesse belo e romântico passeio, Biel? – Perguntou Ivan tirando os fones da orelha e os repousando em seus ombros.
– HA! HA! HA! Sou eu sim, espero que me perdoe por não ter lhe trazido rosas. Bom dia a todos. – Gabriel cumprimentou os três com sua saudação e apertou a mão de Ivan.
– Nossa, Biel! No início da relação tu eras mais atencioso.
A van seguia pela avenida Castelo Branco com o Seu Juarez dirigindo e dona Colette no banco carona fumando seu terceiro cigarro em menos de meia hora e, nos bancos de trás, os dois garotos conversavam abertamente.
– Diz aí, Biela. Não deu tempo de protocolar isso na empresa? – Perguntou Ivan vendo o amigo fazer o serviço pelo celular.
– Que nada, cara! São muitos envelopes e eu havia chegado em menos de dez minutos, quando Tânia me falou que eu tinha que ir com vocês.
– E por que não tirou foto dos envelopes? Assim, era só me passar que eu os entregava. Você queria mesmo era fazer um rolê de carro que eu sei.
Não era má ideia, para ser bem justo era uma ótima ideia. Pena que Ivan só a tenha dito agora. Se tivesse pensado nisso, poderia ir embora mais cedo curtir com a Flor uma vez que não tinha mais nada para fazer o dia todo.
O local tinha o tamanho de um estádio de futebol, só que ao invés de grama, no meio tinha um imenso buraco que estava sendo cavado pelos tratores espalhados por todos os lados.
A obra estava no começo e tinha centenas de pessoas por todas as partes com capacetes e uniformes andando de um lado para outro. Algumas com pranchetas pareciam passar instruções a outros que prontamente iam fazer o que lhes era designado.
Boa parte dessas pessoas receberiam seus benefícios hoje. A obra era uma grande fonte de emprego e muitos desses empregados vinham de outros estados brasileiros tentar a sorte na megalópole São Paulo.
O alojamento ficava próximo do estacionamento que deixaram a van. Seu Juarez deixou os garotos no escritório improvisado em madeira e foi com dona Colette fazer uma ronda pelo local.
– Que lugar gigantesco não é, Biel? Viu todas aquelas pessoas? Quanto tempo deve levar até os prédios ficarem prontos para serem entregues? – Perguntou Ivan jogando sua mochila sobre o sofá embaixo da janela.
– Vi sim! A obra deve alimentar muitas famílias. – Disse Gabriel tirando os envelopes da mochila e os colocando sobre a mesa onde havia um computador. – Até a conclusão da obra deve levar de quatro a cinco anos.
– Quando terminar eu já serei avô
– Há! Há! Há! Avô é um pouco demais, não acha?
– Verdade! Estaremos quase formados na faculdade. – Falou Ivan, olhando para a janela enquanto Gabriel ligava o computador.
– Bom, talvez ainda estejamos trabalhando na empresa, assim podemos acompanhar a obra e nossa formatura chegará mais rápido.
– É bom termos objetivo na vida, Biel. – Ivan ainda olhava pela janela. Sua voz estava calma em um tom sério. – Mas o importante é o caminho que se percorre até chegar nele. Temos que aproveitar, curtir, viver cada momento até porque é um tempo que não voltará.
– Você está certo! Mesmo pensando no futuro temos que viver o presente até porque não sabemos se vamos estar vivos para viver o futuro que queremos. A única coisa que temos é o agora.
– Agora vamos parar de filosofar e começar a trabalhar. – Disse Ivan ligando o computador ao lado do que Gabriel estava.
Uma hora depois, os dois haviam terminado de protocolar todos os envelopes de benefícios e estavam a caminho do refeitório onde seriam entregues.
Estar com Ivan era sinônimo de diversão. Ele era, sem dúvidas, o mais espirituoso da turma e também muito sensato em suas colocações. Gabriel tinha certeza de que ele será um ótimo pai e tutor quando a hora chegar.
O refeitório, também improvisado com madeiras, tinha trinta metros de comprimento por vinte de largura. Três grandes fileiras de mesa uma ao lado da outra separadas por bancos tudo feito de madeira.
– Uau! – A expressão de Ivan fez eco no salão vazio. – Tudo nesse lugar é grande.
– Não é?! Mas também, com toda essa gente para alimentar não podíamos esperar menos. – Falou Gabriel, ouvido o barulho da madeira em atrito com Ivan correndo feliz pelo local.
– Ainda temos uma hora para começar a entregar os envelopes. Vamos fazer uma revisão e depois andar um pouco por aí?
– Bora! Você está com a ficha de controle que imprimimos?
– Não, Biel. Pensei que estivesse com você.
– Deve ter ficado no escritório. Vou lá buscar.
– Beleza! Enquanto isso vou separando em ordem alfabética.
– Fechou. – Disse Gabriel e começou a fazer o caminho de volta.
O céu que antes estava azul e limpo agora começava a escurecer com nuvens carregadas. Difícil, mas não impossível chover no inverno brasileiro.
“O que será que Kika e os outros estão fazendo agora?”. Pensou Gabriel, enquanto andava por cima de um caminho feito de madeira para sujar o mínimo possível os sapatos mesmo sabendo que dona Lúcia o faria lavá-los assim que ele chegasse em casa.
Continuou pelo caminho, cumprimentando todos que passavam por ele. Não demorou e já estava na primeira porta do alojamento onde ficava o escritório. Ao entrar por ela, ouviu vozes vindas de dentro do local. Podia ouvir nitidamente, pois a porta de entrada do escritório estava entreaberta.
– Muito interessante a proposta! – Era a voz de Colette. Gabriel nem precisou ouvi-la para saber que ela estava ali, o cheiro de seu cigarro empesteava o pequeno corredor. – Vocês já sabem quando Piatã chegará na Terra?
– Em breve, Caipora. – Falou uma voz, desconhecida, que parecia um latido. – Como não tinha certeza se o que procurava estava aqui ele enviou seus cavaleiros para uma vistoria. Você os conhece muito bem não é, Jurupari?
– Conheci-os há muito tempo atrás, eram muito fortes e ágeis. – Falou Seu Juarez. – Nada que eu não possa dar conta. Na vez em que os enfrentei, estava protegendo Aba e não tive como lutar com todas as minhas forças.
“Por que o Seu Juarez foi chamado desse nome estranho? E Caipora? A dona Colette foi chamada de Caipora! Tá certo que ela fuma feito a tal figura folclórica, mas daí ser apelidada disso é no mínimo engraçado. O estranho foi ela não ter reclamado. Esse cara com voz de cachorro rouco, deve ser bem próximo dela”. – Pensou Gabriel que controlava sua respiração para não ser notado. Não era de seu feitio espionar, mas a conversa estava bem interessante.
– É com sua força aliada ao senhor Piatã vocês serão invencíveis! O que me diz, Juru? – Seguiu um silêncio que foi quebrado segundos depois por pesados passos na madeira.
– Essa guerra nunca foi minha. – Disse Seu Juarez quando a porta próxima a Gabriel se fechou, fazendo o coração do garoto pulsar em sua garganta. A porta foi trancada por dentro e logo depois, a julgar pelo barulho, as janelas também foram fechadas. Parecia que eles não queriam ser ouvidos.
“Eles serão defumados lá dentro com toda essa fumaça” – Pensou o garoto sufocando um riso.
– Pense bem, homem. Quando Piatã recuperar todas suas forças você será mais que um Deus de tribos indígenas, poderá reinar sobre toda uma galáxia ou duas se assim desejar. Você será o senhor supremo daqueles que escolher como seus. Há milhões de galáxias por aí e todos os aliados de Piatã irão receber uma de presente. Tu estás com a gente, Caipora?
– Deve admitir que é muito tentador. Vou poder mandar muito mais que meia dúzia de funcionários, da minha maneira e sem interrupções? Sempre quis empreender. HA! HA! HÁ
– E você, Jurupari? Pensa no poder que terá por toda a eternidade. Será o senhor de sua própria galáxia e se eles se rebelarem, como fizeram os índios ingratos daqui, você poderá exterminá-los e começar uma nova raça. – Um novo silêncio tomou conta do lugar.
Gabriel estava tenso e ouvia a conversa com atenção. Ele não tinha certeza do que aquilo tudo significava, mas parecia ser algo muito sério. O silêncio era tamanho que ele jurava ouvir a respiração dos ocupantes do local. O que sabia era que Colette continuava fumando, pois era audível o soprar da fumaça do cigarro por ela.
Um forte barulho de trovão tirou a concentração do garoto, jurou que o raio havia caído ao lado da construção de madeira em que estava.
– Eles não tiveram nenhuma culpa no que aconteceu. – Disse Juarez num tom bem baixo. – Estavam morrendo aos montes. Todos os que se opuseram aos novos ensinamentos religiosos que estava eram assassinados. Eu não podia fazer nada. Jurei para Aba que não iria interferir nos acontecimentos desse planeta. Eu morria um pouco a cada execução. A única coisa que competia a mim era afastar-me deles e eu assim o fiz. Se eles não aderissem à Tupã como seu único Deus, todos os índios seriam exterminados pelas armas de fogo.
– Claro! Claro! Vocês não tiveram escolhas, mas agora você tem a chance de ter todo o poder em suas mãos. Assim que Piatã estiver com todas suas forças ele fechará as passagens para o planeta de Céu e ninguém irá conseguir vir de lá para cá e nem daqui pra lá. O que me diz, Juru? Podemos contar com todo esse seu poder?
– Já falei, essa guerra não é minha. Estou cansado de tudo isso.
– Então se recusa a se unir ao grande Piatã? Saiba que aqueles que não estiverem com ele serão aniquilados.
– Diga ao “grande” Piatã que estarei no centro da Amazônia e se caso ele vier me importunar eu mesmo darei um chute na bunda rochosa dele. – Falou Seu Juarez com uma firmeza que Gabriel nunca sentiu em sua voz antes.
O clima dentro do escritório estava ficando tenso e do lado de for a chuva caia pesada e intensamente. O barulho das gotas colidindo com o telhado era alto e Gabriel tinha que fazer muito esforço para ouvir a conversa, o bom era que não precisava controlar sua respiração que era abafado pela chuva.
– Com o Juru fora do jogo, eu irei me juntar às forças de Piatã. – Falou Colette, que parecia mais querer atrair a atenção e acalmar os ânimos
– A Cuca entrará em contato com você em breve. Enquanto isso leve sua vida normalmente. – Disse a voz rouca.
– Certo! – Confirmou Colette.
Ao ouvir a menção da Cuca Gabriel pode entender que aquilo tudo era realmente importante.
– Quanto a você Jurupari, tenha certeza que seu castigo virá em grande estilo!
O que se ouviu depois disso foi um forte som de madeira quebrando e um “cain-cain” distante.
– Estarei aguardando! – falou Juarez.
Um novo trovão caiu ali perto e logo em seguida as madeiras começaram a tremer cada vez mais forte.
Gabriel correu para fora do alojamento, ficando encharcado com toda aquela chuva. Não se importou. O canteiro de obras estaria deserto não fosse as três figuras gigantes de pedra que esmurravam tratores fazendo-as voar pelos ares junto de barro e água.
O que ele faria? Estava no meio de seu treinamento, sentia que não tinha forças para deter um Golen, imagine três deles ao mesmo tempo e sozinho, se ao menos Nick e os outros estivessem ali. Não era hora pra pensar no que poderia ser e sim no que estava acontecendo agora.
Começou a correr de forma inconsciente na direção dos monstros de pedras, tinha que tentar alguma coisa, pois todos corriam risco de vida. A menos de trinta metros de um dos Golens ele fechou os olhos, concentrando-se nas árvores próximas. Não tinha tempo de fazê-las crescerem, então usaria as que já estavam por ali.
De olhos fechados, ele tentava lembrar-se do que Curupira disse para ele nos treinamentos. “Imagine que…” “CRACATUMMM!!!”. Um forte som de trovão, seguido de risos altos e loucos tiraram sua concentração. Olhou para trás e viu Seu Juarez levitando por sobre o telhado do alojamento. “Quem é esse cara?!” pensou Gabriel.
– Isso é tudo que pode fazer, cachorrinho? – Gritou Jurupari de olhos esbugalhados e um sorriso insano no rosto. Ergueu as mãos na altura dos ombros e quando as abaixou o barulho causado pelos monstros desapareceu. O garoto olhou na direção dos Golens, mas esses também já não estavam mais ali.
Gabriel olhava estupefato para a pessoa que para ele por anos foi o Seu Juarez. Desde que ele se entendia por gente, aquele homem frequentava sua casa, toda vez com um presente ou guloseimas diferentes, foi um dos primeiros a chegar lá, quando o garoto caiu do muro, sempre de prontidão para sua família e agora ele sabia a verdadeira identidade de Jurupari, um renegado Deus indígena.
– Diga a seu amado mestre que estarei no centro da Amazônia, aguardando por ele e que outros não venham até mim, pois irão sentir toda minha fúria – Disse Jurupari, olhando diretamente nos olhos de Gabriel, em seguida um raio caiu no local em que Jurupari flutuava e ele desapareceu, deixando o garoto ali cheio de caraminholas na cabeça e todo encharcado.
A pedido de Colette empresa pagou um táxi para que os garotos fossem para a casa depois da entrega dos benefícios. Gabriel, que estava vestido com uniforme da obra pois sua roupa ainda estava encharcada, não conversou muito. Fingiu estar dormindo e repassou o ocorrido de algumas horas atrás em sua mente.
Depois que Jurupari desapareceu, Gabriel esperou por dois minutos, próximo ao alojamento de madeira, antes de entrar no local só para pegar a folha com o nome de todos os beneficiários, colocou o papel dentro de um saco plástico e apenas comentou sobre o buraco na parede do escritório dizendo:
– Nossa! Ainda bem que eu não estava aqui quando esse raio caiu! – Desesperado para sair dali e evitar um interrogatório, ele dobrou a ponta do saco plástico para que a água da chuva não molhasse o papel que estava dentro e começou a andar rapidamente para sair do local e deixar Dona Colette fumando seu cigarro. Ela não deu a menor atenção ao que o garoto disse.
– Hum! Antes de entregar os envelopes passe no almoxarifado e pegue um uniforme para não ficar resfriado. – Falou ela, jogando a bituca do cigarro pelo grande buraco na parede e acendendo outro. – Assim que terminarem podem almoçar que eu vou chamar um táxi para você e o Ivan.
– Sempre bom conversar com você, Biel! – Falou Ivan, quando o carro parou na frente do Terminal Capelinha, ironizando o silêncio de Gabriel na viagem. – Tu ficaste meio estranho depois que voltou do escritório, se quiser conversar sobre alguma coisa é só me ligar!
– Coisa minha, Ivan. Não quero te preocupar com besteiras! – Disse Gabriel, pensando sobre o ocorrido e sabia ele que de besteira aquilo não tinha nada, mas Ivan certamente iria rir se soubesse da história e não daria muito crédito pensando que era brincadeira dele. – Vai curtir o dia. Ainda são duas da tarde.
– Vou curtir mesmo! E já sabe, qualquer coisa me liga! – Falou Ivan correndo para atravessar a rua quando o semáforo ficou vermelho para os carros.
PEDRA NO CAMPO.
A semana passou rápido e logo era sábado, Gabriel acordou cedo, foi tomar banho e pensou nos acontecimentos do início da semana. Queria ter alguma forma de contar à Jô, Kika e ao Nick sobre o ocorrido, só que não era possível. Ainda bem que amanhã iria encontrar-se com Pedro, assim poderia encontrar uma forma de se comunicar com Nick.
Na cozinha estava Dona Lúcia que o abençoou com um beijo na testa e pediu para que ele fosse até a padaria comprar pão. Depois do café da manhã, foi ao mercado comprar algumas coisas que estavam faltando na dispensa de casa. O dia estava ensolarado, como era normal no Brasil, mas já era meio de outono e, mesmo com o sol, o dia estava frio.
No caminho de volta do mercado, Gabriel namorava algumas roupas nas lojas em que passava, tinha que comprar algumas blusas de frio caso quisesse manter a maratona de treinos nas madrugadas geladas da estação.
Estava olhando uma blusa que estava na arara em exposição próximo à calçada, não ia levar àquela hora, voltaria em outra ocasião para comprar a blusa. Quando saiu da loja uma mulher, que vestia uma blusinha preta e uma calça legging preta e um sapato também preto e cabelos ruivos, passou correndo por ele e deu "Bom dia". Estranho, as pessoas por aquelas bandas não costumavam cumprimentar-se. Gabriel retribuiu o cumprimento da mulher.
– Ganhei o dia! – Disse sorrindo. – E ele ainda nem começou. Ainda bem que a Jéssica não viu isso, se não eu seria um homem morto.
Mais tarde foi até a casa de Camila com Dona Lúcia e passou a tarde inteira brincando com Maria Flor e dando risadas com sua família. Há meses não tinha uma tarde como essa. Nem reparou que estava cansado.
No caminho de volta para a casa, Gabriel e Dona Lúcia desciam a Avenida Henrique San Mindlin distraídos, passaram por cima do córrego limpo e foram para casa. Ao olhar para o outro lado da avenida, onde havia um caminhão que vendia algumas frutas, ele viu que a mulher que passará por ele mais cedo estava conversando com o dono. Era muito linda: branca, cabelos ruivos, olhos puxados, um lindo corpo. Aparentava ter no máximo trinta anos.
Gabriel continuou andando e olhando para trás quando viu que a mulher lhe acenou e saiu andando com uma sacola de frutas na mão. Nunca tinha visto essa mulher antes, não conhecia todo mundo do bairro, mas sabia que nunca tinha visto tal mulher.
Depois de um banho para relaxar o cansaço do dia Gabriel jantou e assistiu um pouco de televisão com a mãe. Foi até a parte de casa e regou as plantas. Fez um carinho nas folhas do bonsai e foi dormir. Acordou no outro dia cheio de disposição às seis da manhã. Tomou um café reforçado arrumou-se, colocou algumas frutas, biscoitos e lanches dentro da mochila e foi se despedir, como sempre fazia, de sua mãe e mais uma vez ouviu o "se cuida".
Faltavam dois minutos para as sete horas, quando um carro vermelho vivo, conversível estacionou ao seu lado. Dentro dele estava o Saci. Usava um chapéu preto, óculos escuros, algumas correntes de ouro no pescoço e no pulso. Vestia uma camisa vermelha.
– Entra aí garoto. – Disse sorrindo.
Gabriel entrou no carro, colocou a mochila no banco de trás.
– Pensei que o senhor viria como o Curupira. Digo, como o Marcus. – Corrigiu rapidamente. Era estranho ver seu antigo professor de história em um visual tão descolado já que ele era sempre tão formal
– Eu iria vir sim, mas temos que comprar uma camisa nova para o Nick. – E arrancou com o carro. Uma coisa estranha veio a mente do garoto ao olhar para a bermuda preta e branca e os tênis coloridos do homem.
– Pedro, se o senhor é o Saci, como está com duas pernas? – Perguntou esperando não ser ofensivo.
– Ah, sim! Quando estou no meio urbano eu tento me enturmar. Sabe como é. – E seguiram viagem ouvindo um samba raiz.
– Porque não me contou nada na escola ou quando apareceu no dia do meu aniversário?
– Não tínhamos certeza de que você era quem procurávamos e não queríamos te assustar.
Compraram uma camisa social preta simples. Depois passaram no driver thru de uma fast food e compraram alguns lanches.
– O garoto come pouco, você sabe. Agora que ele está treinando é literalmente uma boca nervosa.
– Nós vamos passar na sua casa?
– Não. Minha esposa foi fazer as unhas e o cabelo. Eu vou deixar o carro com ela e de lá nós vamos.
– E onde vamos treinar?
– Surpresa. – Disse sorrindo e continuou a dirigir. Pedro começou a mudar a estação no rádio e parou em uma que passava uma música pop. Dançava e fazia coreografias passando os dedos na frente dos olhos e balançando a cabeça. Cantava as músicas alegremente. Gabriel nunca pensou que ele fosse desse jeito. Nunca o vira assim. Nem quando fazia visitas ao Nick. Talvez por ser professor tivesse que assumir um papel de alguém a ser respeitado.
O Curupira era um pouco mais sério, nunca dançava ou cantava. Era o estilo pai atencioso e responsável. Já Pedro, nessa nova versão, era mais descolado, parecia o irmão mais velho que animava as festas em família.
Chegaram no salão de beleza e uma linda mulher loira que usava um vestido todo vermelho com um vasto decote sorria e acenava para eles.
– Bom dia, paixão. – Disse o Saci ao sair do carro e dando um beijo na mulher.
– Bom dia, amor. – Disse a mulher retribuindo o beijo e pegando as chaves.
Gabriel conhecia Nicolas desde a escola, mas essa era a primeira vez que via sua mãe. Um motorista sempre o pegou no colégio.
– Bom dia, Dona Beatriz. Tudo bem? – Disse Gabriel se aproximando.
– Olá, querido! Estou ótima e você como está?
– Estou bem, obrigado.
– Ah! Nicolas me contou uma história muito interessante de um beijo entre você e a Kika! Me fala como foi, menino!
– Querida, você vai deixar o menino sem jeito. – Era verdade. Gabriel sentiu o rosto queimar de vergonha.
– Desculpa minha falta de tato! Deixa eu ir. As meninas estão me esperando. Elas têm cada “bafão” para me contar. – Deu um beijo de despedida no marido, um beijo no rosto de Gabriel e entrou no salão toda sorridente.
– O Nick se parece muito com ela. – Falou ainda sem saber onde enfiava a cara.
– É! Ele puxou a Beatriz todinha. – Gabriel notou que o Saci estava em seu traje habitual: gorro e saia vermelhos que pareciam mais leves que o ar, o cachimbo e uma perna só. – Segure minha mão e quando eu falar pula você pula.
O garoto segurou na mão dele e pulou quando ouviu a ordem.
A viagem com Saci era totalmente diferente da do Curupira, exceto pela velocidade que era a mesma. Não sentia o morno das chamas e sim uma brisa fria no interior de um tornado, mas não incomodava.
Em poucos segundos ele se viu no alto de uma montanha. Ali o frio incomodava bastante, por sorte vestia a blusa e a calça de moletom que comprou no dia anterior.
– O Rio de Janeiro continua... Bem-vindo ao Dedo De Deus! – Saci estava de braços abertos e com um largo sorriso no rosto. – À nossa direita temos a cidade de Petrópolis. Na nossa frente Magé, pouco mais para esquerda temos Guapimirim e ali atrás a cidade de Teresópolis. Sabe o que tem em Teresópolis?
– O lugar que a seleção Brasileira fica? – Perguntou Gabriel sem ter tanta certeza da resposta.
– Exatamente! A Granja Comary.
Gabriel conseguia ver uma movimentação em dois dos cinco campos da Granja. Jogadores de azul de um lado e jogadores de amarelo do outro.
– Hoje tem treino coletivo dos jogadores que foram convocados para a Copa do Mundo. Chegamos bem na hora.
– Legal. Finalmente um momento de lazer. – Gabriel disse se sentando na grama gelada.
– Lazer? Rá! Levante -se. O seu treino vai ser atrapalhar o deles.
– Mas por quê? Não vou atrapalhar o desempenho deles?
– Sim. Mas bem de leve.
– Não quero ser culpado pelo Brasil perder a copa do mundo.
– Você vai ajuda-los a adquirir mais destreza.
– E o que eu vou ter que fazer? – Perguntou o garoto se levantando.
– Bom. Primeiro mostre-me o que você sabe. – Gabriel fechou os olhos e fez um movimento com os braços de baixo para cima. Logo abaixo de onde eles estavam cresceu uma árvore com pontos vermelhos por entre as folhas. – Muito bom, fez crescer uma macieira bem rápido e com maçãs. – Pedro deu um salto até a árvore, pegou algumas frutas e com outro pulo voltou até Gabriel. – Hum! Docinha. – Disse ao morder uma delas.
– Tudo graças a energia que o Marcus me passou. – Disse Gabriel meio desanimado.
– Se ele te deu alguma coisa, essa já se foi há muito tempo. O que usou aqui totalmente sua energia.
O garoto deu um pequeno sorriso de orgulho. Afinal, todo o sofrimento do treinamento até ali valeu a pena.
– Bom trabalho, Biel. - O Saci parecia satisfeito com as frutas. – Consegue fazer os galhos da macieira se moverem?
– Como?! – Gabriel estava confuso.
– Parece que não. O nosso treinamento hoje será esse. Você vai ter que fazer o gramado no campo se mexer e deslocar a bola.
– Mas está muito longe! Eu mal consigo ver o gramado.
– Não precisa ver só sentir.
– Se eu não consigo ver como vou sentir?
– Tire os sapatos.
Gabriel tirou os calçados receoso de ter que colocar os pés na grama gelada.
– Agora olhe para a árvore que você acabou de fazer.
– Certo!
– Feche os olhos e com as plantas dos pés sinta a árvore.
A terra estava muito gelada e Gabriel só conseguia sentir frio, mas tentou se concentrar na macieira.
– Sinta a árvore, seja a árvore. Está conseguindo? As raízes, o caule, os galhos, as folhas e as frutas. Está sentindo o processo lento de fotossíntese e a árvore buscando alimento da terra, do sol e do ar?
Gabriel sentiu como se seus pés estivessem enterrados no solo e um formigamento pelo corpo. Assentiu com a cabeça para o Saci.
– Concentre-se no caule e imagine que ele está se curvando. Ele está fazendo um movimento para frente. Você está se movendo para frente. Você é a árvore.
O garoto começou a abaixar o tronco do corpo lentamente como se estivesse fazendo uma reverência. Demorou alguns minutos para conseguir fazer todo o movimento, sentia seu corpo duro e pesado.
– Muito bem. Muito bom! Parabéns, Biel. – Ele ouviu Pedro dizer e bater palmas empolgado.
Gabriel abriu os olhos e viu que a árvore estava na mesma posição de referência que ele.
– Caraca! Que daora! Consegui mesmo fazer a árvore se mexer.
– Agora, tente fazer ela voltar ao lugar, mas sem usar o seu corpo como espelho.
Ficaram nesse exercício por meia hora até Gabriel conseguir fazer a árvore se mexer, sem muito esforço. Logo, estava fazendo macieira mover-se para trás, para frente, deixar cair frutas e pegar com movimentos dos galhos.
– Parabéns. – Disse o Saci comendo outra maçã. – Você aprende rápido. Agora quero que você faça isso no gramado do campo que está tendo o jogo. Tente fazer a bola se deslocar driblando os jogadores.
Com a macieira foi mais fácil, ela estava perto. Ao tentar chegar no gramado seus sentidos conectavam-se com as diversas árvores no meio do caminho. Ficava complicado saber se estava sentindo o lugar certo ou não.
– Sinta os jogadores correndo pelo gramado. – Insistia Pedro.
Após uma hora de tentativa, Gabriel, finalmente, conseguiu fazer a bola se deslocar. O jogador que estava pronto para marcar o gol se desequilibrou com o movimento repentino da bola e caiu.
– É disso que eu estou falando. – Disse Pedro dando um soco no ar.
Após um breve atendimento médico ao jogador, a partida recomeçou. Gabriel evitou alguns gols fazendo a bola ir para a linha de fundo. Tirava-a dos pés dos jogadores que pareciam confusos com o que estava acontecendo.
– Muito bom, Biel. Acho que nosso treinamento acabou por hoje. – Disse Pedro com um belo sorriso no rosto. – Vou pegar umas dessas maçãs deliciosas para levar para o Nick..
No momento em que terminou a frase, o Saci parou de súbito. Um tremor correu pelo local fazendo as árvores se mexerem. Os jogadores pararam seu treinamento e começavam a correr na direção oposta do alojamento da Granja Comary.
– O que é isso? Terremoto no Brasil?
– Não! – Pedro já não tinha o sorriso amistoso no rosto. – É um Golem! E dos grandes!
Ele tirou o cachimbo da boca e apareceu uma grande marreta preta com detalhes dourados no cabo. Antes usava só o gorro e a saia, agora estava como um tipo de armadura vermelha que envolvia todo o corpo e tinha o que parecia ser uma arara no peito e com asas negras. Pegou um aparelho celular, procurou um nome na agenda e discou. Após alguns segundos falou rápido.
– Alô! Gustavo?! Preciso de você na Granja Comary! AGORA! – Jogou o celular para Gabriel e levantou voo dizendo. – Me dê cobertura garoto.
Um Golem de pedra, cinco vezes maior do que tinha atacado os garotos na Cachoeira da Fumaça emergiu no meio dos campos de futebol. Os jogadores e todas as pessoas que estavam no local começaram a correr para todos os lados sem rumo.
O monstro parecia atordoado e atirou uma rocha no alojamento próximo fazendo o local ir abaixo.
O Saci estava chegando ao local em que o monstro apareceu. Gabriel entendeu bem o recado. Fixou bem os pés no chão e fez árvores nascerem, cercando o Golem que puxou e destruiu todas elas como se fossem palitos de dentes.
A distração foi suficiente para que o Saci desse um golpe certeiro com a grande marreta no monstro deixando-o mais irritado e atirando grandes pedras em várias direções fazendo o Saci ter que se deslocar para destruir uma que estava indo de encontro a um grupo de jogadores da seleção brasileira.
Ele levantou voo e tentou uma nova investida contra o monstro que o acertou em cheio jogando-o longe, mas ele era persistente. Girou no ar e tentou outra investida. Quando o monstro fazia o movimento para acertá-lo outra vez Gabriel, que estava concentrado fez aparecer cipós do solo que segurou o braço do Golem, impedindo-o de acertar o Saci que subiu acima da cabeça do monstro e o acertou em cheio na nuca com a marreta.
O monstro era duro na queda. Levantou e ia levar outra marretada, mas bateu com as duas mãos no gramado e fez aparecer uma grande barreira de pedra onde a mareta bateu.
Saci bateu asas distanciando-se. O monstro aproveitou e deu socos na barreira lançando rochas na direção dele. Um desses pedregulhos estava indo na direção dos civis, mas Gabriel estava atento e bloqueou o ataque fazendo crescer árvores onde a grande pedra bateu.
A batalha estava equilibrada. Saci segurava-se para não bater tão forte no monstro e seus pedaços acertarem alguém, o que não era suficiente para derrotá-lo.
Alguma coisa estava acontecendo com o lago próximo aos campos de futebol. Uma onda saiu do lago e outra pessoa parecia ter entrado na batalha. Gabriel só conseguia ver rajadas de água indo de encontro ao monstro que tentava se proteger com os braços. O garoto concentrou-se e amarrou as pernas do Golem com novos cipós.
O monstro não conseguia se livrar deles, pois sempre que arrancava um punhado de cipós Gabriel fazia aparecer outro tanto no mesmo lugar.
Uma grande quantidade de água saiu do lago Comary e envolveu o monstro do pescoço pra baixo que continuava lutando para se livrar dos cipós. O Saci voou rapidamente e com um golpe forte arrancou a cabeça do Golem, que parou de se mover na mesma hora.
– Nos encontramos de novo, Biel. – Dizia Gustavo dando tapinhas na costa do garoto. – Lutou muito bem. Parabéns! – Dessa vez ele não estava bêbado e usava um terno azul claro com sua barba estilo lenhador bem aparada. – Gostei de como prendeu o Golem com os cipós.
Tudo no campo de futebol voltou a ser como antes. Tiveram bastante trabalho em apagar a memória de todos os que presenciaram o ataque, mas ambos, o Saci e o Boto, tinham técnicas boas para isso. O Saci soprava fumaça do cachimbo no rosto das pessoas enquanto o Boto lavava suas cabeças com águas cristalinas.
– A propósito. – Começou Gustavo com a mão no queixo de forma pensativa. – Quais são suas intenções com a minha filha? Responda se não quiser sentir a fúria das águas! MUAHAHAHA!
– Bem. Er... Nós somos só bons amigos – Gabriel ficou surpreso com a repentina investida.
– Estou brincando. –– Ele e Pedro começaram a rir. – Só espero que cuide bem dela e não a sufoque. Claro que mandar rosas, uma caixa de chocolates, um bom vinho, curtir as fotos dela nas redes sociais, ligar pra saber como ela está ou aparecer de repente nunca é demais.
– E você acha que isso ai não é sufocar, Gu? – Disse Pedro sorrindo.
– Eu vou fazer o melhor que posso. – Gabriel ainda estava sem jeito.
– Será o bastante. – E agarrou o garoto pelo pescoço com tanta força que ele ficou sem ar. – Ahhh! Como é lindo o amor! É como o anoitecer no outono ou o alvorecer na primavera!
– Bom. – Pedro estava segurando a cabeça do Golem. – Tenho que levar isso para o Marcos analisar. Importa-se de levar o garoto pra casa, Gu?
– Pode deixar comigo.
– Vou indo nessa. Anota aí meu número, Biel. Se você quiser tirar alguma dúvida ou falar com o Nick é só me ligar. – Gabriel pegou o celular do bolso e anotou o contato salvando como “Saci”.
Com isso Pedro fizera seu ritual de transporte instantâneo. Girou no calcanhar e onde estava só restou uma brisa.
– Vamos indo então? – Gustavo guiou Gabriel até as margens do lago Comary. – Entra na água e quando eu falar...
– Pula eu pulo. – Completou o garoto.
– Há! Há! Ha! Não! Não! Quando eu falar mergulha você prende a respiração e afunda a cabeça na água.
Gabriel entrou no rio e fez o que o Boto lhe pediu. Pensou que iria se afogar, a água apertava seu peito, mas logo estava na superfície do córrego próximo à sua casa.
– Estou no lugar certo? – Perguntou Gustavo.
– É aqui mesmo. Muito obrigado. – Disse o garoto. O Boto acenou com a cabeça e sumiu nas águas.
– O que é isso, Gabriel? Estava nadando no córrego? –Perguntou Ester quando o filho entrou pela porta da sala.
– Quase isso, mainha. Eu fui pegar a bola do Carlinhos que caiu no córrego e acabei escorregando.
– Se machucou?
– Não, só me molhei mesmo. Vou tomar um banho!
– Tem almoço no fogão. Ainda está quente.
– Tá bom. Depois do banho eu almoço.
– Guarda as panelas depois e lava a louça pra mãe?
– Pode deixar.
Após um banho quente e demorado, Gabriel almoçou a comida gostosa e bem temperada de sua mãe que dormia no sofá com a televisão ligada. Lavou a louça e guardou as panelas como ela pediu e foi dormir, pois estava muito cansada devida sua última batalha.
Não sabia que se havia dormido ou só fechado os olhos quando o telefone tocou.
– Hey, Biel! Está de boa hoje?
– Fala, Rick. Estava dormindo, por quê?
– Tem uma festinha ali e pensei em te chamar pra se divertir um pouco. Topa?
– Hoje eu tive um dia cansativo, Rick. Deixa pra próxima.
– Ahh! Bora Biel. O Ivan e o Diogo já confirmaram presença. Só falta você!
– E que horas será essa festinha?
Começa às vinte. A gente vai se encontrar no Terminal João Dias, no ponto que passa o Terminal Pinheiros às dezenove. E então?
– Beleza. Só vou descansar mais um pouco e a gente se encontra lá.
– Descansar? Já são dezoito horas. Vai se arrumar. – E desligou o telefone.
Tinha dormido a tarde inteira e depois que soube da hora o cansaço o deixou. Não faria mal em aproveitar um pouco a noite. Mandou mensagem para Jéssica perguntando se queria ir junto, mas ela disse que estava na casa de um parente no interior. Ele colocou o celular no criado mudo ao lado da cama, levantou da cama e foi se arrumar.
As cenas da batalha da Granja Comary não saiam da cabeça. Gustavo era muito bom em controlar as águas, mas se Pedro não tivesse que se controlar para não atingir as pessoas teria derrotado Golem facilmente com a sua ajuda.
–Vai sair, meu filho? – Perguntou Dona Ester quando ele entrou na cozinha.
–Vou a uma festa com alguns amigos, mas não vou me demorar. – Disse o garoto colocando a blusa e pegando uma pera na fruteira em cima da mesa.
– Não se demore mesmo por que amanhã você trabalha.
Gabriel deu um beijo na mãe e foi para o ponto e pegou o ônibus. Era um dia sem trânsito, então demorou apenas quinze minutos para chegar ao terminal João Dias.
Seus amigos já estavam no ponto. Junto aos três, de mãos dadas com um Diogo radiante, estava uma garota pouco menor que ele que vestia calça jeans, tênis e blusa rosa. Ivan estava todo de preto, como sempre. Ricardo usava uma blusa azul por cima da camisa rosa, calça branca e tênis preto. Diogo estava de blusa verde, calça preta e tênis branco.
–Aqui, Biel! – Ricardo acenava para ele com seu sorriso de sempre.
Gabriel cumprimentou todos seus amigos com aperto de mãos e abraços e deu um beijo no rosto da garota.
– Essa é Érica, minha namorada. Esse é Gabriel. - Disse Diogo apresentando os dois e mal conseguindo conter a felicidade.
– Não sabia que estava namorando. – Disse Gabriel sorrindo para a garota.
– A gente já está junto há sete meses, mas o Diogo aqui só resolveu me assumir agora. – Disse a garota dando um beijo no namorado.
– Sabe como é. Não queria que as pessoas ficassem de olho gordo na nossa relação. – Disse defendendo-se.
Pegaram o ônibus Terminal Pinheiros e desceram na Avenida Giovanni Gronchi, onde pegaram a lotação para Paraisópolis.
– Sabiam que Paraisópolis é a maior favela do estado de São Paulo com uma área de setecentos e noventa e oito mil metros quadrados extensão e com uma população média de quarenta e três mil moradores. – Começou Ivan. – Mas a gente não é o IBGE, então vamos curtir um “pancadão”. – E desceu a rua no ritmo da música que tocava no fim da ladeira.
Milhares de jovens estavam por todas as partes dançando, curtindo, se divertindo. Havia dois garotos no meio da rua, para Gabriel, não tinham mais do que quinze anos, estavam cada um com uma garrafa de vodca na mão e viravam na boca enquanto uma aglomeração de pessoas ao redor incentivava-os a continuar.
“Essa tal liberdade” – Pensou ele.
Gabriel nunca estivera ali antes, mas no geral gostou do ambiente. Apesar de algumas pessoas estarem envenenando-se ao ingerir algumas substâncias, outras apenas curtiam e davam risadas com amigos, assim como seu grupo.
– Você tem falado com a Kika? – Perguntou Ricardo em meio a gritos para se fazer ouvir e entregando um copo de refrigerante para Gabriel.
– Muito pouco. Ela e os outros estão muito ocupados. – Gabriel gritou de volta.
– Eu tenho tentado falar com o Nick, mas o celular dele só da caixa postal e ele não responde nas redes sociais. – Ricardo parecia triste.
– O lugar que ele está não tem sinal de celular. – Disse Gabriel tentando o consolar.
Ricardo ficava muito estranho quando se tratava de Nicolas, como se ele...!
– É... Por que não! – Disse Gabriel para si.
– O quê?
– Nada não, Rick! – E voltaram a dançar com o grupo.
Gabriel estava cansado. A força que conseguiu com o cochilo da tarde já o deixara e aquele lugar começou a ficar sem graça. Olhou para os amigos e Ricardo e Ivan parados olhando para os lados enquanto Diogo conversava animado com Érica. Os dois pareciam estar em outro lugar, não prestavam atenção no que acontecia ao redor. O relacionamento deles era contagiante, claro que só os viu juntos naquela noite, mas os dois pareciam se gostar muito. Dava para ver no jeito em que os eles se olhavam.
“Será que Jéssica e eu chegaremos a esse ponto?” – Se perguntou ele enquanto girava nos calcanhares para olhar o que acontecia e a viu encostada a um poste, com os braços por cima dos ombros de um rapaz e o beijando. – “Parece que a resposta é não”.
– Hei, Biel! Vamos embora? – Perguntou Ricardo ao notar a cena.
– Bora! – Disse ele tranquilamente.
– Eu prefiro um rock, mas o ambiente até que não é ruim, só que eu já estava ficando surdo. – Disse Ivan, quando estavam chegando ao ponto de ônibus.
Voltando para casa, os cinco decidiram parar no meio do caminho para comer alguma coisa. Já eram quase vinte e duas horas, Gabriel não queria chegar em casa e bater panelas a procura de comida e assim incomodar a mãe que ficaria muito brava com ele.
– Você está bem? – Perguntou Ricardo enquanto subiam as escadas do terminal de ônibus.
– “Tô” sim. Nem éramos tão próximos. Só não comenta com a galera, beleza? – Disse Gabriel dando o assunto como encerrado.
Saíram do Terminal João Dias e foram para um fast food que fica ao lado de um posto de gasolina na saída da Geovanni Gronchi. O som da sirene de um carro de polícia chamou a atenção de todos. Gabriel olhou para o local de origem do barulho e notou uma moto em alta velocidade costurando por entre os carros. O piloto era habilidoso e conseguia desviar dos carros com facilidade. O garupa virou para trás no banco e deu tiros contra o carro de polícia. Ao perceber que se tratava de uma perseguição os garotos começaram a correr na direção do restaurante quando a moto bateu em um carro que estava parado no semáforo. O piloto e o garupa voaram enquanto a motocicleta dava piruetas no asfalto e iam na direção de uma mulher que estava com um carrinho de bebê. Iria colidir a qualquer momento.
Gabriel fechou os olhos. Sentiu alguma coisa passando ao seu lado, mas não se desconcentrou. Imaginou um cipó enrolando na cintura da mulher e no carrinho do bebê e os puxando para fora do alcance dos estilhaços. Quando abriu os olhos viu tudo em câmera lenta. Algumas pessoas corriam para acudir a moça caída no chão com o cipó em volta da cintura ao lado do carrinho de bebê. Outras olhavam incrédulas para cipó que saia do asfalto e Diogo aos berros com Érica nos braços.
A blusa rosa da garota agora tinha uma mancha vermelha na altura do peito esquerdo. Diogo estava desesperado e fazia de tudo para mantê-la de olhos abertos. Ivan saiu em disparada na direção de um dos carros de polícia que chegava ao posto de gasolina.
– O que aconteceu? – Perguntou Gabriel para Ricardo que também estava com o celular em mãos.
– O cara que estava na moto, bateu no chão e a arma que estava na mão dele disparou. – Disse ele antes de ser atendido. - Alô, minha amiga foi baleada na frente do terminal João Dias e está perdendo muito sangue. Manda uma ambulância com urgência, por favor. Disse tremendo.
– Estamos perto do hospital Campo Limpo, a ambulância deve chegar em breve. – Disse Gabriel para Diogo que não parava de falar com a namorada.
– Eu te amo Érica. Escuta a minha voz. Fica comigo. O socorro vai chegar em breve e eu vou cuidar de você. – Dizia o garoto enquanto Ivan vinha correndo acompanhando um carro de polícia.
Érica sangrava muito e parecia que a qualquer momento iria desmaiar. Diogo fazia de tudo para manter a namorada acordada. O policial aproximou-se de Diogo, olhou com tristeza para Érica e depois para o garoto. Quando a viatura se aproximou ele pegou o próprio celular e ligou para a emergência dizendo ser policial. Passou alguns dados de identificação para a atendente e pediu uma ambulância com urgência.
– Acalme-se, garoto. O resgate vai chegar logo. – Disse ele para o Diogo choroso.
A ambulância não demorou para chegar. O som de sua sirene se aproximava cada vez mais rápido e logo ela estava sendo estacionada de costas para os garotos. Dois paramédicos desceram e deram a volta no veículo branco com faixas vermelhas e o logo do SAMU. O paramédico que parecia japonês abriu a porta traseira, pegou uma maca amarela e foi até o paramédico negro que já estava de luvas, mascara e retirou a blusa rosa avermelhada de Érica. Com uma tesoura cortou a camisa que outrora fora branca e agora estava tingida de vermelho. Pegou muitas gazes e colocou em cima do buraco no peito da garota e as fixando com esparadrapos para poder estancar o sangue que ainda jorrava em abundância.
Gabriel olhava os médicos deitarem e prenderem Érica na maca deixando-a imobilizada. Rezava para que desse tempo de a garota chegar viva no hospital e recebesse os devidos cuidados. Talvez até precisasse de cirurgia. Mas isso não importava desde que ela fosse salva e tivesse o mínimo de sequelas possível. Não conseguia olhar para o amigo choroso que tentava de tudo para ajudar os paramédicos, mas esses diziam que ele só estava atrapalhando.
– Qual de vocês vai acompanhar a garota? – Perguntou o paramédico japonês.
– Eu – Disse Diogo ajudando os dois a colocar a maca na ambulância.
– O que você é dela?
– Sou o futuro marido.
– Tem o número de telefone da sua sogra?
– Sim.
– Então é melhor o senhor ligar para ela e dizer o que aconteceu.
Diogo ficou paralisado. A primeira vez que iria falar com a mãe da garota era para dar uma notícia dessas. Gabriel quase conseguia ouvir os pensamentos do amigo, era uma barra muito pesada e ele não precisava carregar esse piano sozinho.
– Di. Me fala o número da sua sogra que eu ligo e dou a noticia para ela. – Disse Gabriel, aproximando-se de Diogo e pegando o celular do bolso.
Diogo fechou os olhos, estralou o pescoço e começou a respirar profundamente se concentrando no momento. Ficou assim por trinta longos segundos.
– Não, Biel. Eu vou ligar. De hoje em diante, Érica é minha responsabilidade e vai ser um prazer cuidar dela. – E subiu na ambulância dando um sorriso para Gabriel. – Vejo vocês no hospital.
Vinte minutos depois todos estavam reunidos no saguão de entrada do hospital Campo Limpo onde algumas pessoas aguardavam para serem atendidas na recepção. Gabriel nunca esteve ali antes. Ouviu dizer que o local tinha fama de açougue de pessoas. Enquanto ia e voltava do banheiro descobriu o porquê.
Os leitos estavam tão cheios que as pessoas ficavam deitadas em macas pelos corredores.
– Olha o estado que o meu pai está. – Gritava uma mulher que aos prantos ajeitava um senhor de idade sem camisa, que usava fraldas e estava quase caindo de sua maca. O homem parecia não estar consciente. Apesar de estar de olhos abertos tinha um olhar desfocado.
Mais à frente um grupo de pessoas estava aglomerado em volta de um rapaz caído enquanto um senhor de barba por fazer e com o bigode de andorinha filmava tudo.
– Olha aí, gente! O rapaz vai morrer dentro do hospital. Cadê as enfermeiras?
–Ajuda, gente. Socorro! – Gritava uma mulher de blusa amarelo gema, com as mãos no rosto. – Cadê os médicos desse lugar?! Jesus Cristo!
Depois de alguns minutos uma enfermeira chegou, abaixou-se sobre o corpo do rapaz caído e levantou sua cabeça. Pediu para outra enfermeira que se aproximava para pegar uma cadeira de rodas.
–Aeee! Um ano pra chegar o médico! E olha que estamos dentro do hospital, heim! Dizia o senhor que filmava.
– Desculpem. Está tudo lotado e infelizmente não temos profissionais o bastante? – Disse a mulher depois de colocar o homem na cadeira.
– O pobre paga imposto sobre imposto e os governantes só ferra com a gente! – Disse o senhor e virou o celular no ar mostrando a recepção com muitas pessoas esperando para serem atendidas. – E isso é só o começo viu pessoal?! É só o começo!
O ar dentro do hospital era muito pesado. Pessoas corriam por todos os lados, gritavam por atendimento, caiam por terem ataques. O sistema público de saúde do país era realmente um caos. Esperava que Érica tivesse sorte em ser atendida o mais depressa possível e que corresse tudo bem!
– Ela está estabilizada. – Disse Diogo quando Gabriel aproximou-se. – Os pais dela não querem que ela seja operada aqui, querem transferi-la para o Hospital Albert Einsten. Os médicos disseram que é um risco, que ela pode morrer no trajeto. Mas os pais dela não querem nem saber. Não querem que ela seja operada nesse hospital de puro descaso.
– Eu os entendo. Fui ao banheiro e vi cenas lamentáveis. E quando ela vai ser transferida?
– Só estão esperando assinar as papeladas.
– Você vai com eles?
– Vou sim. Quero ficar ao lado dela o máximo que eu puder.
– Muito nobre de sua parte, Di. Vai na fé, irmão!
– Obrigado por terem me acompanhado. – Disse Diogo aos amigos. – Eu vou manter vocês atualizados.
– Se precisar de alguma coisa, qualquer coisa, pode me ligar, Di. – Disse Ivan, colocando-se ao lado do amigo. – Pode ser qualquer hora da madrugada. – E deu um abraço em Diogo.
– Obrigado, Ivan. É muito reconfortante ter amigos como vocês! Muito obrigado mesmo! – E deram um abraço coletivo. – Eu não vou mais chorar. Érica precisará de alguém forte ao lado dela.
Gabriel estava chegando na rua em que morava, pensando em tudo que aconteceu naquele dia. O treinamento com o Saci que foi interrompido por um Golem e com a ajuda de Gustavo eles conseguiram derrotar o monstro. Depois, em uma festinha de rua para poder relaxar, viu Jéssica com outro garoto. Na hora de ir embora uma bala perdida acerta o peito da namorada de Diogo e os pais dela preferiam correr o risco de a filha morrer no trajeto de uma transferência para outro hospital a deixá-la ser operada no Hospital Campo Limpo.
Foi um dia muito cheio. Chegaria em casa, tomaria um banho bem demorado e ira dormir, pois teria que acordar cedo no dia seguinte para mais um dia de serviço. Dobrou a curva da rua em que sua casa ficava e ouviu um barulho forte. Olhou ao redor e viu uma grande nuvem de poeira em cima da sua casa. Correu desesperado para ver o que tinha acontecido.
Sua casa estava destruída. Entrou apressado no portão e debaixo dos escombros da cozinha estava Dona Ester desacordada.
– Mainha! - Gritou o garoto indo de encontro à mulher. - Mainha, acorde.
Dona Ester respirava com dificuldades. Gabriel moveu os escombros de cima da mãe com ajuda de galhos que fez brotar.
– Está me ouvindo mãe? – Só teve um gemido como resposta.
Descansou a cabeça da mulher no chão e correu até a parte de trás da casa, mas quando chegou viu que o bonsai não estava mais lá. Colocou alguns vasos de lado, jogou tábuas para trás e nem sinal de sua pequena árvore. O que restou foram apenas duas folhas no chão. Ele pegou as folhas e levou até onde Dona Ester estava e sem pensar a enfiou uma na boca da mãe.
-Engula isso, mainha.
Com muitas dificuldades ela mastigou e engoliu a folha. Após dois segundos:
– Ahhhhhhhh! – Dona Lúcia estava aos berros e se debatendo.
– Calma, mainha. Está tudo bem, exceto pela casa. Mas está tudo bem. – O garoto tentava acalmar a mãe. – O que foi que aconteceu aqui.
– Luzia entrou aqui querendo saber de seu bonsai. Eu achei ela muito estranha e não disse nada. Do nada a mulher se transformou em um jacaré, disparou bolas brilhantes da boca e depois disso não vi mais nada. Ela se transforou em um jacaré! A Luzia! Em um jacaré! – Disse Ester em choque.
Após ouvir a história da mãe, que respirava rapidamente sentada no sofá, Gabriel pegou o celular e fez uma ligação.
– Pedro! A Cuca roubou a árvore da cura.
BOITATÁ, O CONTADOR DE HISTÓRIAS.
Havia muitas pessoas reunidas em volta de uma grande mesa com o mapa do Brasil aberto sobre ela em uma imensa sala. Na cozinha Dona Ester e Camila, com Maria Flor no colo, conversavam e riam abertamente com um homem que apesar do frio usava um cocar e uma tanga. Seu corpo era coberto por listas vermelhas e pretas e se serviam de quitutes e bebidas.
Gabriel não sabia o que fazer e andava de um lado para o outro da casa. Ele mal conseguiu dormir durante a noite pensando nas coisas que o cercava, mas não estava cansado. Pela janela, viu algumas crianças bem agasalhadas correndo pelo extenso gramado da fazenda.
O dia estava nublado e a qualquer momento cairia muita chuva, o que não impediu as crianças de estarem lá fora correndo e atormentando os animais. Algumas delas arriscavam-se em montar os cavalos que não gostavam e as derrubavam de suas costas, mas, ao invés de se esborracharem no chão, as crianças lançavam magias para amortecer a queda com água, terra ou até mesmo flutuavam.
– Por onde será que andam a Kika e os outros? – Perguntou para si mesmo enquanto saia da frente da janela.
Entrou em uma sala onde havia mais pessoas sentadas nos sofás assistindo televisão e discutindo o noticiário sobre a greve dos caminhoneiros no Brasil. Um grupo de jovens com notebooks aberto jogava algum tipo de MMORPG online e conversava através de seus headsets e de olhos vidrados nas telas.
Gabriel atravessou a sala e subiu as escadas até o andar superior da casa. Havia muitos quartos e todos tinha alguém, mas não conhecia nenhum dos ocupantes. Voltou para o andar debaixo, passou novamente pela sala e saiu pela porta. Sentou em uma cadeira na varanda e alguns segundos depois começou a chover fazendo as crianças abandonaram suas brincadeiras para procurar abrigo. Um grupo parou na varanda e, para não entrarem sujas na casa, algumas criaram barreiras de água para se lavar, outras fizeram fogo aparecer enquanto outras faziam o vento soprar por entre o fogo para poderem se secar.
Gabriel riu da cena. Como poderia haver tantas pessoas assim e ele só saber da existência deles agora enquanto muitas pessoas no mundo não imaginavam se quer que isso poderia existir.
Ficou ali sentado na varanda de olhos fechados escutando o barulho da chuva no telhado e pensando nos últimos acontecimentos. Se tivesse chegado alguns minutos antes em casa tentaria impedir a Cuca de ferir sua mãe e levar seu bonsai. Mas não podia voltar no tempo assim como não poderia adivinhar que aquilo aconteceria naquele dia.
– Gosta da chuva, garoto? – Uma voz sibilante chegou aos ouvidos de Gabriel que logo abriu os olhos. – Prazer, me chamo Boitatá, mas pode me chamar de Anderson. – Disse, sorrindo, o rapaz branco de cabelos bem penteados e com um nariz um pouco grande. Usava uma camisa social verde aberta no colarinho, calça bege e sapatos marrons. – Posso sentar-me?
– Claro! – Disse Gabriel apontando a cadeira. – Me chamo Gabriel, mas pode me chamar de Biel.
– Ouvi muito sobre você. – Disse o rapaz, arrumando-se na cadeira e cruzando as pernas.
– Eu não ouvi nada de você, nem de ninguém aqui. A não ser as histórias dos livros infantis da escola.
– É?! Eu mesmo escrevi muitas daquelas histórias. Aceita um brigadeiro? – E esticou o braço com uma bandeja cheia de brigadeiros para Gabriel.
– Obrigado. – Disse o garoto se servindo de um doce.
– Diz ai, Biel. O que você sabe até agora? – Perguntou o rapaz jovialmente.
– Não muito. Só que me alguns me chamam de O Filho e parece que posso controlar as plantas.
– E sobre nós? O que você sabe?
– Menos ainda. O único com quem eu passei algum tempo foi o Curupira, digo, Marcus. – Gabriel corrigiu-se rápido. – Ontem de manhã eu estava com Pedro e Gustavo apareceu para nos ajudar contra um Golem. Nada mais.
– A propósito. Fiquei sabendo da sua atuação contra o pedregulho. Meus parabéns!
– Obrigado. – Disse Gabriel sem mostrar seu constrangimento.
– Vou lhe contar um pouco sobre tudo isso. – Disse Anderson comendo mais um brigadeiro. – Como eu falei sou Boitatá. Minha verdadeira forma é de uma grande cobra de fogo. Eu tinha o papel de cuidar das florestas e dos animais, mas a ganância do homem é tanta que não tem magia “que os segure” quando o assunto é dinheiro. Com o avanço da tecnologia, as florestas foram sendo desmatadas até que muitas delas desapareceram e muitos animais também deixaram de existir.
– Horrível. – Disse Gabriel prestando atenção no que Anderson dizia.
– Sim! Muito! – Continuou – Espero que em breve eles vejam que já tem tecnologia o suficiente para se organizarem de uma forma mais harmoniosa e parem com essas guerras orgulhosas e infantis.
– Será que vai acontecer um dia? – Perguntou Gabriel, mas Anderson ficou momentaneamente em silêncio, comeu outro brigadeiro e ofereceu para Gabriel que pegou outro doce da bandeja.
– Bom! Podemos fazer nossa parte e rezar para que outros entendam o que temos para dizer. Mas isso não depende só de mim ou de você. Todos têm que querer. Se tentarmos forçar que os outros entendam nosso ponto de vista só iremos criar mais guerras em busca de paz. – Disse Boitatá quebrando o silêncio.
– Entendo o que quer dizer. – Disse Gabriel comendo o brigadeiro.
– Mas como eu fiquei sem florestas para cuidar – Continuou Anderson – eu resolvi me aventurar na cidade grande. Fui professor de geografia em muitas cidades do país por muitos séculos. Como eu disse antes, escrevi alguns livros. Hoje eu me aventuro no mercado de ações. Ganho e perco muito dinheiro todos os dias, mas faço isso por diversão. O Marcus é fazendeiro. Sempre foi. Não quis se distanciar da natureza e até hoje tenta afastar os humanos. Tem feito um bom trabalho.
– Ele é muito atencioso. – Comentou Gabriel querendo ter mais coisas para dizer do que apenas isso.
– De certo que sim. – Continuou Boitatá. – Ele não é muito de se apaixonar. Tem poucos filhos. Hoje Joana é sua única filha viva. Ela é sua amiga, não?
– Sim, trabalhávamos e estudávamos juntos.
– Pedro já é mais despojado. Tem alguns filhos vivos, mas não se engane. Ele é fiel a todas suas esposas. Fica com elas até o fim de suas vidas ou até elas se separarem dele. – E deu um sorriso malicioso – Um dos filhos dele é Nicolas. Suponho que esse também seja seu amigo, certo?
– Certo.
– Ele tem outros filhos, mas eu não os conheço muito bem. – Disse Anderson, servindo-se de mais um brigadeiro. – Tem também Iara e Gustavo. Esses são um caso à parte. Gustavo gosta de ter muitas mulheres e Iara gosta de ter muitos homens. Os dois vivem brigando por ciúmes um do outro, mas acho que é só desculpa para se separarem e irem viver suas aventuras amorosas. Sessenta por cento das pessoas aqui são filho dos dois, mas a única filha que os dois tiveram juntos até hoje foi Fernanda. Você também a conhece? – Gabriel suspirou e apenas acenou positivamente com a cabeça. Sentia falta de todos seus amigos, mas em especial de Kika.
– Aqui tem muitos outros seres como o Negrinho do Pastoreio, Vitória Régia – Disse Anderson, quando Gabriel começou a olhar para a fazenda chuvosa. – E outros tantos como Mãe -de-Ouro, Papa-Figo, Cobra Grande, Barba Ruiva, Bradador, Acutipupu, Ahó Ahó, Alamoa, só não sei o motivo de Jurupari não estar aqui. Enfim, hoje eu sou casado e algumas pessoas por quem você passou aqui são meus filhos.
– Muitos?
– Sim, muitos. Viu aquele Marechal com mais de oitenta anos na mesa debruçado sobre a bandeira do Brasil? É meu filho.
– Como?! – Gabriel estava espantado. – Você não aparenta ter mais de trinta anos.
– Estamos nesse planeta há milênios. Não se deixe enganar pelas aparências, Biel. Todos nós ficamos encarregados de cuidar do planeta Terra até a sua chegada, mas alguns desistiram e foram viver suas vidas particulares. Pensaram que Abá havia se enganado e esquecido da gente. Muitos vieram correndo para a fazenda de Marcus quando ficaram sabendo que você estava realmente aqui. Outros não se deram ao trabalho, pensam que é mais um dos muitos falsos sinais. Está me entendendo?
– Estou sim – disse Gabriel prestando atenção em cada palavra do que Anderson dizia. – Quem é Abá?
– Abá é um ser divino que mora no que podemos chamar de paraíso. Esse universo em que vivemos está no vácuo que existe no núcleo desse paraíso que é um planeta muito parecido com a terra em seu ecossistema. – E Boitatá contou uma história que fez o garoto entender sua chegada à Terra.
Gabriel ficou quieto digerindo o que acabou de ouvir. Como acreditar em tudo quilo, mas como não acreditar depois do que viu nos últimos meses?
– E a Cuca? – Perguntou depois de um longo tempo em silêncio.
– Por muitos anos foi nossa companheira, mas quando soube que Piatã estava voltando, ela nos abandonou e começou a procurar a planta sozinha. Acreditamos que ela queira reestabelecer o poder dele esperando algum tipo de recompensa em troca.
– Quer dizer então que o meu bonsai vai recuperar o poder desse ser divino que você chama de Céu, e que diz ser minha mãe, evitando que o paraíso desabe sobre nós? E esse outro ser, Piatã, meu irmão, acredita que pode recuperar as forças e assim segurar o desmoronamento?
– Bem. Resumindo tudo, é isso mesmo. Mas se sua mãe morrer nada nem ninguém vai conseguir evitar essa catástrofe e todos nós estaremos condenados.
– E o que estamos fazendo reunidos aqui? Isso mais parece uma grande confraternização. Por que não estão procurando a Cuca?
– Os que estão em volta do mapa do Brasil estão fazendo exatamente isso. – Disse Anderson comendo o último brigadeiro da bandeja.
– Nenê! Estão te chamando à mesa. – Disse uma mulher para Anderson. Ela aparentava ter não mais de vinte anos. Usava um sobretudo preto por cima de uma camisa branca, saia e meia social preta e sapato salto alto preto, tinha cabelos ruivos até a cintura e usava um batom preto. Era muito linda.
– Só ela pode me chamar assim. – Disse Anderson levantando-se com um sorriso no rosto. Entrou na casa e Gabriel o seguiu até a sala em que muitos estavam reunidos.
Todos sorriram e acenaram para Gabriel que deu um sorriso amarelo ao entrar no local. Ainda estava pensando em toda história que acabara de ouvir. Olhou à volta e, ao lado de Marcus, viu Joana que usava camisa de manga curta e short saia perto e chinelos azuis claros cobertos de barro, Nicolas usava uma camisa de surfista amarela com estampas de flores shorts e chinelos brancos também barrentos e Fernanda que usava uma blusinha regata rosa, short jeans e chinelo perto limpo, talvez o tivesse limpado antes de entrar. Nesse momento seu sorriso tornou-se verdadeiro e correu para o lado dos amigos.
– Por onde vocês andaram? – Perguntou para Nicolas.
– Dormiu comigo foi, Biel? Nem me deu um abraço caloroso! – Disse Nick. – Estávamos coletando informações.
– Por que não me chamaram para ir junto? – Perguntou, rapidamente, sentindo-se um inútil por não ter sido incluído na expedição.
– Não dava tempo, tínhamos que agir rápido. – Disse Joana olhando atenta para o mapa.
– E temos algumas pistas. – Disse Fernanda que girou o mapa para ela, pegou alguns peões e sinalizou. – Estávamos no estado do Amazonas, no encontro do Rio Negro e Solimões, onde algumas pessoas estavam surfando nas ondas dos rios. A gente se enturmou com alguns dos banhistas bêbados que eram lagartos da Cuca.
– E um deles soltou que ela está em Florianópolis, escondida em alguma praia. – Disse Nicolas apontando o local no mapa.
– O grupo de Catarina conseguiu informações de que ela está em Vitória, no Espirito Santo. Emerson e os outros disseram que ela está no Maranhão. – Disse Curupira pensativo olhando para o mapa. – Acredito que ela precise de um local sem civis para uma suposta espaçonave pousar. Acho que ela não iria querer espectadores
– Claro. – Disse Gustavo do outro lado da mesa. – Piatã não tem forças para vir correndo pelo espaço, por isso demorou tanto tempo para chegar aqui. Isso só mostra o seu amor em conseguir alcançar seu objetivo.
– Ou talvez seja determinação por puro interesse. – Disse Iara. Ela tinha traços de índia, com olhos castanhos e pequenos, cabelos negros e lisos que iam até a cintura. Usava um vestido vermelho colado que mostrava todas suas curvas. Ia até o meio das coxas bem torneadas e com um decote em “V” que chegava perto do umbigo. Era mesmo uma mulher deslumbrante.
– Então não é ele quem está vindo pra cá. É você! – Disse Gustavo franzindo a testa.
– Vocês dois podem parar?! – Disse Fernanda fechando a cara para os dois.
– Talvez tenha passado séculos desenvolvendo tecnologia para conseguir atravessar as galáxias. Temos que formar um plano para conseguir pegar a planta antes que ele chegue. – Disse Negrinho do Pastoreio olhando atentamente para o mapa com a mão direita no queixo.
– Nós não temos tempo para planos! Temos que agir agora! – Disse Gabriel batendo a mão sobre a mesa. Todos se calaram e olharam para ele. Até os garotos que jogavam o RPG abandonaram seus computadores para espiar pela porta.
– O que foi aquele ataque de pelanca lá dentro, Biel? Perguntou Nicolas entregando um copo com água para o garoto e se sentando ao lado de Joana.
Seus amigos tiraram-no da sala com a desculpa de que ele precisava respirar. Lá fora, a chuva continuava a cair por toda a parte e o vento úmido vinha beijar seu rosto que estava sendo acarinhado por Fernanda.
– E que história é essa de não tivermos tempo? – Joana o olhava com certa severidade. Gabriel não podia culpar a garota, afinal teve uma reação impensada alguns minutos atrás.
– Há mais de cinco meses atrás eu tive um sonho com meu irmão. Eu não sabia o que significava, pensei que fosse um sonho aleatório. – Gabriel tomou um pouco de água e contou o sonho para os amigos.
– Então ela esperou até que chegasse a hora certa de agir! – Disse Nicolas com as mãos sobre os joelhos cruzados.
– A Cuca não economizou energia para pegar o bonsai. Isso significa que o encontro dela com os supostos guerreiros está próximo. – Começou Joana, analisando toda a situação. – Você se lembra se foi dito em qual aeroporto eles se encontrariam?
– Não, Jô! – Disse Gabriel olhando para os amigos. Queria ter mais informações que um sonho do qual mal lembrava. – Temos que nos movimentar imediatamente enquanto ainda temos tempo.
– Vamos conversar com papai, talvez ele consiga convencer os outros. – Começou Nicolas, mas Gabriel estava decidido.
– Os adultos lá dentro não vão agir sem ter um plano de ação! Se a Cuca entregar o bonsai todos nós correremos perigo.
– Como assim, Biel? – Perguntou Fernanda pegando o copo de sua mão e colocando sobre a mesa ao lado dela.
– O bonsai é uma planta de cura muito poderosa. Eu mesmo pude comprovar isso quando curamos alguns infectados. Ontem a casa desabou sobre minha mãe, ela estava realmente muito mal e depois de comer uma folha parecia que nada havia lhe acontecido. Meu Irmão quer recuperar as energias, pois acha que pode salvar o universo. Mas a única que pode salvar o universo é minha mãe biológica que está no paraíso e muito mal. Por isso, temos que pegar o bonsai para poder recuperar as forças dela e evitar que tudo se destrua. - Disse Gabriel em uma avalanche de palavras.
– Hã? - Perguntou Nicolas com cara de paisagem. Tome mais um pouco de água e fala de novo com mais calma, Biel.
Gabriel contou boa parte da conversa que teve com Boitatá, menos a parte da vida de seus pais. Todos ouviram atentamente.
– É, meu pai me contou uma história assim quando eu era pequena, mas eu pensei que fosse uma história infantil. – Disse Joana seguida por Nicolas e Fernanda.
– Então vocês entendem quando eu digo que não temos tempo. Temos que fazer algo agora!
– Eu estou com Biel. – Disse Fernanda olhando para o garoto que retribuiu o olhar. Fazia tempo que não olhava nos olhos castanhos de Fernanda. Ela sorriu e ele sabia que as coisas dariam certo, pois ela estava ao seu lado.
– Estou dentro. – Disse Joana quase que simultaneamente.
– Ah meu Paquetá! - Disse Nicola, revirando os olhos. – Tudo bem. Vamos nessa. Será que dá tempo de eu pegar um salgadinho?
– Não, Nick. O que está por vir pode te dar indigestão. – Disse Fernanda, levantando-se. – E por onde começamos? Vamos direto para Floripa?
– Não, isso pode ser uma pista falsa, periga de a gente chegar lá e não ter nada. – Disse Nicolas, mordendo os lábios impaciente.
– Acho que você está certo, Nick. Tem uma grande chance de isso ser uma armadilha. – Disse Gabriel, sem olhar para o amigo e andando de um lado para o outro. Todos ali estavam tensos com a situação, Fernanda olhava de olhos arregalados para todos, Nick parecia que ia comer os próprios lábios, Joana estava com as mãos na cintura e batia o pé direito tão forte no chão que Gabriel pensou que ela abriria um buraco no local. – Tenho uma ideia! Vamos para a Amazônia? – Disse ele, parando subitamente com um sorriso no rosto.
– Tem certeza, Biel?! Acabamos de vir de lá e meu repelente acabou. Aquele lugar tem muito bicho, fora que o clima também não é nada ameno. Será que não podemos ir procurar pistas no Rio? Dizem que Copacabana é o máximo, mesmo com esse friozinho. – Disse Nick esperançoso.
– Nick tem razão, Biel. Acabamos de voltar da Amazônia e conseguimos algumas pistas de onde ela possa estar. – Disse Joana que havia parado de bater o pé no chão e agora parecia mais concentrada.
–Todos os outros também encontraram pistas, mas duvido que alguma delas leve realmente ao paradeiro da Cuca e se ela está tão empenhada em esconder sua localização significa que alguma coisa está para acontecer. Vamos para a Amazônia. Tenho o pressentimento de que podemos encontrar alguma coisa por lá. – Falou Gabriel decidido.
– Tem certeza de que não dá tempo de pegar uns aperitivos, parece que a viagem vai ser longa. – Disse Nick com olhos de gato pidão.
– Não, Nick. Temos dinheiro, compramos comida em algum lugar. Fica tranquilo que não o deixaremos morrer de fome. – Falou Fernanda.
– Tá bom! – Disse Nick, decidido. – Comida não dá tempo, mas um repelente dá sim! Já volto! – Girou em seus calcanhares e desapareceu deixando no local que esteve apenas um pequeno redemoinho e uma brisa leve. Vinte segundos depois estava de volta com uma maçã na boca, quatro bananas saltando pelos bolsos da calça e um frasco de repelente que dançava no ar conforme Nicolas o balançava alegremente. – Vocês irão me agradecer por esses segundos de atraso!
Joana revirou os olhos rindo dos novos acessórios do amigo enquanto ele se juntava ao círculo pegando na mão de Gabriel e Joana.
– Não vamos mais perder tempo! – Disse Fernanda, também se divertindo com a situação. – Jô, está pronta?
– Sim. - Disse a amiga, segurando a mão de Fernanda. – Todos deem as mãos e quando eu disser pule, vocês pulam.
Gabriel levantou-se e, com a mão direita, segurou a mão esquerda de Fernanda e com a mão esquerda apertou a direita de Nicolas, formando um círculo.
– Pulem!
RIO NEGRO.
A viagem com Joana se parecia com a de Curupira, morna e agradável e em poucos segundos eles estavam em queda livre. Enquanto as garotas davam gritos desesperados Nicolas dava risadas gostosas e Gabriel sentia um frio de doer os ossos.
O garoto não tinha ideia do que estava acontecendo, mas os gritos de Joana indicavam que aquele não era o local em que ela queria aparecer.
– O quê aconteceu, Jô? Porque a gente veio parar aqui em cima?! – Fernanda berrava para ser ouvida. Parecia estar à cima de Gabriel do lado direito, mas ele não conseguia vê-la pois estava ocupado tentando manter uma posição fixa no ar nada denso.
– Não sei, Kika! Eu quis aparecer entre as árvores do Canteiro da Várzea como da última vez, mas alguma coisa nos puxou para cá. – Era possível sentir a dúvida e a indignação na voz de Joana que aparentava estar do lado esquerdo de Gabriel, mas também não conseguia ver a amiga.
– Genteeee! Que vento “maraaa”! Temos que fazer isso mais vezes!! – Disse Nick a cima de Gabriel. O amigo parecia se deliciar com a situação. – Meninas se segurem no Biel. Jô crie uma barreira de energia em volta de vocês e deixem o resto com o fofinho aqui!
Era impossível manter os olhos abertos. Nas poucas vezes em que Gabriel conseguia enxergar algo, ele via um imenso tapete verde cortado por duas linhas, uma preta e outra bege que, em determinado ponto, se encontravam e se aproximavam a cada piscada.
Sentiu tocarem em seu pé esquerdo e em seu ombro direito e no momento seguinte seu rosto colidiu com algo macio e quente. O frio e o vento não eram mais preocupação.
– Rápido, Nick! Não temos muito tempo. – Ouviu o desespero na voz de Fernanda enquanto abria os olhos.
Conseguia enxergar com mais clareza. O que antes era um tapete verde agora se mostrava como a copa de milhões de árvores agrupadas buscando a luz do sol. Os riscos que cortavam o lugar eram os rios Negro e Solimões que se juntavam e formavam o Rio Amazonas num espetáculo à parte de toda aquela beleza natural.
Gabriel lembrava das aulas de geografia que a professora Magda lecionava. “Mesmo formando apenas um, os dois rios não se misturam por muitos fatores como temperatura, composição química, velocidade, entre outros”. O que ele via lá de cima era um show de degradê entre o preto e o bege às margens da minúscula cidade de Manaus.
– Nicolas passava muito veloz num movimento de rotação em si e de translação em torno da bola de energia que Joana havia criado fazendo aparecer um redemoinho logo abaixo deles fazendo-as desacelerar.
– É lindo, não é?! – Disse Fernanda se aproximando de Gabriel.
– Muito! Eu só tinha visto a floresta por fotos. Ao vivo chego a arrepiar! – Disse o garoto admirando a vastidão verde e olhando para o lado esquerdo viu Joana concentrada com os braços erguidos para manter a bolha de energia ativa.
– A natureza levou bilhões de anos para construir tudo isso e o ser humano em poucos segundos consegue destruir sem remorso algum. – Disse Joana de olhos fechados. – Olhem para trás e vejam a devastação!
Joana estava certa. De um lado muito verde de uma floresta quase que intocada, do outro lado grandes canteiros marrons indicavam que antes o local era repleto de árvores.
– Se ao menos as pessoas que fazem essas atrocidades plantassem mudas das mesmas árvores e na mesma quantidade as coisas aqui poderiam ser diferentes. – A voz de Nicolas ia de um lado para outro. – Mas o homem só quer venha a nós e ao vosso reino nada! Rum!
Todos compartilhavam da indignação de Nick.
– É de cortar o coração. Eles destroem o bioma sem pensar nas consequências e ainda reclamam que não tem chovido tanto nos últimos anos. – Disse Fernanda tristonha.
– Talvez possamos passar aqui depois e dar uma redecorada no local, o que acham? – Gabriel tinha um sorriso savana no rosto quando disse isso.
– O quê quer dizer com “ redecorada”, Biel? – Perguntou Nicolas ainda girando em volta da bolha de energia e parecendo desanimado.
– Depois eu conto, Nick. Parece que voltamos a acelerar na decida. – Gabriel notou que o Rio Amazonas se aproximava mais rápido.
– “Aiin, gentem”! Me bateu uma “fominha” agora. – Falou Nicolas em tom choroso.
– Aguenta aí mais um pouco, Nick! – Disse Joana ainda de olhos fechados. Parecia estar se esforçando tanto quanto o amigo. – Vai subindo o Rio Negro até onde você aguentar.
Mesmo cansado, Nicolas conseguiu subir o Rio Negro por mais de cem quilômetros até começar a cair. Passaram tão rápido por um navio que Gabriel só soube o que era quando olhou para trás e o viu sumindo no horizonte na imensidão das águas negras. Duvidava que alguém os tivesse visto naquela velocidade.
O céu estava completamente azul e os pássaros dançavam livres em seus voos. Muitas vezes dava para ver silhuetas de palafitas e alguns ribeirinhos remando em suas canoas de pesca caçando o peixe que seria seu alimento ou simplesmente admirando toda aquela beleza natural.
Estava muito calor. Só agora Gabriel entendeu o motivo das roupas que seus amigos usavam. Tirou a blusa preta com que estava e a amarrou na cintura.
– Era nítida a desaceleração. As coisas ao redor estavam ficando mais claras. Dava-se para ver as árvores com seus galhos pendentes sobre as águas em que alguns macacos se divertiam pulando de um para outro.
– Pessoal! Se preparem, pois estou no meu limite. – Disse Nicolas.
– Eu também estou esgotada. – Disse Joana com os braços à meia altura.
– Tudo bem, galera. Aguentem só mais um minuto. Estamos chegando no Arquipélago de Anavilhanas. Sei que vocês conseguem! – Disse Fernanda tentando motivar os amigos exaustos.
– Ai, lindinha! Acho que não aguento mais nem vinte segundos. – Disse Nicolas agora quase parando.
– Certo, Nick. Para aí e aguenta só mais um segundo. Você também, Jô! – Disse Gabriel fechando os olhos e se concentrando.
Nicolas parou resmungando conforme fazia esforço para mantê-los pairando por sobre as águas escuras. Joana parecia resistir bem ao cansaço, mas os braços já estavam pousados por sobre as pernas e há qualquer momento a barreira de energia que os cercavam poderia desaparecer.
– Depressa, Biel! – Disse a voz de Fernanda em seu ouvido o deixando arrepiado e ainda mais inspirado.
Um segundo depois uma folha de vitória régia com cerca de cinco metros de diâmetro apareceu a baixo deles no mesmo instante em que os poderes de Nicolas e Joana desapareceram e eles caíram por menos de um metro até a folha macia. Gabriel caiu suavemente de pé e ali na sua frente, às margens do rio, um imenso jacarandá com flores lilás o deixou encantado.
– Mamãe, só me acorde quando o sol tiver nascido. – Disse Nicolas deitando encolhido na folha.
– Ahh, Nick! Você é tão fofinho. – Disse Joana deitando a cabeça por sobre o braço esquerdo do amigo.
Gabriel se abaixou para pegar o grande botão amarelo de flor da vitória régia criada por ele duas vezes maior que as normais quando um boto-cor-de-rosa emergiu das águas negras num pulo o deixando encharcado após cair de volta no rio.
Fernanda deu risadas se deliciando com a cena. Se abaixou ao lado de um Gabriel sorridente fazendo boa parte da água sair do garoto e voltar para o rio.
O boto colocou a cabeça para fora da água. Era de um rosa muito bonito que contrastava com a cor de café do Rio Negro. Estava muito agitado fazendo um som engraçado e girando desesperado em torno de si mesmo. Parecia estar tentando chamar a atenção.
– Calma, amiguinho. Não vamos te fazer mal. – Fernanda engatinhou de Gabriel até o boto tocando o grande bico rosado do animal. – Porque está tão... NICK! JÔ! LEVANTEM DEPRESSA! TEMOS QUE SAIR DAQUI AGORA!!!
O rio começou a se agitar e o boto submergiu, desaparecendo nas águas escuras. Gabriel pensou que fosse Fernanda tentando fazê-los chegar até a margem próxima, mas ao se virar viu que ela estava sacudindo Nicolas e Joana tentando, inutilmente, acordá-los.
Um grande calombo se formou no rio e se aproximava em alta velocidade do lugar em que estavam. Fernanda continuava com seus esforços frustrados de tentar acordar os amigos, mas o máximo que conseguia era arrancar resmungos e roncos de um Nicolas quase que desmaiado.
Gabriel pensou que o boto estivesse voltando, mas sua teoria foi derrubada quando o calombo ficou maior, e continuava crescendo conforme se aproximava. Um segundo antes conseguia ver uma paisagem repleta de árvores, animais e um vasto rio de águas escuras, agora na sua frente estava o corpo gigantesco de uma jiboia preta com manchas vermelhas de variadas formas com mais de trinta metros de comprimento e cerca de dois metros e meio de largura. Sua cabeça com dois longos bigodes era maior que os coletivos que ele pegava pela manhã para ir ao trabalho, isso se olhasse o coletivo de lado. As duas presas que saiam da boca do animal eram maiores que o garoto.
– Biel, se proteja e de cobertura aos dois que estão apagados! – Fernanda passou por ele fazendo movimentos para cima com os braços e uma parede de água negra se formou entre eles e a cobrar ao mesmo tempo em que a folha que estavam começou a se mover, mas não era rápida o suficiente.
– Porque vocês caçadores insistem em me encher o pacová? – Sibilou a jiboia deixando apenas sua grande cabeça amostra através da parede de água e balançando sua enorme língua azul com a ponta bifurcada.
– Boiuna, nós não somos caçadores! Eu sou filha da Iara e do Boto. Não vamos fazer mal a floresta. – Disse Fernanda ainda de braços erguidos.
– Não me venha com historinha pra boi dormir, lindinha. Sei que estão aqui atrás dos raros e preciosos botos. Nem sei por que estou de papo com você. – Disse Boiuna girando a enorme cabeça e desferindo um ataque, errando por pouco a folha em que o grupo estava, pois Fernanda os tirou do ponto alvo movendo as águas.
– Estou falando sério. Não viemos fazer mal algum ao local, pelo contrário, queremos proteger a Amazônia e seus habitantes tanto quanto você. – Fernanda estava se esforçando muito tentando conter Boiuna e fazer a folha se afastar ao mesmo tempo. Nada do que dizia fazia a cobra mudar de ideia.
– Uhumm!!! – Esse foi o único som que Boiuna emitiu ao erguer das águas e num segundo depois jogar a cabeça contra a folha de vitória régia novamente.
Gabriel não tinha tempo para pensar. Seriam atingidos em cheio. Ele fechou os olhos e, tão rápido quanto uma piscada, cresceram duas sumaúmas na frente da folha em que estavam. Com cinquenta metros de altura cada e com os troncos tão largos quanto a Boiuna que não teve tempo de desviar e bateu sua enorme cabeça em cheio deixando as árvores em pedaços.
O corpo da cobra caiu desmaiado com um baque seco na água fazendo uma grande onda negra enquanto grandes pedaços das árvores caiam por toda parte. Gabriel tentava acordar os amigos sacudindo-os enquanto surfavam no Rio Negro, mas em resposta só tinha resmungos. Uma sombra vinha crescendo no local em que estava e ao se virar um pedaço da sumaúma, quebrada pela cobra, bateu em sua cabeça o deixando inconsciente.
Alguma coisa macia e viscosa estava enrolada em seu braço direito e o puxava para fora do rio, mas o que incomodava Gabriel era o forte cheiro de carniça que parecia queimar suas narinas e a forte dor na cabeça no ponto em que o pedaço da árvore havia batido. Até abrir os olhos era um desafio.
Continuava a ser puxado e logo não sentia mais a correnteza do rio em suas pernas. Esperava que Fernanda, atenciosa como sempre, tirasse o excesso de água dele pois sentia que poderia cozinhar com todo aquele calor, mas o que sentiu foi um mal hálito quente próximo ao seu rosto.
– Hey, Nick! Você precisa escovar esses dentes! E logo! Tome, tenho uma balinha de menta aqui. – Disse o garoto colocando a mão no bolso da calça e notando que sua blusa não estava mais em sua cintura.
O cheiro de carniça estava ainda mais forte que antes. Ele esticou o braço com a bala em mãos e abriu os olhos. O que viu foi que seus dois braços estavam dentro de uma grande boca que era capaz de o engolir inteiro, os dentes de dez centímetros cada, eram mais afiados que as pontas dos peões que Gabriel costumava rodar quando era criança.
Ele soltou a bala da ali mesmo, encostou a mão esquerda no solo fazendo crescer uma estaca de bambu e o enfiou na grande boca antes que ela se fechasse.
– Que coisa é você? – Perguntou o garoto pasmo.
Não acreditava em seus olhos arregalados. A boca do monstro à sua frente era na barriga, seu corpo era coberto por uma pelugem rala e era possível ver a pele que mais parecia com couro de jacaré. No lugar da cabeça havia um grande olho vermelho do tamanho de uma bola de handball.
O monstro tentava fechar a bocarra fedida enquanto Gabriel tentava desesperadamente livrar seu braço da forte língua viscosa. Ele ergueu seu grande e musculoso braço direito com garras tão grandes e afiadas quanto seus dentes. O desespero começou a tomar conta do garoto.
Estava sentado com os pés apoiados nas coxas do monstro que estava ajoelhado tentando lhe devorar. Gabriel jogou todo o peso de seu corpo para trás, mas, mesmo com toda aquela baba, seu braço não se movia nenhum centímetro. Pode notar que a cima do monstro, pendurados em uma árvore, havia alguns cipós dançando alegres conforme o vento batia.
Sem pensar muito fez um dos cipós esticar e se enrolar no braço musculoso que estava prestes a fatiá-lo.
O monstro olhava para seu braço com seu único e grande olho vermelho tentando entender o que estava acontecendo.
Essa distração era a deixa que Gabriel precisava. Ele colocou a palma da mão livre no solo fazendo nascer um cacto cheio de espinhos, o arrancou do solo e, com a pouca destreza que tinha no braço esquerdo, bateu o cacto na língua do monstro que urrou de dor e soltou o braço do garoto.
Com o corpo em formato de ovo e três metros de altur, ele se levantou quebrando o cipó que o prendia com facilidade e tirando o bambu da boca começou a pular fazendo o chão estremecer. Segurou a língua cheia de espinhos, se virou e foi se afastando e saltitando.
Gabriel não tinha a menor intenção de mexer nas árvores centenárias do lugar, então fez crescer um novo bambu, esse com a ponta mais afiada e o atirou como um dardo contra o predador que continuava a saltitar. O bambu bateu em suas costas que mais parecia um casco de tartaruga e caiu de lado sem fazer efeito algum.
O monstro se afastou cada vez mais e, levando seu mal cheiro junto, só se escutava seu resmungar choroso ao longe.
Gabriel estava exausto e todo suado. Por mais quente que o dia estivesse o suor não evaporava, pois o ar era muito úmido devido enorme quantidade de árvores.
Parecia que tudo estava girando, o garoto estava tonto e com a boca seca. Caiu de joelhos no chão e viu o lugar salpicado de sangue.
Olhou e passou a mão em seu corpo que estava sem sinal de ferida. Sua cabeça não parava de girar e doer. Passou a mão por sua testa para tirar o suor, mas ao sacudi-la soube de onde vinha o sangue.
Esqueceu-se da pancada que levou do pedaço de sumaúma antes de apagar e agora a lembrança fazia sua cabeça doer como nunca antes.
Seus amigos poderiam estar em qualquer lugar, só não estavam ali para acudi-lo. Não tinha força para mais nada e seu corpo caiu imóvel no chão. Parecia que ali seria o fim antes mesmo de tentar deter seu irmão, Piatã. Talvez o monstro volte e devore seu corpo como vingança.
– “Mermão”!! Eu pensei que tu serias só mais um almoço daquele Mapinguari. “Caraca, véi”! Fiquei de “boinha” na minha, tá ligado? Não estava torcendo pra nenhum dos dois, mas quando tu fizeste aquele pedaço de bambu aparecer do nada eu pensei: “Caraca, mermão”! Não! Sério! Eu só tinha visto esse seu poder uma vez há milhares de anos atrás. Me diz aí, nego! Quem és tu? – Disse uma voz desconhecida com o sotaque carioca e gaúcho ao mesmo tempo.
Sua cabeça doeu ainda mais quando um turbilhão de perguntas veio até Gabriel, que estava caído no solo gelado de olhos fechados e só conseguiu dizer: “Ã?!”
– É, negão! Tu levaste uma pancada forte na cabeça, hein! Pensei que não ia desmaiar antes de ser devorado, mas tu tens garra! Deixa-me te ajudar com essa ferida. – Continuou a voz desconhecida.
Por um segundo Gabriel sentiu uma dor aguda no local da ferida e no momento seguinte não sentiu mais nada. Como se nunca tivesse se machucado. Agora só estava com muito calor e com o corpo fraco.
– Depois de comer esse cubiu você vai melhorar. Aproposito. Me chamo Macunaíma e tu?
EFEITO COLATERAL.
- “Caraca, mermão”! Essa tua história é muito louca! Não estou dizendo que não acredito em você. Mas se fosse outro diria que tu endoidaste. Eu imaginei que o Aba havia nos esquecido aqui. Parei de contar quando deu dez mil anos e olha só, depois de tanto tempo, “tu tá” aqui com seus dezessete anos e o Universo não desmoronou pois Céu ainda vive.
Gabriel ainda olhava incrédulo para o garoto índio que não parecia ter mais de quinze anos. Era magro, de meia estatura com seus um metro e setenta. Cabelos lisos e longos presos em um coque samurai no topo da cabeça. Tinha listras verdes e marrons pintadas na horizontal no rosto, usava uma camisa regata preta com a estampa do Chorão, uma bermuda verde limão com listras brancas e os pés estavam descalços.
– Você é Macunaíma? Aquele que já nasceu adulto? – Perguntou Gabriel caminhando ao lado do garoto e tirando da sua frente um cipó de abricó-de-macaco que crescia em uma jovem tatajuba.
– Existem muitas versões de como eu vim ao mundo. Uma conta que o sol e a lua se amavam, mas nunca se encontravam por que quando um se levantava o outro se punha. Só se viam de longe, tá ligado? Até o dia que a natureza preparou um eclipse e os dois se encontraram, aí e eu nasci. – Disse Macunaíma colhendo e comendo uma cubiu amarela. – De todas as versões que já ouvi essa é a que eu mais gosto, mesmo sem saber e nem me questionar sobre a forma do meu nascimento. Quem me trouxe a esse mundo foi Aba. Há! Há! Há!
– Legal. – Disse Gabriel dando uma mordida na fruta que Macunaíma lhe dera. Ela tinha a aparência de um tomate, mas seu sabor era difícil de descrever, lembrava leite fermentado sem açúcar. – Ele gostou. – Suas roupas são bacanas. Vai muito para ao litoral?
– Ah! Isso? Eu “tô” sempre no Rio de Janeiro. Sabe “comé”, né? Praia, um calor que provoca arrepio, as festas... O lugar é divino! – Disse Macunaíma se abaixando para não bater a cabeça em um galho à meia altura.
–Todos que conheço e já estiveram lá falam muito bem do Rio, que o lugar tem uma beleza única. – Disse Gabriel parando junto de Macunaíma que estava abaixado pegando e cheirando um punhado de terra. – Eu já fui a Teresópolis, mas não passei perto da capital.
– Tem que ir um dia. Mas tem que apreciar com moderação se não vicia e não vai querer sair de lá. – Disse o garoto ajoelhado e inalando bem fundo o aroma da terra em suas mãos. Parecia estar mais sério. – Que cheiro de cachorro molhado! O engraçado é que nessa parte da floresta não tem cachorro.
– Talvez tenha um passeando por aí, sabe? Expandindo os horizontes. – Gabriel abaixou ao lado de Macunaíma.
– Pode ser. – Disse o índio pensativo. – Está vendo essa terra?
– Sim! Parece conter muita areia para essa região. – Gabriel também pegou um pouco de terra e a estava amassando com as mãos sentindo a textura.
– Essa areia é trazida dos desertos africanos e do nordeste brasileiro. Elas vêm de carona com os ventos e muitas vezes atravessam todo o Oceano Atlântico. – Disse Macunaíma que olhava atento para o punhado de terra em suas mãos. – Sabe o que vai acontecer com essa região se o desmatamento continuar?
– Virará um deserto?
– Exatamente! As árvores aqui são grandes e saudáveis, mas o solo é muito pobre em nutrientes, então um depende do outro para sobreviver. Os fungos e bactérias comem os restos mortais de animais e das folhas das árvores, depois devolve em forma de nutrientes para elas que com suas frutas e folhas também alimentam os animais. Se você tira a árvore daqui a terra morrerá, pois não terá o que decompor e só vai restar a areia.
“Sente como aqui é abafado? Isso por que essas árvores estão sempre suando, por isso essa sensação de se estar em uma sauna. Independente da época do ano, sempre chove nessa região e grande parte da chuva no restante do continente também sai daqui. Sem árvores não terá tanta umidade e a seca vai predominar. Por isso estamos aqui, para proteger a floresta. Não condene a Boiuna por te atacar e nem o Mapinguari por tentar te devorar, meu “cumpadi”.
Os animais pareciam concordar com Macunaíma, assim que ele terminou de falar, o canto melodioso de um pássaro invadiu os ouvidos de Gabriel. A música parecia ser tocada por um flautista experiente, pois a melodia era harmoniosa e perfeita.
– O difícil é fazer as pessoas que movimentam o mercado da madeira entenderem isso. Eles pensam que os reflexos de seus atos só serão sentidos pelas próximas gerações, e agora querem enriquecer. – Disse Gabriel levantando e procurando o dono da melodia.
- Ah, “mermão”. Aí que eles se enganam. Os reflexos já são sentidos nos dias de hoje. Do centro do Brasil para baixo os períodos de estiagem estão mais longos. Sem falar do nordeste que q chuva é ainda mais escassa. – Disse Macunaíma se colocando de pé ao lado de Gabriel. – Aquele é o Uirapuru, nosso parceiro de proteção da floresta. – Apontou para um pássaro de penas vermelhas na cabeça, amarelas no peito e pretas nas asas que estava no troco de um enorme Jacarandá. Parecida com o que Gabriel viu quando pousaram no Rio Negro.
– Que melodia gostosa! – Disse ele fechando os olhos, sentindo pela primeira vez uma brisa e ouvindo o canto do Uirapuru.
– História interessante a desse “carinha” aí. Que mal lhe pergunte... O que vocês estão fazendo tão longe de casa? – Macunaíma se virou para encarar Gabriel como se a dúvida acabasse de lhe ocorrer.
– Estamos procurando por Seu Juarez. – O índio franziu a testa como se estivesse com mais dúvidas. – Talvez você o conheça como Jurupari. Sabe onde ele está?
- Gabriiééél!
- Biéooooo!
- Biééééllll!
O pássaro levantou voo no momento em que os gritos começaram a se tornar audíveis. Parecia que Joana e Nicolas haviam enfim acordado.
– Essa pergunta é no mínimo interessante. – Disse Macunaíma sorrindo e olhando para o local em que o pássaro estava.
– O que quer dizer com isso?
– Essa é uma história para um outro encontro. Tenho que ir.
– Espera! Você sabe onde podemos encontrar o Seu Juarez?
– Humm! Não posso dizer. Mas vai uma dica. Aquele que teve um pedido realizado pelo usurpador mostrará o caminho. Isso se você conseguir capturá-lo. – O garoto índio se transformou em uma onça pintada verde escura com manchas marrons e desapareceu por entre os arbustos.
– Hei! Espera aí! Quem fez o pedido? Quem é o usurpador? – Gabriel gritava para as árvores sem obter resposta.
– Tá ficando “lelé, Biel? – Perguntou Nicolas saindo de trás de uma árvore seguido por Joana e Fernanda que abriu um largo sorriso quando o viu.
– Não, Nick. Eu estava falando com Macunaíma. Acredita? Mas ele virou uma onça de cor estranha e saiu correndo. – Disse retribuindo o sorriso de Fernanda e correndo até os amigos.
– Ahh! Eu queria conhece-lo. Papai disse que ele sempre foi meio rebelde e eu me amarro em um gatinho assim. – Disse Nicolas sorrindo e mordendo o lábio inferior.
– Você nem sabe se ele é gay, Nick. – Disse Joana tirando algumas folhas de sua roupa amassada.
– Só vou saber se perguntar. Macunaíííímaaa! Volta aqui e vamos papear um pouquinho. – Gritava um Nicolas esperançoso.
– Temos problemas, Biel. Nós encontramos alguns lagartos da Cuca e alguns cachorros e lobos. Lôbi estava junto. Tivemos que nos dobrar para não sermos percebidos. Nos diga no que estava pensando quando disse para a gente vir para o Amazonas. – Disse Fernanda começando a tirar o excesso de água do garoto.
PEGUEM O PÁSSARO.
– Falei que iriam me agradecer por trazer o repelente! – Disse Nicolas sentando com os outros e descascando uma inajá recém-colhida enquanto o frasco de repelente rodava de mão em mão.
– Obrigado mesmo, Nick. – Falou Joana esfregando o liquido em seu rosto. – Então temos que encontrar alguém que fez um pedido a outro alguém que roubou o lugar de alguém?
– Foi isso o que Macunaíma disse. – Falou Gabriel que bebia água do galho de uma sumaúma e olhava para o céu onde se aproximavam algumas nuvens carregadas. – Parece que vai cair um toró.
– Temos que nos apressar, pode chover por horas. – Disse Fernanda se colocando de pé.
–Já tem alguma pista? – Perguntou Nicolas com a boca cheia de frutas.
– Talvez... Pensa comigo. Lôbi pode ter feito um pedido ao Piatã que quer tomar conta da parte de dentro do planeta da Céu. O que acham? – Disse Fernanda pensativa com a mão direita no queixo.
– É um ótimo palpite, Kika. Significa que vamos ter que jogar alguns ossos por aí e capturar o lobisomem para termos a resposta. Disse Joana levantando e se colocando ao lado da amiga.
Os mosquitos pareciam não se importar com o repelente que eles haviam passado. Há cada segundo Gabriel tinha que dar um tapa num lugar diferente de seu corpo.
Estavam andando por dentro da vasta floresta seguindo Nicolas que dispersou uma brisa leve pela floresta buscando sentir a presença do lobisomem.
O uirapuru parecia gostar da presença deles. Seu cantar os seguiu por todo caminho até ali.
No solo não tinha grama, apenas algumas plantas de folhas longas. Gabriel sabia que era por que as grandes copas das árvores coladas umas nas outras não deixavam a luz do sol passar, então seria muito difícil ter plantas baixas na floresta.
– Shiiiu! - Disse Nicolas parando abruptamente. – Eles estão parados atrás daquelas árvores. Tem um deles vindo pra cá. Se escondam depressa! – Sussurrou.
–Andem, meus filhotes. O som do Uirapuru veio dessa direção. – Disse uma voz rouca que Gabriel já conhecia.
– Pai, o pássaro parou de cantar, deve ter voado para outro lugar. – Disse um rapaz negro de cabelos cortados em quadrado no alto da cabeça, olhos cinza, com mais de um metro e oitenta e cinco de altura e usando roupas pretas.
– Então use o poder que o papai aqui deu para você, vire um cachorrinho E O FAREJE! – O som que saia da boca dele parecia com um latido forte. O homem forte que falou foi Lôbi, velho conhecido de Gabriel. Estava sem camisa expondo seus músculos e a pelugem que descia em “V” dos ombros até próximo ao umbigo. Usava uma calça cheia de bolsos e sapato coturno, todos pretos. Tirou o charuto da boca soltando a fumaça pelo nariz. – Vamos meus filhotes, estamos chegando perto. Farejem esse maldito pássaro antes que comesse a chover e percamos o rastro dele e a chance de encontrar o Juru.
Lôbi uivou bem alto e por todas as partes suas criações também uivavam e latiam enquanto o ele corria mais para dentro na floresta.
– Me deixa ver se entendi. – Começou Nicolas em tom desdenhoso. – Nós andamos por mais de meia hora rastreando esse cachorrinho e, quando finalmente o encontramos, deixamos ele fugir?
– Nick, pensa bem. – Disse Fernanda saindo de trás dos arbustos em que estava escondida. – Ele está atrás do uirapuru por algum motivo e também não sabe onde está o Seu Juarez. Ele está tão perdido quanto nós.
– Hum..! Talvez ele queira fazer um pedido ao pássaro. – Disse Nicolas comendo uma das bananas que estava no bolso de sua calça. – Quando eu era criança, papai me contava a história de um índio que era um ótimo flautista e apaixonado por uma índia esposa de um cacique. Sabendo que seu sentimento não podia ter reciprocidade ele foi até Tupã e pediu para ser transformado em um pássaro e poder cantar para sua amada. Se ela descobrisse que ele era o pássaro, ele voltaria a ser humano. Tanto a índia quanto seu marido, o cacique, gostavam do canto melodioso que parecia ser tocado por uma flauta. Certa vez o cacique saiu pela floresta na esperança de captura-lo e nunca mais foi visto. Até hoje o uirapuru canta. Acho que a índia nunca descobriu quem ele era. Papai também dizia que quem o capturasse poderia ter um desejo realizado por ele. História bonitinha, mas meio triste.
– Espera aí! Tupã não é o deus que tomou o lugar de Jurupari quando os europeus chegaram ao Brasil? – Perguntou Joana olhando para Gabriel e Fernanda que pareciam ter chagado na mesma conclusão.
– Então é isso. Não temos que capturar o Lôbi e sim o passáro. – Fernanda tirou as palavras da boca de Gabriel.
– Vocês vão mesmo levar a sério um conto infantil? – Perguntou Nicolas descascando outra banana.
– Nick, meu amigo. Até alguns meses atrás seus pais e tudo isso que estamos vivendo eram estórias infantis para mim. – Disse Gabriel colocando a mão sobre o ombro do amigo e sorrindo.
Tirando o calor e os mosquitos, andar pela floresta era muito gostoso. Por todos os lados era possível ver animais das mais variadas formas e espécies. Gabriel voltaria um dia com mais calma para poder apreciar a fauna e a flora.
Os quatro corriam pela mata de ouvidos atentos. Gabriel quase chutou um sapo-de-chifre-da-Amazônia que atravessou pulando na sua frente. Os macacos também faziam suas festas pulando e gritando nas copas das árvores.
As nuvens negras trouxeram também um vento fresco fazendo a temperatura abaixar e a caminhada ficar mais agradável. Gabriel andava olhando para um tucano de bico amarelo e penas negras comer alguma fruta quando ouviu o canto do uirapuru próximo. O som de latidos indicava que eles não foram os únicos a terem escutado.
– Vamos galera, temos que pegar o pássaro antes que eles o encontrem. – Disse Joana seguindo o som.
Viraram à esquerda em um jacarandá e viram o uirapuru num pé de guaraná, mas Lôbi estava correndo e prestes a chegar até o pássaro. Gabriel colocou as mãos no chão e fez o pé de guaraná sacudir e. O pássaro levantar voo pousando em uma andiroba.
– Vem aqui passarinho, vamos conversar. Só quero que você realize um desejo meu e depois... Bem, depois a gente vê o que acontece. Há! Há! Há! – Disse com sua voz grave e rouca.
Ainda com as mãos no chã, Gabriel fez nascer um ramo de melancia próximo ao homem-lobo. A planta rastejava num som quase inaudível ao ouvido humano, mas aquele cara não era humano e percebendo o perigo saltou evitando que a planta se enroscasse em suas patas.
– Vão, capturem o uirapuru. Eu vou atrasar o Lôbi. – Disse Gabriel para os amigos que correram um para cada lado.
– Hora! Hora! O que temos aqui... Eu sabia que tinha sentido o cheiro do Saci, Boto, Curupira e da Iara há algumas horas atrás, o que eu não sabia é que o cheiro vinha de suas crias. – Disse Lôbi tirando o charuto da boca, inalou o ar com força e sorriu maliciosamente. – E você, garoto do black power, é o filho da Céu com o Sol! Quem diria que essa expedição seria tão preciosa! Veio se juntar as forças do seu Irmão?
– Nada disso! Estou aqui para deter essa loucura.
Gabriel tirou os dois tênis e bateu o pé direito no chão fazendo crescer bambus ao redor do lobisomem que com um só soco derrubou boa parte deles.
– Acha mesmo que pode nos deter com esse poder pífio? – Disse Lôbi.
Gabriel cerrou os punhos e se preparou para se defender da investida que estava por vir, mas o lobisomem pulou no tronco da árvore enfiando suas garras e o escalando. Seu alvo não era o garoto e sim o uirapuru.
Nicolas girou nos calcanhares e um redemoinho apareceu da cintura para baixo fazendo-o levantar voo na mesma hora em que dois lobos e dois jacarés apareceram próximos das garotas.
Fernanda usava a umidade do ar e as gotas que saiam das árvores com movimentos dos braços para atacar com bolas de água e se proteger das mordidas dos lobos, criando barreiras à sua frente.
Joana fez aparecer um cajado de madeira nas mãos e atirava magia de fogo do tamanho de bolas de futebol contra os jacarés que se defendiam e atacavam com o rabo.
Todos usavam seus poderes com muita destreza. Gabriel não podia ficar para trás e fez aparecer galhos no tronco da andiroba no lugar em que Lôbi escalava, acertando-o em cheio no rosto e o derrubando de três metros de altura. O que para ele parecia um pulo, pois caiu de pé e coçou a testa no lugar em que havia sido atingido.
Nicolas estava perto de pegar o uirapuru que cantava e não parecia se importar com o que estava acontecendo. O lobisomem voltou a escalar a árvore e seus reforços chegavam de todas as partes. Logo Gabriel e seus amigos estariam cercados. Os cinco lobos que apareceram foram de encontro ao garoto que fez nascer um coqueiro de baixo de seus pés ficando fora do alcance dos caninos que rodeavam a árvore em que estava. Ele se sentou nas grandes folhas da palmeira e começou a atirar coco na direção dos lobos, acertando em cheio a cabeça de um deles que caiu imóvel.
Nicolas se aproximava cada vez mais do pássaro e Lôbi, que voltara a escalar a árvore, também. As garotas estavam se saindo bem contra seus alvos. Fernanda prendeu os dois lobos que a atacava em uma bolha de água suspensa no ar enquanto Joana fazia os jacarés recuarem com sua magia flamejante, mas todo aquele barulho estava atraindo cada vez mais inimigos e elas estavam ficando cercadas. Joana quase foi atingida pelas costas por um jacaré, mas Nicolas o fez voar atirando uma forte rajada de ar contra o homem transformado e o fez voar pelos ares. O vento foi tão forte que o uirapuru voou mais uma vez e pousou no caule do jacarandá.
Gabriel jogava cocos e tentava fazer os aliados de Lôbi ficarem distantes criando paredes de bambu e isso lhe deu uma ideia.
- Nick, voe para de baixo do uirapuru. AGORA! – Ele gritou em meio a todo aquele barulho para o amigo o escutar. Olhou fixamente para o pássaro. O lobisomem ia na mesma direção que Nicolas, mas foi atingido por um poder de fogo jogado por Joana que corria na direção do jacarandá junto de Fernanda. Lôbi rolou pelo chão deixando Nicolas em vantagem.
O pássaro foi envolvido por gravetos que se juntaram e formaram uma gaiola criada por Gabriel que viu o Lobisomem levantar e voltar a correr. Aquela situação estava deixando o garoto muito irritado. Via mais de vinte lobos e jacarés correndo atrás de Fernanda e Joana que tentava mantê-los longe com seus ataques enquanto Nicolas voava a toda velocidade para evitar que a gaiola colidisse com o chão. A ira tomou conta do garoto que soltou um grito de raiva, bateu as mãos e aas raízes das árvores ao redor começaram a se mover agarrando e prendendo um lobo que estava perto de morder o calcanhar de Fernanda. O mesmo aconteceu com os demais transformados. Todos ficaram imóveis presos por entre as raízes.
Lôbi avançava se esquivando das grandes raízes. Joana e Fernanda também o atacavam, mas ele resistia a seus ataques. Gabriel o acompanhou com o olhar e quando o Alfa pisou na raiz de uma árvore a centímetros de pegar o pássaro o garoto prendeu seus pés e o fez bater a cara violentamente no chão enquanto seu corpo era todo envolvido pelo cipó.
Antes que a gaiola batesse no chão Nicolas a pegou em um voo rasante. Gabriel pulou do coqueiro, caindo dentro de uma bolha de água criada por Fernanda para amortecer a queda, e correu de encontro aos amigos. Um cachorro saiu dos arbustos e bateu a cabeça na mão de Nicolas fazendo a pequena gaiola voar. Joana a pegou com sua magia e jogou para Gabriel. Os quatro corriam enfileirados pela floresta e um latido com o som de patas batendo no chão indicava que Lôbi havia se livrado dos cipós e corria atrás deles. Todos olharam para trás a fim de medir a distancia entre eles e seus inimigos que já estavam perto novamente. Seriam pegos há qualquer momento.
Ao olhar para frente Gabriel teve que parar subitamente para não colidir contra o caule de outro jacarandá a sua frente, mas seus amigos não pararam e se chocaram uns contra os outros batendo e empurrando ele contra a árvore. Gabriel esticou o braço livre na intenção de amenizar o impacto e se lembrou do primeiro jacarandá que viu antes de serem atacados por Boiuna. Quando deu por si estava deitado de barriga para cima, ao lado da árvore que estava pensando, às margens do Rio Negro.
– Biééél!! Você nos tele transportou por dentro da árvore. Que massagem deliciosa! Me sinto ótimo. – Nicolas estava em pé e se esticava com os braços erguidos.
– A sensação é realmente muito gostosa, Biel. Desde quando sabe usar o tele transporte? – Perguntou Joana girando os braços.
– Bom. Desde agora, mas não tenho certeza se eu sei usar ele. – Gabriel disse olhando para o Uirapuru que continuava a cantar como se nada tivesse acontecido. – Acho que foi pura sorte.
– Sorte ou não, o fato é que nos livrou de uma grande batalha. – Disse Fernanda se sentando ao lado de Gabriel. – E estamos com o Uirapuru. Pergunte como chegamos ao senhor Juarez.
Gabriel ficou sentado de frente com Fernanda. Com o pássaro preso na gaiola, talvez pudesse fazer quantos desejos quisesse. Poderia pedir que Piatã mudasse de ideia e não quisesse mais prosseguir com sua ganância.
– Ah, Biel. Você só não pode pedir para que ele venha até aqui. Não pode fazer nenhum tipo de pedido que controle as vontades de outra pessoa e/ou ser. – Disse Nicolas mordiscando um fruto de guaraná.
– Ok! Hum.. Uirapuru me mostre como encontrar a Cuca. – O pássaro parecia não ter entendido e continuava a cantar ignorando Gabriel.
– Viu, gente. Era apenas um contato infantil. – Disse Nicolas de boca cheia olhando para os lados na busca de algum sinal da Cuca.
– A Cuca é uma das bruxas mais poderosas desse planeta. Talvez o uirapuru não consiga encontra-la. – Disse Joana.
– O Seu Juarez é ainda mais poderoso que ela. – Disse Gabriel olhando para a gaiola.
– Mas ele não é bruxo, é um poderoso guerreiro. Tente outra vez.
– Uirapuru, me mostre o caminho exato até Jurupari. – Disse Gabriel olhando fixamente para o pássaro que parou de cantar e olhava para ele com atenção apenas movendo a cabeça da direita para a esquerda, abriu as asas, soltou um piado agudo e desapareceu da gaiola.
– Ã? Ééé... Oi?! Aonde ele foi? – Perguntou Nicolas abaixando a cabeça próximo da gaiola vazia.
– Será que eu errei nas palavras na hora de pedir? – Disse Gabriel perplexo girando a gaiola nas mãos.
– Não, Biel. Você não pediu para ele vir aqui, pediu para saber onde ele estava. – Disse Joana olhando para os lados.
Fernanda levantou e foi até às margens do Rio Negro. Parou ali por alguns segundos e a chuva começou a cair de forma torrencial. Joana criou uma barreira de energia que protegia ela, Nicolas e Gabriel. Fernanda continuava a olhar para o rio de baixo da chuva.
Do lugar em que eles estavam dava para ver as muitas árvores do arquipélago de anavilhanas, dezenas de ilhas arborizadas que surgiram no Rio Negro.
– Pessoal, venham aqui. – Disse Fernanda fazendo gestos com a mão esquerda.
Mesmo com toda aquela chuva, tinha um ponto do rio que não recebia sequer uma gota de água das nuvens carregadas. Naquele local o rio borbulhava e um redemoinho se formou deixando aquele ponto inteiramente seco. A água era segura por alguma barragem invisível. Logo o que se via era uma passagem cavernosa com escadas às margens do rio e dava para ouvir o canto do Uirapuru vindo lá de dentro.
– Bem, acho que o Biel fez tudo certo. – Disse Fernanda começando a descer as escadas.
– Será que entrar aí é o certo a se fazer, Kika? – Perguntou Nicolas receoso com a ideia de entrar em uma caverna em baixo do Rio Negro.
– Só vamos saber se entrar, Nick. – Disse Joana acompanhando Fernanda e levando sua proteção de energia junto.
– Eu é que não vou ficar nessa chuva. – Disse Gabriel indo atrás das amigas.
A caverna era muito bem iluminada por tochas espalhadas por toda extensão das paredes negras e com desenhos. Em sua grande maioria os desenhos eram de pessoas munidas com alguma arma pré-histórica caçando algum animal grandioso.
Gabriel viu em uma gravura o que parecia ser um brontossauro cercado por mais de vinte figuras humanas com lanças, arcos e flechas em mãos.
– Ahhh, Biel. Olha você aqui! – Disse Joana sendo cercada pelos amigos.
Perto de alguns desenhos de aves, árvores, algo que parecia com o céu estrelado e próximo do fim da parede um desenho de uma figura humana de Black Power e aí lado o que parecia ser uma folha retangular.
- Humm! Realmente se parece comigo, mas acho que não sou eu. Não vejo sinal do meu piercing e não tenho mais um black assim. Há!Há! Há!
- E o que é esse pássaro em cima de você? Parece que está pegando fogo. – Disse Fernanda passando o dedo na figura.
- Talvez quando tudo acabar o Biel vá fazer um churrasco para nós para comemorar a vitória. – Disse Nicolas com um olhar sonhador.
- Se fizer espero ser convidado. – disse uma voz grave já conhecida por todos ali.
ME CONVENÇA.
A mesa estava repleta de frutas conhecidas como abacaxi, melancia, jaca, uva, mamão e outras desconhecidas. Uma delas tinha a casca em formato de chamas, a cor era laranja com pintas pretas e seu galho era cinza. Outra tinha a casca azul com círculos brancos que lembrava um alvo.
Nicolas comia como se fosse a primeira vez em dias. Pegou a fruta de fogo e deu uma mordida ignorando a casca. Seu rosto começou a ficar vermelho, os olhos estavam lacrimejando e começou a sair fumaça de sua boca e nariz. Fernanda lançou um jato de água acertando a boca do amigo em cheio que levantou dando risadas.
- Que fruta doce, quente e saborosa. Ela nasce aqui na Amazônia mesmo?
- Não, Nicolas. Essa fruta eu colhi ontem na floresta flamejante de um planeta há cinco sistemas solares daqui. Não sabia se era seguro comê-la e deixei na mesa apenas por enfeite. – Disse Jurupari sentado numa das pontas. Estava sem camisa e usava apenas uma saia até os joelhos, seu corpo musculoso estava coberto por pinturas. Ele lembrava os índios guerreiros que Gabriel vira nos livros didáticos de história.
– Se bobear o Nick come até pedra. – Disse Joana comendo um morango.
– Se estiver bem temperada... – Disse ele com a fruta azul nas mãos. – Que gosto será que essa aqui tem?
– Só você mesmo, Nick. – Disse Fernanda com um pedaço de melancia na mão. – Seu Juarez, acredito que o senhor saiba do que tem acontecido nos últimos dias, certo?
– Sim. Sei dos planos de Piatã.
– Sabe que a Cuca pegou uma planta que pertence ao Biel, e dizem ser uma erva que tem um poder de cura muito poderoso? – Continuou Fernanda.
- Sim. Uma índia que conheci há sete mil anos atrás pintou essa planta na parede que vocês estavam olhando.
- Nós precisamos encontrar a Cuca antes que ela entregue a planta para Piatã. O senhor sabe onde ela está? – Disse Joana com os olhos cheios de esperança. Lembrou os de Nicolas quando pensou no churrasco.
- E por que devo dizer alguma coisa para vocês? – Disse Jurupari deixando todos de boca aberta. Menos Nicolas que começou a inchar e levitar.
– Hei, Nick. Tá tudo bem? – Perguntou Gabriel levantando da cadeira.
– Tudo ótimo, Biel. Essa é a fruta mais gostosa que eu já comi em toda minha vida! – Disse Nicolas girando no ar de braços abertos e olhos fechados.
– Essa eu peguei de uma árvore bem curiosa, ela não tinha caule nem folhas, era composta apenas por ar e as frutas ficavam flutuando no vento. – Disse Jurupari com um ar risonho.
– Então deixa que essa é a praia dele. – Disse Joana se virando para Jurupari. – Seu Juarez, sabemos que o senhor é uma boa pessoa, nós só queremos evitar que a planta caia nas mãos erradas.
– E o que faz a senhorita pensar que vocês são as pessoas certas para ter posse da planta. Até onde eu sei vocês já estavam com ela e por um descuido seus a Cuca a usurpou. Talvez agora ela esteja mais segura.
Gabriel não acreditava no que estava ouvindo. Seu Juarez que frequentou sua casa por tantos anos, conhecia bem Dina Ester, sua mãe. Sabia que todos aqueles sentados à mesa com ele naquele momento eram boas pessoas e tinham as melhores das intenções. Porque diabos estava se negando a ajudá-los?
– Seu Juarez, o senhor sabe que essa planta pode salvar minha mãe, a Céu e assim evitar que o universo desmorone? – Disse Gabriel perdendo a fome e deixando a maçã que comia sobre a mesa.
– Sim, Gabriel. Sei bem o que pode acontecer se a planta conseguir, de alguma maneira, chegar até a minha amiga Céu. Sei também que Piatã está muito fraco e não tem forças o suficiente para chegar aqui com seus próprios poderes, logo ele tem menos poder ainda para conseguir segurar a queda do universo. – Disse Jurupari ainda se divertindo com um Nicolas em forma de balão que flutuava pela caverna.
– Se Piatã pegar a planta, a Céu vai morrer e não temos garantia nenhuma de que ele vai conseguir aguentar o peso do universo. A coisa mais certa a se fazer é recuperar as forças dela para que tudo fique bem como está. – Disse Fernanda em tom ameno na esperança que ele aceitasse o argumento.
– Certo? O que é certo e errado para vocês? Talvez o curso natural de tudo seja esse. Talvez esse seja a coisa certa a acontecer.
– Sério que você está dizendo que é certo deixar uma pessoa morrer pela ganância de outra? De que ao invés de ajudar aquela que pode simplesmente evitar que tudo acabe só por estar viva vale menos que a ambição de um que faria qualquer coisa para ser o senhor de tudo e de todos? – Gabriel estava consternado. Aquele não era o Senhor Juarez que conhecia.
– Já olhou para os seres humanos? Sempre pisando uns nos outros para conseguir o que se quer. Olhou bem para o que eles fizeram a essa floresta tão linda? Pode ser que na rédea curta eles cuidem melhor do presente que a natureza lhes deu. – Disse Jurupari pegando um cáqui.
– Assim como também tem pessoas que lutam para que as coisas sejam mais justas. Que lutam para que parem o desmatamento desvairado. Que lutam para que as pessoas vivam dignamente. Existem pessoas boas. O senhor perguntou o que é certo e eu acredito que seja a harmonia e os atos que fazem bem para todos, não só para um. – Disse o garoto com seriedade.
Jurupari comia seu cáqui com calma parecendo se deliciar com o sabor da fruta e olhava atentamente para Gabriel que ainda estava de pé e com os punhos cerrados.
– Sabe. Piatã era o que sempre ia me visitar quando eu morava no planeta de Céu. Ele queria dar consciência para os animais que viviam lá. Achava injusto que apenas algumas centenas pudessem raciocinar sobre as coisas enquanto mais de 500 bilhões de espécies vivessem apenas por viver. Um dia Céu falou para ele que não seria viável pois alguns dos animais eram carnívoros e o local seria consumido pela guerra pois um iria querer se alimentar do outro.
“Eu não entendia o que Céu queria dizer com aquilo, achava que a ideia de Piatã pudesse ser boa e encontraríamos uma forma de viver em harmonia. Somos seres inteligentes, eu pensava. Até que um dia, Aba nos pediu para aguardar aqui na Terra e que não interferíssemos em nada do que acontecesse.”
“No começo, quando o homem teve que viver sozinho sem seus amos, eles eram apenas mais um animal dessa vasta fauna, só que conforme o tempo passava eles evoluíam não só física como também intelectualmente. Criaram as civilizações, comércio, guerra e então, só aí eu entendi o que Céu quis dizer.”
- Mas a humanidade ainda vive. O planeta Terra ainda vive. – Disse Nicolas que estava voltando ao normal e descia lentamente.
- Até quando?
– Jurupari. Enquanto as pessoas lutarem umas pelas outras. Enquanto as crianças puderem andar pelas ruas sorrindo. Enquanto existir um que garra para combater aquilo que não é bom para todos, eu ainda terei fé na humanidade. E eu estou aqui apenas dezessete anos. Você está aqui há milênios. Deve ter conhecido muita gente boa. Vai mesmo permitir que a luta e morte deles seja em vão?
“Mesmo que meu irmão consiga sustentar o peso do universo, você acredita que as pessoas viverão em paz se acaso o Lôbi ou a dona Colette forem os senhores desse planeta? Você os conhece melhor que eu. Se está ruim assim, imagine com eles no comando.”
– Essa guerra não é minha. – Disse Jurupari encarando Gabriel.
– Não, Seu Juarez. Essa guerra é de todos nós. Não estamos pedindo que vá conosco para o campo de batalha, só querem que nos diga como encontrar a Cuca e deixe o resto com a gente.
Jurupari respirou profundamente. Olhou para os lados e então disse:
– O lugar é protegido por uma magia antiga e poderosa, não poderão simplesmente aparecer lá.
MULA-SEM-CABEÇA.
Gabriel já estava acostumado a viajar com Joana. Se viu no alto de um mirante de pedras que dava para observar nitidamente o Salto do Rio Preto. Três quedas d’água muito altas surgiam por entre as pedras ao longe.
Era um espetáculo aquilo que a natureza criou por bilhões de anos.
– Temos que correr. – Disse Nicolas, saltando das pedras.
Andaram por meia hora pela terra seca até chegarem há paredões de pedra onde a água caia. Fernanda entrou na água e desapareceu por trinta segundos.
–A queda não é tão grande assim, mas vocês vão ter que arrumar um jeito para descer. Se tivéssemos cordas, poderiam descer por rapel.
–Eu dou um jeito. – Gabriel concentrou-se no solo e fez aparecer três cipós presos ao chão que desciam até o fim da cachoeira.
– Muito bem, Biel. – Disse Nicolas abaixando-se e pegando um dos cipós. – Espero que me aguentem.
As pedras molhadas dificultavam a descida. A água batia forte contra os garotos, mas todos suportaram bem.
Tiveram duas paradas no meio do caminho e nelas Gabriel precisou fazer os cipós novamente até chegarem em um lugar que parecia ser um rio subterrâneo. O Sol não batia ali dentro, o que deixava o ambiente muito gelado.
Andaram por quase um quilômetro por dentro da garganta de pedras até chegarem a um penhasco. Para onde quer que olhasse, Gabriel deparava-se com surpresas da natureza. Depois de muito andarem se depararam com Santa Barbara, considerada uma das quedas d’água mais bonitas do Brasil com cerca de trinta metros de altura. A água caia por entre as pedras e chegava a um lago de águas tão cristalinas que, mesmo do lado de fora, conseguia ver o fundo onde muitos peixes nadavam livremente.
Após mais uma hora de caminhada e descidas, chegaram à terra dos Calungas. Eram descendentes de escravos que no passado haviam formado ali um dos maiores quilombos do Brasil. Viviam de forma simples. Alguns homens, sentados em cadeiras de balanços à porta de suas casas de sapê e com chapéu de caubói na cabeça, conversavam despreocupados. Mulheres com lenços na cabeça carregavam bacias com roupas acompanhadas de crianças. Não se via tantos jovens, talvez estivessem trabalhando, caçando ou tomando banho de cachoeiras. O lugar era isolado. A cidade mais próxima era a cerca de oitenta quilômetros de distância. Não tinha estradas, sem meio de transporte e sem comunicação.
Gabriel olhava admirado para as pessoas que ali viviam e perdeu o folego quando viu uma pessoa passando por entre os moradores do local. Reconheceria aqueles dreads mesmo se houvessem outros milhares juntos.
– Cáulon. – Disse apontando para o local em que o garoto passou.
– Estamos no lugar certo! – Disse Fernanda. – Não é melhor avisarmos os outros?
– Não sabemos quanto tempo ainda temos. Precisamos chegar perto dele sem que sejamos vistos.
–Eu posso ficar invisível, mas consigo fazer apenas mais um ficar também. – Disse Joana, olhando para os companheiros.
– Perfeito. – Gabriel estava decidido. – Vocês dois fiquem aqui e esperem. Joana e eu vamos descobrir algumas coisas.
– Você vai ter que ficar bem perto de mim. – Disse Joana.
– Hei! Precisa ficar tão perto assim? – Disse Fernanda, quando Gabriel colou no corpo de Joana.
– Relaxa, Kika. – Disse Joana – Biel, me acompanhe. não desgruda de mim. – E saiu andando, com Gabriel nos calcanhares.
– Já estamos invisíveis? Eu não sinto nada de diferente. – Perguntou o garoto.
– Estamos! Eu criei uma camada de energia sobre nós. Não é nada demais, mas eu não consigo expandir por uma área muito grande.
Os dois passaram por entre as pessoas do vilarejo e deram a volta na casa em que Cáulon havia entrado. Ali tinha uma janela e Gabriel olhou para dentro da casa muito simples, onde apenas uma mesa de madeira e duas cadeiras, que estavam ocupadas, decoravam o local.
Ele viu que um de seus ocupantes era o filho da Cuca, mas não conseguia ver quem era a outra pessoa que estava de costas.
- Mula-Sem-Cabeça. – Disse Joana, quando ouviu a voz do que estava sentado de costas para a janela.
– Bem. – Começou a Mula em tom de desdém. Sua voz fria e aguda entrou pelos ouvidos de Gabriel causando um pequeno arrepio. – Vejo que você está muito bem hospedado aqui. Parece ser... Confortável.
– Mamãe quer todos espalhados para ganhar tempo e me mandou para cá. Eu gosto de estar perto da natureza! Já viu as cachoeiras que tem por aqui?
– Conheço-as bem! Eu vi os escravos fundarem esse quilombo. Mas não é sobre as belezas naturais que vim conversar. Quero saber por que Cuca não está me deixando atualizada das notícias? Afinal, fui eu quem deu a pista de onde o garoto morava fazendo o motoqueiro entrar na rua e quase atropelar o cachorro dele no dia em que ele despertou seus poderes. Se ela está com a Planta da Cura, parte desse êxito deve-se a mim.
– Nós conseguiríamos pegar a planta com ou sem você, Mula! – Cáulon pareceu não gostar de ser cobrado.
– Certamente que conseguiriam! – A mulher parecia se conter para não explodir com o garoto. Bufava de impaciência por não ter o que queria. – Mas será que seria a tempo? Pelo que sei os guerreiros de Piatã já devem estar chegando.
– E assim que chegarem vou me juntar a mamãe!
– Muito bonito esse seu afeto e carinho, mas eu não preciso esperar até que eles cheguem para conversar com sua mãe. A propósito. Aqueles lagartos são muito vulneráveis. Só precisei sorrir e dar uma cachaça de alambique para eles e aqui estou eu.
– Nós demos informações falsas para todos eles. Se você perguntasse para outros, te mandariam para outra parte do continente.
– Muito esperto! Não esperava menos de vocês. – A mulher levantou-se e foi até a pia, onde havia um bule e alguns copos de barro e serviu-se de um pouco de chá. Gabriel a acompanhou com os olhos. Ela usava um vestido preto e longo, com uma cascata de cabelos ruivos que chegavam até a cintura, um sapato de salto alto e ainda de costas perguntou. – Servido?
– Não, Obrigado. – Mesmo tendo o rosto com a aparência despreocupada Cáulon parecia estar tenso, como se fosse ser atacado a qualquer momento por Mula que continuou.
– Então, Cáulonzinho! Diga-me. Onde está sua mãe? –Virou-se, tomou um gole do chá, olhando fixamente para o garoto. Gabriel a reconheceu. Era a mulher que comprou frutas perto de sua casa. O garoto ignorou sua beleza e não conseguia sentir nada, além de ódio. Joana percebeu que ele estava se alterando e fez sinal com a mão para ele se acalmar. – Acho que você não vai querer me ver perder a cabeça, não é mesmo?
Cáulon manteve o rosto relaxado, mas suas mãos se fecharam. Parecia estar vivendo um dilema. Será que sua mãe o castigaria por falar onde ela estava? Poderia dar uma pista falsa, assim, enquanto a Mula fosse para o local informado ele sairia dali. Pensou Gabriel.
– Acho que não fará mal eu lhe dizer onde ela está. Ainda mais se formos considerar que estamos em dívida com você.
–Muito bem, garoto. – Disse a mulher, pousando o copo em cima da pia e voltando lenta e graciosamente para sua cadeira. Sentou-se e olhou atentamente para o garoto esperando a informação. – Eu vou saber se estiver mentindo.
Cáulon respirou fundo, alisou um de seus dreads que estava caído sobre seu ombro e deu um sorriso forçado fazendo a cicatriz em seu rosto se movimentar.
– Não é por que te acho muito linda que vou dizer que mamãe está em Salvador. É porque os guerreiros chegarão em meia hora e não tem mais como nossos planos serem estragados.
– Porra! – Com a mesma rapidez que a palavra saiu de sua boca Gabriel se arrependeu de a ter dito. Cáulon e Mula olharam ao mesmo tempo para a janela.
– Olá lindinho, nos encontramos novamente. E quem é você garota? Perguntou Mula, sorrindo para os Gabriel e Joana, perplexos por estarem sendo vistos.
– Como? Tem gente ali? – Perguntou garoto em tom de desespero.
– Você não os vê? Hum... Deixe-me adivinhar. Você deve ser a filha de Curupira. A pequena bruxa de quem tanto ouvi falar. Está usando magia de invisibilidade? Por isso que o Cáulon aqui não os vê. Bem, como vocês podem perceber, não funciona comigo! E o seu companheiro é o filho tão procurado e cobiçado por muitos, agora aqui na minha frente, entregando-se de bandeja para mim. Piatã vai me querer como esposa depois que eu lhe entregar para ele.
O garoto não ficou para a as devidas apresentações e puxou o braço de Joana para que a garota começasse a correr. Ouviu uma risada aguda e o som de ferradura contra a terra seca. Gabriel estava chegando perto de Fernanda e Nicolas, quando olhou para trás e o que viu o fez querer correr ainda mais rápido. Um ser meio mulher, meio égua galopava rapidamente. Ele só sabia que era mulher porque os seios subiam e desciam conforme galopava. Em cima do pescoço, onde era para estar uma cabeça, saiam chamas.
–Nick! Kika! Corram! – Gritou Gabriel quando chegou perto o suficiente para que os amigos o ouvissem.
Nicolas conversava alegremente com uma moradora local, enquanto Fernanda o cutucava na esperança de que ele olhasse o que ia na sua direção.
– Você ouviu isso, Kika? Há! Há! Há! Ela falou que... Puta que pariu!
– Corre, Nick! – Disse Gabriel, novamente, quando passou correndo pelo amigo.
Os quatro iam sem rumo, pulando por entre as pedras e desviando das galinhas que cacarejavam sem saber do perigo. Os garotos, e muitos cidadãos da pequena vila também corriam, para todos os lados quando viram a Mula. Outros moradores, que haviam entrado em suas casas, saiam com pedaços de madeira nas mãos.
– Porque eles acham que vão conseguir deter a Mula com pedaços de pau? – Perguntou Gabriel, enquanto corria para um barranco bem a sua frente.
- Diz a lenda que o encanto desaparecerá quando alguém tiver coragem o bastante de a encarar e tirar os freios da boca da mula ou se alguém conseguir tirar uma gota de sangue dela com madeira que não foi usada para nada. – Disse Fernanda, escorregando o barranco logo atrás de Gabriel.
– Então, eu posso ajudar! Fazer madeira que ainda não foi usada é comigo mesmo.
– Mas você vai ter que entrar em combate com ela e não temos tempo para isso! – Disse Joana, juntando-se a eles logo depois de Nicolas. – Você não se lembra do que Cáulon disse? Temos menos de meia hora para a chegada dos guerreiros de Piatã.
– E o que vamos fazer se o que sabemos é que a Cuca está em Salvador, mas não sabemos o local exato? Vamos ficar esperando no aeroporto até ela aparecer?
– É mais fácil a gente ficar esperando do que brigar com a Mula, né querido! – Disse um Nicolas se esforçando para respirar.
– Deem as mãos e quando eu falar, pulem! – Disse Joana.
Os gritos dos moradores do local se fundiam aos galopes de Mula que se aproximava.
Os quatro pularam ao comando de Joana e, após alguns segundos, apareceram em uma praça no Pelourinho, centro histórico de Salvador.
O lugar estava cheio de pessoas que pareciam não ter notado que quatro garotos haviam aparecido do nada entre eles. Gabriel olhava para os lados, em poucos dias tinha visto tantas belezas naturais e agora estava diante de um conjunto arquitetônico colonial barroco brasileiro. Foi então que entendeu o porquê de tantos turistas irem para lá.
As construções por si já tinham sua beleza. Não eram prédios altos, mas eram imponentes, robustos e as pinturas davam a eles um toque especial de vida. As ruas eram compostas de paralelepípedo, sem asfalto. Por toda parte ali naquela praça havia barracas com comidas típicas da Bahia. Suas donas usavam vestidos brancos e longos, na cabeça panos também brancos com guias no pescoço. As guias são um tipo de proteção espiritual e as cores variam conforme a Linha a qual o espírito atua. Gabriel sabia disso, pois uma vizinha dele era umbandista e contou-lhe algumas coisas da religião.
Os quatro começaram a andar por entre a multidão, pois não conseguiam se entender com o barulho. Estavam chegando próximo a um prédio cuja a fachada era azul, com os contornos das portas e janelas brancos, quando ouviram o som de cascos e um relincho alto e agudo. As pessoas começaram a correr desesperadas e os quatro puderam ver a Mula no lugar em que eles haviam aparecido.
– Como essa égua conseguiu nos seguir? – Perguntou Nick, quando foi puxado por Joana para dentro do comércio.
– Ela deve ter pegado carona em nosso tele transporte! – Disse Joana.
– Como isso é possível? – Perguntou Gabriel que já não ficava surpreso com mais nada, apenas queria aprender o máximo que pudesse sobre esse novo universo de que fazia parte.
-O tele transporte é uma espécie de buraco de minhoca. Ou seja, nós o abrimos para ir de um lugar para outro, quando ele se fecha, deixa vestígios para trás e se a pessoa for boa o bastante consegue viajar de carona. – Disse Fernanda olhando de esguelha para fora da loja. – Depois, eu explico melhor, Biel. Agora, temos que pensar em um jeito de sair daqui o mais rápido possível sem que a Mula nos veja.
– A gente pode se tele portar para outro lugar. – Disse Gabriel como quem tivesse descoberto a pólvora.
– Em condições normais eu demoro cinco minutos para poder criar um buraco de minhoca após o outro. Mas estou cansada por termos ficado invisível e acabamos de vir para cá. A não ser que encontremos um pequeno lago para poder tele transportar com a Kika, vamos ter que esperar um pouco mais.
– Descanse um pouco, Jô. Vamos pensar em alguma coisa. Enquanto isso, temos que parar a Mula, se quisermos começar a procurar a Cuca. – Disse Gabriel, olhando para a praça que há alguns segundos atrás estava cheia de pessoas e agora só tinha a Mula-Sem-Cabeça girando em seus cascos e procurando-os. – É o seguinte, nós só precisamos tirar uma gota de sangue para ela voltar ao normal, não é?
– Hei, meus bebês! Onde estão vocês, em? Venham! Eu só quero conversar e talvez entregar O Filho como um dote para o meu casamento com Piatã! – Disse antes de dar uma risada alta que mais parecia um relincho.
– Tem certeza, Biel? – Perguntou um Nicolas relutante.
– Nós não temos tempo pra pensar se pode ou não dar errado. A cada segundo que passa ficamos sem tempo. – Gabriel estava decidido a agir como planejado.
– Estou com o Biel! Já se passaram dez minutos e o
Eles logo vão chegar. – Fernanda foi para o lado de Gabriel tão decidida quanto o garoto.
– Certo! Vamos! – Disse Nicolas.
– O da ferradura, está nos procurando? – Fernanda, Nicolas e Gabriel saíram da loja, cada um com uma estaca de madeira na mão e mostraram-se para a Mula que rodou e os encarou com a cabeça em chamas.
– Olá, meus lindinhos. Resolveram se entregar? Onde está a filha de Curupira? – Perguntou ao notar a ausência de Joana.
– Não se preocupe com ela, eguinha. Nós três não somos o suficiente para você? – Perguntou Nicolas com uma das mãos na cintura.
– Na verdade, eu só quero esse lindo negro, de olhos verdes. – Disse ela apoiando-se nas patas traseiras, ficando duas vezes mais alta com as patas dianteira, balançando e as chamas em seu pescoço intensificando-se e subindo mais de dois metros acima dela de excitação.
Ela abaixou as patas e preparou-se para o ataque enquanto os garotos posicionaram-se defensivamente.
Nicolas ia à frente de todos, seguido por Gabriel e Fernanda logo atrás. Mula arrastou as patas dianteiras no chão e voltou a ser a linda mulher ruiva caída no chão. Não sabia o que havia acontecido, tentou levantar-se, olhando para os lados e viu Joana aparecendo ao seu lado com um pequeno palito de madeira com a ponta vermelha de sangue na mão.
– Deu certo, Biel. Não precisávamos bater nela. Só tirar uma gota de sangue, como diz a lenda. – Joana disse com um sorriso largo no rosto, correndo de encontro aos outros.
Gabriel prendeu a mulher desnorteada em uma prisão de madeira no meio da praça no Pelourinho.
– Depois, nós cuidamos de você. – Disse Fernanda mexendo em seu colar. – Será que ela já está no aeroporto?
- Não sei, mas vamos ter que ir até lá para nos certificar! – Gabriel colocou a mão no bolso e sentiu a folha que havia guardado quando recuperou as energias de Dona Ester, virou-se para Joana e disse entregando a folha para a garota. – Tome, Jô, coma isso.
– Virou vegetariana, foi Jô? – Perguntou Nick com o desdém de sempre.
– No que isso vai me ajudar, Biel?
– Apenas coma. Não temos tempo para explicação. – Disse Gabriel com impaciência.
Joana pegou a folha da mão dele e colocou na boca, começou a mastigar e a engoliu. Parecia revigorada, como se tivesse acabado de acordar.
– Encostem-se a mim e pulem! – Disse Joana.
Eles apareceram no meio do banheiro feminino. Gabriel sabia disso pois duas mulheres conversavam enquanto passavam batom na frente do espero. Quando viram o grupo de garotos aparecer do nada, as duas mulheres gritaram e saíram correndo do banheiro deixando suas bolsas para trás.
Eles saíram do local e depararam-se com o grande saguão do aeroporto.
– Este lugar está bem caidinho para um aeroporto internacional. – Disse Nicolas a frente de todos.
– Talvez devido à greve dos caminhoneiros os aviões não tenham querosene para levantar voo. – Disse Gabriel o seguindo.
Sua tese foi confirmada quando uma voz saiu dos autofalantes dizendo que alguns foram cancelados pela falta de combustível.
Os garotos andavam depressa, mas evitavam correr para não levantarem suspeitas. Passaram pelo guichê, quando foram subir as escadas rolantes Nick os parou.
– Os lagartos. – Disse apontando para alguns guardas atentos na parte de cima.
Os soldados da Cuca estavam por todos os lados. Ela sabia que eles, mais cedo ou mais tarde, apareceriam e queria assegurar-se de que tivesse tempo o suficiente até a chegada dos enviados de Piatã.
– Seguinte! Nós temos que evitar confronto e encontrar onde a Cuca está o mais depressa possível. – Disse Gabriel, quando se esconderam em um ponto sem movimento.
– Onde ela pode estar? – Disse Joana pensativa.
– Talvez em um lugar isolado que tenha visão para todo o aeroporto. - Disse Fernanda.
– A torre de comando! – Disseram todos ao mesmo tempo.
Começaram a fazer o caminho de volta para o saguão de entrada, passaram por um grupo de pessoas que conversavam enfurecidas sobre o atraso nos voos. Tudo estava indo bem, já estavam na porta que dava acesso a saída e viram as mulheres que saíram correndo do banheiro conversando com um dos guardas. Quando os viram, as mulheres começaram a apontar para eles, desesperadamente.
O guarda virou-se e sorriu para os garotos. Começou a ir calmamente na direção deles pedindo para que eles o esperassem. Nicolas então puxou Gabriel pelo braço.
– Corre! Ele é um lagarto.
Muitas das pessoas que estavam no saguão começaram a ir na direção deles e não demorou muito para que estivessem cercados.
– Oi, lindinhos. Olhem, nós só queremos bater um papo com a mamãe de vocês. Então sejam bonzinhos e comecem a falar. Agora! – E ao dizer isso, Nicolas explodiu em fúria e em sua mão apareceu uma marreta preta e dourada e um traje vermelho como o do Saci.
– Nick! Você não usava um cachimbo? – Perguntou Gabriel olhando para a arma do amigo e lembrando-se da batalha na cachoeira da fumaça.
– Eu também estava treinando, gato. Ai! Vermelho não me cai bem! – Disse Nicolas e correu na direção de um grupo de lagartos balançando sua grande marreta.
Joana disparou contra a outra parte das pessoas que os cercavam. Usava uma minissaia, uma mini blusa, uma sapatilha e um pequeno chapéu de bruxa, todos pretos. Brandiu seu cajado, criando várias bolas de energia à sua frente e disparou-as contra os lagartos, criando uma grande explosão, as pessoas que estavam no local começaram a correr desesperadas para o mais longe possível do foco de briga.
Fernanda ainda estava ao seu lado, mas não usava mais suas roupas habituais. Estava de tope azul claro e uma saia que na frente ia até perto dos joelhos e atrás tocava seus calcanhares, até seu colar parecia ter um brilho diferente. Um brilho dourado.
– Está pronto, Biel? – Perguntou a garota.
– Nasci pra isso, Kika! – Disse sorrindo e tascou um beijo na boca de Fernanda. – Quer namorar comigo?
– Claro que sim! – Disse a garota começando a correr, segurando bolas de água nas duas mãos. E a Jéssica?
– Foi um erro.
– Então tá bom! Não morra! – E disparou as bolas de água contra os lagartos que estavam a sua frente os jogando contra a parede.
Gabriel não ficou atrás, fechou os olhos, concentrando-se e fez um círculo de palmeiras que tocavam o teto, isolando-os dos civis. Um dos lagartos estava em disparada na direção de Nicolas que lutava com outros três e não percebeu a investida. Vendo isso ele criou uma lança de madeira, correu para pegar impulso e arremessou. O objeto voou pelos ares e acertou o ombro esquerdo do lagarto que caiu imóvel no chão.
Estavam ganhando a batalha. Um a um, os lagartos foram caindo desacordados. O último levou uma marretada tão forte de Nicolas que subiu, bateu no teto e caiu estatelado no chão.
– Vamos. A essa altura a Cuca já sabe que estamos aqui e ela pode querer fugir. – Disse Joana se juntando aos amigos.
Gabriel afastou as árvores com um movimento de mão criando uma abertura por onde passaram. Mais lagartos apareciam para um novo confronto, mas não eram páreos para os quatro amigos juntos.
Estavam correndo pela pista, chegando perto da torre de controles, quando um grande tremor começou a sacudir o lugar. Um Golem emergiu do chão e soltou um urro ensurdecedor.
– Biel, contamos com você. Vai! Nós seguramos o Golem. – Disse Fernanda em posição de ataque.
– Mas esse é maior do que aquele que vocês enfrentaram na Cachoeira da Fumaça. – Disse Gabriel preocupado.
– Não se preocupe com isso, Biel. Nós também estamos mais fortes que aquele dia. – Disse a garota tirando o colar, entregando-o para Gabriel. – Devolva-me isso quando voltar. Agora vai. –Ao dizer isso Fernanda ergueu as mãos para o céu que antes era ensolarado, agora estava com uma grande nuvem negra sob ele.
Grandes gotas de chuva começaram a cair, quando Gabriel colocou o colar e começou a correr na direção do Golem. A única passagem era por debaixo de suas enormes pernas. Ele criou uma barreira de árvores entre as pernas do gigante, evitando que ele as fechasse, e correu na direção do vão. Ao aproximar-se o monstro fez um movimento com um dos braços. Iria acertar o garoto em cheio, mas Nicolas apareceu a cima da cabeça de Gabriel e deu uma marretada no braço do monstro, que descolou de seu corpo e caiu com um grande baque no chão.
– Tome cuidado, gato. – Disse o amigo preparando outra investida contra o Golem.
PESTE.
Gabriel alcançou a entrada da torre de comando que estava sendo guardada por mais lagartos. Esses não foram problema para ele que os deixou imóveis, sendo segurados por galhos saídos das paredes.
Foi até o elevador e apertou o último andar. Chegou ao saguão onde havia apenas um lagarto guardando a porta ao lado de um vaso de plantas. Gabriel fez um tronco sair do vaso prendendo o lagarto contra a parede, tapando sua boca e o impossibilitando de gritar. Abriu a porta lentamente e entrou na sala escondendo-se atrás de um sofá preto.
Lá dentro estavam Cáulon e a um grande jacaré em pé na frente dos painéis de controle e olhando para a janela. O bonsai estava em cima de uma mesa de madeira, próximo aos dois.
– Desse jeito, eles vão passar rápido pelo Golem, mamãe. – Disse o garoto parecendo preocupado. – Não entendo por que só vieram os quatro.
– Não importa quantos venham. Assim que os enviados chegarem nada nem ninguém será páreo para eles. – Disse Cuca em tom de vitória.
Gabriel começou engatinhar pela sala até chegar em baixo da mesa.
– Mas se os reforços deles chegarem antes? Nós vamos ter que ir para outro lugar e pode ser que não dê tempo de entrarmos em contato com os soldados.
– Cale-se. – Disse Cuca rispidamente. – A nave chegará a qualquer momento. A árvore está em nosso poder, se eles chegarem nós nos escondemos até que seja o momento certo.
– Por que a senhora se tele transporta para a nave?
– Isso é muito difícil. Como eles estão em alta velocidade eu poderia acabar dentro da turbina ou... – Ela observou com atenção o vidro da torre e no reflexo pôde ver que a porta estava entreaberta, virou-se e notou que do outro lado atravessava um tronco de árvore. Gabriel se esqueceu de fechar a porta, mas não tinha problemas, já estava alcançando o bonsai silenciosamente. – Você acha mesmo que vai conseguir tomar a árvore da cura de mim, garoto? – Disse a bruxa pegando o vaso antes dele.
Outro grande tremor aconteceu. Será que era outro Golem?
As janelas ficaram escuras e um barulho de nave passou pelo local quebrando os vidros da torre.
-Eles chegaram. – Disse Cuca com um sorriso malicioso. Cáulon segurou em seu ombro e os dois desapareceram, deixando apenas uma fumaça roxa para trás.
A grande nave cinza, achatada de formato arredondado que parecia um carrapato de cachorro com vidros pretos na parte superior, pousou lentamente no final do aeroporto. Era tão grande que ocupava toda a pista de decolagem, o gramado central e a pista de pouso.
Uma comporta se abriu e dela apareceu uma rampa que tocou o chão. Dez homens desceram lentamente até chegarem ao gramado. Seriam como qualquer outra pessoa se não trajassem uma armadura de ossos e se não fossem vermelhos. Logo atrás deles, outras quatro pessoas apareceram: um homem branco de bermuda de pele de pantera, sem camisa e muito magro; uma mulher negra de grandes cabelos lisos, usando um longo vestido preto; um homem azul escuro, careca usando uma armadura prateada e portando uma espada; uma mulher rosa também careca com asas de mariposa e com o corpo coberto de pelos.
– Quanto tempo que não venho nesse lugar! – disse a mulher de asas olhando para os lados, parecendo admirada. – Tenho que reconhecer que eles evoluíram muito bem sem nossa ajuda, naves voadoras, satélites e estações espaciais em órbita. Meus parabéns! – Disse ela batendo palmas. – Vão, meus irmãos, deixem que eu me resolvo com a Cuca.
Os outros três sorriram, se transformaram em fumaça e desapareceram.
A mulher que ficou não parecia ter mais que quarenta anos, seus olhos eram inteiramente amarelos. Não tinha mais que um metro e sessenta de altura e seu corpo, apesar de todos os pelos, era bem bonito.
– Onde será que ela está? - Começou quando Cuca e Cáulon apareceram ao seu lado com o bonsai e um pequeno caldeirão.
– Olá, minha senhora. Estive aguardando ansiosa o seu retorno. – Disse ela fazendo uma reverência.
– Vejo que conseguiu a árvore. – Disse olhando curiosa para o bonsai. – Pensei que ela fosse maior.
– Ela foi conservada em miniatura. É uma forma de cultivo de árvores que os humanos utilizam. Chamam de bonsai.
– Bem engenhoso. Se não se importa, estou com um pouco de pressa. Podemos começar? – Disse ela em tom amistoso.
– Claro, minha senhora, Piatã está na nave? – Cuca perguntou de cabeça baixa e apanhando algumas folhas da árvore.
– Não, Cuca. Ele chegará em breve. Eu fiquei encarregada de cuidar da poção que você vai fazer enquanto nosso mestre não chega.
– Para concluir a poção, vou precisar da saliva dele. – Disse Cuca parecendo decepcionada.
– Ah! Aqui está. – Disse a mulher entregando um frasco com líquido à Cuca.
– Obrigado.
– Esse é seu filho? Se parece muito com você.
– Sim, Veslita. – Disse Cuca cortando o bonsai, deixando, apenas, um pequeno toco no vaso que foi arremessado para longe, e colocando o restante dentro do caldeirão, tomando cuidado para não deixar cair nenhuma folha.
– Onde está o irmão de Piatã? Quero conhece-lo – Perguntou Veslita ainda olhando em volta.
Cuca que estava acendendo um fogo em algumas toras de madeira, apenas apontou para o grupo de garotos paralisados na outra extremidade da pista. Veslita sorriu, colocou os braços para trás e começou a caminhar lentamente pela pista. Os quatro amigos estavam com os punhos cerrados observando-a se aproximar cada vez mais.
– Olá gracinha. Como vai? – Perguntou a mulher vespa, dirigindo-se à Gabriel. Como não teve resposta continuou. – Eu sou Veslita ou peste. Fui criada por seu irmão há muito tempo atrás, pois ele se sentia meio que sozinho nesse universo imenso. Pelo que sei você tem mais três irmãos a Naindí, Araíba e o Caramuru. – Disse contando nos dedos.
Gabriel não esboçou nenhuma reação ao ouvir o nome dos irmãos, estava preocupado em se defender caso ela atacasse. O que não aconteceu.
– Qual seu nome? – Todos continuaram mudos. Peste começou a andar olhando ao redor. – Sabe, esse lugar mudou muito desde a última vez em que eu estive aqui. Os seres humanos ainda usavam lanças para caçar. Há! Há! Há! Tecnologicamente falando, eles evoluíram muito. Claro que ainda tem um longo caminho pela frente, mas estão indo bem e depois que seu irmão recuperar todas as suas energias e evitar que o universo desmorone eu poderei ensinar uma coisa ou outra. A propósito. Obrigada por encontrar a árvore da vida e cuidar tão bem dela.
– Não cuidei dela por Piatã. Será que poderia me devolver? – Perguntou Gabriel em tom de deboche já sabendo a resposta.
– E o que você fará com ela? – Perguntou Veslita, parecendo interessada na conversa.
– Eu vou entregar para a única pessoa que realmente pode salvar o universo: Minha mãe! – Disse ele, encarando Veslita que soltou uma gargalhada parecida com um zunido de mosca.
– Diz-me, como você fará para chegar até ela? A única passagem que havia foi fechada por seus irmãos quando Piatã decidiu voltar. Não tem como ninguém ir até seu planeta natal.
Gabriel ficou confuso com a notícia, ainda não tinha pensado como faria para entregar o bonsai para seus pais biológicos.
– Deve haver outra forma de voltar, afinal eu estou aqui não estou? – Disse ele tentando convencer a si mesmo.
– Não vai precisar voltar, garoto. Quando Piatã tiver sua força máxima, ele não vai deixar que a catástrofe aconteça.
– Mesmo que houvesse dois dele, com força máxima, não seria o suficiente para evitar que isso aconteça.
– Você o está subestimando, garotinho. Assim que ele chegar, veremos o que poderá fazer após beber a poção que nossa amada amiga está preparando.
– Acha mesmo que vamos permitir isso? – Disse Joana, desaparecendo e aparecendo ao lado de Cuca. Peste apenas sorriu e Joana foi jogada pelos ares por um enxame de gafanhotos que apareceram do nada.
A garota subiu por cem metros e começou a cair muito depressa, Nicolas girou nos calcanhares e se tele transportou para o lado da amiga a segurando e a guiando até o chão.
– Esse aí é o Saci? Se não me engano ele era negro. Disse Veslita com cara de indignação.
– É o filho dele. – Disse Fernanda em tom seco.
– Desculpe, garota. Quem é você?
– Sou Fernanda, filha da Iara e do Boto e nós vamos entregar a planta da cura para Céu.
– Vocês têm outra? Porque a Cuca está, nesse momento, preparando uma poção com uma bem ali. – Apontou para a nave onde os guardas vermelhos, com armaduras de osso estavam.
– Não, não temos outra. Só aquele mesmo que vamos recuperar.
– E como pretendem fazer isso? Caso ainda não tenha percebido, eu estou aqui e vocês vão ter que passar por mim. Vai querer encarar?
– Sim. – Disse Fernanda disparando uma forte rajada de água contra a mulher vespa que voou por alguns metros.
– Arg, garota. Eu acabei de tomar banho. – Veslita fez um movimento brusco para o lado com a mão e Fernanda foi envolvida por escaravelhos. – Sabe por que me chamam de peste? Por que meus vírus e insetos comem qualquer coisa orgânica.
Gabriel correu até o local em que a amiga caiu, mas só viu uma poça de água com alguns escaravelhos.
- Hi! Hi! Hi!. Triste fim daquela bela garotinha. – Disse Veslita com desdém. – Onde estávamos mesmo? Ah, sim! Quando seu irmão estiver com tudo em cima ele vai colocar as coisas no lugar.
– Ele não é forte o bastante e eu não vou deixar que ele permita que minha mãe morra por um capricho dele.
– Você é muito corajoso, mas sozinho não vai conseguir fazer muita coisa.
– Você não percebeu que ele não está só? – Gritou Fernanda que vinha surfando em uma grande onda pelo aeroporto.
– Pensei que estivesse morta. Dessa vez eu vou me certificar que isso aconteça. – Disse Veslita erguendo os braços, fazendo milhares de insetos aparecerem sob seus pés e indo de encontro às Fernanda.
As duas ondas colidiram espalhando água e insetos por centenas de metros. Fernanda foi jogada pelos ares enquanto Veslita batia suas asas e ia na direção da garota. Um furacão apareceu na frente dela fazendo-a parar.
Nicolas parecia furioso. Seus ventos fizeram um avião de pequeno porte voar e ser jogado contra Veslita que o cortou ou meio e investiu contra o garoto. Joana entrou na batalha disparando uma grande quantidade de descarga elétrica de seu cajado.
A mulher vespa fez aparecer uma proteção a sua volta parecida com um casulo que recebeu o impacto e foi lançada ao chão quicando por metros até parar.
– Ráh! Que interessante. – Disse ela saindo de seu casulo. – Que a brincadeira comece. – Disse ela erguendo os braços e dois dos guardas vermelhos voaram e pousou ao seu lado.
Ela colocou as mãos em seus ombros e um desses se transformou em um grilo e outro num besouro. Ambos vermelhos com mais de dois metros de altura e ainda com as armaduras de ossos, voaram de encontro à Fernanda, Joana e Nicolas.
Os três lutavam tanto contra os insetos gigantes quanto contra os lagartos de Cuca e os golens que estavam espalhados pelo aeroporto.
– Talvez agora possamos conversar em paz. – Disse Veslita caminhando até Gabriel.
– Não temos o que conversar, só devolve o que me pertence e eu a deixarei ir.
– Acha mesmo que só vocês quatro conseguirão me deter? Vê como é fácil, para mim, manter eles ocupados? – Disse ela a cerca de vinte metros de distância, parando e dando palmadinhas no chão fazendo um golem aparecer e atirar uma pedra contra Gabriel que criou uma barreira, fazendo crescer três jacarandás. Com todo aquele asfalto ele tinha que se esforçar muito para que as árvores nascessem. Correu para o lado esquerdo, a fim de ver Veslita e uma outra grande pedra já estava a caminho. Não teria tempo para se proteger. Cruzou os braços na frente do corpo esperando receber o impacto que não aconteceu.
– Desculpe a demora, Biel. Só agora recebemos a notícia de onde vocês estavam. – Disse Pedro com seu sorriso largo e segurando o grande cachimbo com uma pedra na ponta.
– Sem problemas. Nicolas e as garotas precisam de mais ajuda que eu. – Disse Gabriel olhando para os amigos.
O aeroporto estava repleto de pessoas e de magias sendo disparadas. O local se transformou em um campo de batalhas.
– Todos viemos ajudar. Oi, Veslita! Há quanto tempo não nos vemos e é assim que você me recebe? – Disse Pedro jogando a pedra contra um lagarto que se aproximava.
– Não tive a intenção de te acertar se não eu mesmo teria atacado. – Disse ela gentilmente. – Seu filho é bem forte.
– É sim. Ele puxou a mãe, sabe. – Disse o Saci coçando a nuca. – Em que podemos ajudar?
– Me ajudaria muito se morresse. – Disse Veslita disparando muitos insetos contra o Saci que com uma rajada de vento dispersou todos eles.
– Pedro, deixe isso comigo. Vá ajudar Nicolas e os outros. Eu não vou me descuidar novamente. – Disse Gabriel se colocando ao lado do Saci que acenou com a cabeça e desapareceu deixando para trás apenas uma brisa.
– Cuidarei de você rápido e depois porei um fim nesse furdunço. – Disse ela. – Você pensa uns nos outros e isso os deixa fracos.
– Se muitas pessoas se unirem em um propósito, suas forças, que seriam inúteis sozinhas, podem tornar-se mais que suficiente juntos. – Disse Gabriel, aproximando-se de Veslita. – Se quiser aquela poção, terá que passar por todos nós.
Ela ficou imóvel por um instante, enquanto uma grande cobra de fogo começou a enrolar-se em seu corpo.
– Posso até estar mais velha, Boitatá, mas ainda sou muito mais forte que vocês! – Veslita pegou no corpo abaixo da cabeça da cobra que aos poucos foi tomando a forma de Anderson. Como se fosse uma bola de tênis, atirou o corpo inerte para longe.
Gabriel ardeu em fúria, com um movimento de mãos cobriu a mulher com árvores. Marcus, Gustavo e Pedro se tele transportaram para diante de Cuca para pegarem o caldeirão fervendo. Os guardas da espaçonave protegeram-na criando uma barreira espessa de ossos, estreita o suficiente para que só coubessem a Cuca e o Caldeirão. Cáulon, que ficou do lado de fora, criou uma cortina de veneno, obrigando os três a recuar.
-Há! Há! Há! – As risadas de Veslita vinham de dentro da cúpula de árvores. – Isso é tudo o que consegue fazer, Biel? Vamos ver se vocês podem com isso. – Quebrou a barreira de árvores e se içou nos ares com outra cortina de insetos.
Um terremoto muito forte atingiu o local e dez golens, duas vezes maiores que o da Granja Comary, apareceram nas pistas do aeroporto e começaram a lançar bolas de pedra por todos os lados. Algumas foram longe o bastante para destruir as casas ao redor.
O parecia uma zona de guerra. Todos estavam ocupados, tentando conter os golens que eram muito poderosos. Com um golpe de braço, um deles varreu o grupo do Curupira para longe.
Fernanda juntou-se aos pais e aos irmãos contra outro monstro. A água parecia enfraquecê-los, mas só podiam com um de cada vez.
Veslita começou a voar pelos ares e disparou grandes quantidades de insetos contra Gabriel que começou a correr e desviar dos ataques.
– Vamos Biel, mostre o que pode fazer. – Dizia ela, divertindo-se com a situação e atirando mais insetos contra o garoto.
Uma pedra foi atirada rápida demais por um golem e Gabriel não iria conseguir se esquivar. Parou, virando-se para o ataque e criou um bambuzal onde a pedra bateu. Eles se flexionaram e, como uma catapulta, a mandaram de volta acertando e arrancando a cabeça do monstro. O garoto aproveitou que Veslita estava distraída, fez com que uma corda de cipó se prendesse no tornozelo dela e a puxou contra o solo. Uma grande cortina de poeira subiu e no local da queda se formou uma grande cratera.
A mulher vespa saiu do buraco, sacudindo a poeira das asas.
Gabriel estava em desvantagem na batalha. Veslita já usava seus poderes muito antes dele nascer e ele só descobriu os dele há poucos meses. Cuca apareceu ao lado dela com um frasco que tinha um liquido verde e dourado dentro.
– Já não era sem tempo, Cuca. – Disse pegando o recipiente e o guardando.
Não tinha mais o bonsai para curar sua mãe e, se o frasco fosse entregue a Piatã, que já era forte, as coisas poderiam piorar.
Gabriel olhou para o grupo de amigos ocupados lutando contra os monstros de pedra e muitos lagartos. Cuca apareceu no meio da batalha, liberando uma cortina de fumaça roxa que foi combatido por um tornado afastando o veneno e fazendo Cuca e Cáulon voarem. Os Golens continuavam com os pés no chão, causando estragos com seus pedregulhos.
– Diga-me, Biel. Por que você protege essas pessoas? Deixe seu passado para trás e se una a nós. Juntos, podemos guiar a humanidade para um rumo de união e todos aqueles que se opuserem a nós serão mortos. O que acha? Um mundo perfeito e pacificado pelo medo. Não é uma ótima ideia? Não, melhor! Um universo inteiro pacificado pelo medo!
Gabriel apoiou um braço na perna, fazendo esforço para levantar-se. Sua respiração estava acelerada e ele estava de cabeça baixa, quando começou a falar:
– Não adianta tentar explicar o motivo para alguém que não reconhece o poder da união de uma família e de suas amizades. – Ao Dizee isso, ele pegou impulso, sendo jogado por um tronco. Ganhava cada vez mais velocidade, fechou o punho, criando uma luva de madeira. Preparou-se para dar o soco, mas Veslita jogou-o para o lado com uma proteção de insetos.
– Vamos, garoto. Seja flexível como aquele bambuzal que você fez. Se vier conosco, vamos te ensinar como liberar todo seu poder. Seremos os deuses absolutos, sem ninguém para nos ameaçar.
Veslita caminhava lentamente na direção de dele que estava caído, esforçando-se para se levantar. Viu que no chão estava a pedra do colar que Fernanda lhe deu. Pegou a pedra, colocou de volta no pescoço e sentiu seu corpo se aquecer. Ergueu a cabeça e serrou os punhos, determinado. Não sabia que seus olhos, sempre verdes, agora tinha uma cor laranja e ardia em chamas.
Sentia a pedra vibrar em peito, mas pensou q fosse sua imaginação. Veslita armou-se e disparou mais insetos contra o garoto que a dispersou apenas com um movimento com o braço e uma fina barreira de variadas folhas.
– Eu vou tentar explicar com outras palavras, caso você não tenha me entendido. – Ele disse. – Se tiver ao seu lado alguém que te ama, você já é a pessoa mais forte do universo. AGORA!
Uma grande quantidade de água do mar envolveu Veslita, fechando-a em uma bolha. Ela se debatia, na tentativa de sair sem conseguir respirar. Fernanda, seus pais e muitos irmãos esforçavam-se para mantê-la presa. Ela parou de se debater e ficou imóvel por alguns segundos. Um enxame de abelhas veio em sua direção e a atingiu dentro da bola de água, libertando-a. Gabriel concentrou energia e disparou como uma bala, passando e ficando acima da mulher. Inclinou seu corpo para baixo e desceu colidindo com ela.
Direita, esquerda, chutes. Gabriel a golpeava sem parar, deu um giro no alto, criou um bastão de madeira e fogo e a acertou em cheio na barriga fazendo-a cair com violência de costas no chão.
Gabriel olhou para os lados e viu q a batalha no local estava controlada por seus amigos. Os dois grandes insetos estavam no chão envolto de uma rede de pesca de aço e não conseguiam se soltar. Os Golens haviam desaparecido e muitos lagartos estavam amarrados imóveis.
- Conseguimos, Biel. Derrotamos todos. – Disse Nicolas correndo na direção do amigo.
–E nossos amigos? – Perguntou Gabriel esperançoso.
– Infelizmente alguns não resistiram. – Disse Fernanda o encarando com olhos tristes.
– Não podemos permitir que a morte deles tenha sido em vão, Biel. Pegue esse frasco e vamos procurar um jeito de entregar ele à Céu antes que Piatã chegue. – Disse Joana sendo amparada por Fernanda.
Ele fez que sim com a cabeça e foi até Veslita que ainda estava imóvel no chão. Se abaixou ao lado dela e procurou pelo frasco. Ela abriu os olhos e agarrou em seu pescoço dando-lhe um beijo, mas não era um beijo de amor.
O FIM?
Conforme era beijado, Gabriel sentia alguma coisa entrar em sua boca. Tentou lutar, mas era em vão. Veslita não o largava e em poucos segundos estava dentro de seu corpo.
O garoto caiu no chão se contorcendo de dor. Fazia força para vomitar, mas nada saia de sua boca.
“É inútil lutar, Biel. Esse corpo agora me pertence”
A voz de Veslita estava na sua cabeça, como era possível? Ele pensou ter derrotado ela com o último golpe.
“Devo admitir que você quase me matou com aquele golpe, mas minhas asas amorteceram a minha queda diminuindo o impacto o suficiente para eu sobreviver”
– Sai do meu corpo! Sai logo! – Gabriel gritava e se debatia furiosamente.
“Você perdeu, Biel. Vamos ver o real poder desse corpo”
Ele parou de se debater e ficou imóvel no chão por alguns segundos ao lado do que restou do corpo de Veslita.
Todos o olhavam horrorizados e apreensivos. Não sabiam o que fazer. Se podiam se aproximar. Se seriam atacados. Se prejudicariam o garoto ao farer algo.
Cuca apareceu no local em que os corpos estavam, pegou o frasco com a poção do corpo de Veslita e desapareceu antes que alguém a detivesse.
Gabriel começou a se levantar lentamente.
– Hi! Hi! Hi! Que sensação agradável. Eu nunca havia tomado um corpo tão poderoso assim. – Disse Vaslita, mas usando a voz de Gabriel. – Vejamos.
Ela bateu os pés no chão e centenas de árvores nasceram por todo o aeroporto.
– Tudo isso e nem se quer me desgastei. Você realmente tinha muito que aprender. Pode deixar que eu vou cuidar muito bem desse seu corpinho imortal, Biel.
– Sai já do corpo do nosso amigo, sua parasita. – Gritou Nicolas.
– Por um instante eu tinha me esquecido de vocês. – ela/ele fez um movimento para o lado com a mão direita e um grande cipó derrubou todos de uma só vez. – Se antes já era difícil para vocês me deterem, imaginem agora que tenho o corpo de um deus.
– Deixe-o em paz. A Cuca está com a poção. Vocês podem entregá-la ao Piatã e seguir com o plano. – Disse Joana se levantando.
– Devo admitir que antes nós tínhamos dúvidas se só um deus conseguiria segurar o universo. Agora com dois deuses já se torna a mais possível. Serei muito bem recompensada quando entregar esse corpo e a poção ao Piatã.
– Veslita, você não precisa fazer isso. Deixe o corpo do garoto e... – Começou o Saci, mas foi atacado por uma rajada de bambus atirados como dardos e teve que se esquivar junto com os outros para não ser acertado.
– Fica quieto aí, Saci. Deixa-me ver onde está Piatã para poder buscá-lo. – Ela fechou os olhos e começou se concentrar.
Fernanda não aguentou ver toda aquela situação parada ali e correu até ela/ele aos gritos:
– Biel! Biel, eu sei que você está aí e é mais forte que ela. Resista, resista por todos nós! Resista por mim. – Chorou Fernanda dando socos no peito do garoto.
Ele fez um movimento de dar um tapa no rosto de Fernanda, mas sua mão parou há centímetros de acertá-la.
– Me amarrem. – Disse Gabriel com os olhos cheios de lágrimas. – Sejam rápidos, antes que ela reassuma o controle e encontre Piatã. Vou segurar ela aqui. Me levem para algum lugar com proteção em que minha mãe, Ester, também esteja. Só isso que eu peço a vocês. – E seu corpo caiu imóvel no chão.
– O que vamos fazer? – Perguntou Nicolas sério ao pai após entrar no quarto com biscoitos e chá para Dona Ester que há duas semanas não saia do lado do filho que estava deitado inconsciente em uma cama.
– Vamos continuar lutando e encontrar um jeito de tirar essa praga do corpo de Gabriel, Nick. O futuro é inserto, por isso temos que continuar juntos. – Disse Dona Ester dando um beijo na testa de Gabriel.
DESPERTAR.
O que era aquilo que estava sentindo? Meio atordoado, meio desnorteado ficou, ainda de olhos fechados, aproveitando aquele momento. Era a primeira vez que sentia aquilo. Era a primeira vez que sentia qualquer coisa. Não se lembrava de nada antes de aquele sentimento acontecer em seu súbito e repentino suspiro de vida. Não sabia o que iria acontecer se saísse daquele estado e decidiu ficar ali aproveitando o mormaço do local.
Após um grande período ele, sem saber o que estava fazendo, abriu os olhos. O que era da cor laranja por dentro de suas pálpebras se tornou um clarão difícil de suportar, isso o fez mover rapidamente o braço direito para a frente de seus olhos e os fechou. Assim ele começou a tomar consciência de seu corpo. Moveu novamente seu braço direito para frente de seu rosto colocando e deslizando a costa da mão por sua testa, passou pelo nariz amassando a ponta de leve e caindo leve e suave em seus lábios. Enquanto ia descendo pelo queixo sua boca abriu um pouco e o ar escaldante entrou de uma só vez dentro dela, o que para ele foi uma ótima sensação. Depois que passou pelo queixo sua mão caiu suavemente em seu tórax, mas dessa vez com a palma para baixo. Foi descendo-a lentamente passando pelo abdômen, virilha até chegar em sua perna. Como estava deitado seu braço não passava dali. Estava esticado no limite e forçou um pouco mais fazendo seu tronco se mover alguns centímetros, a cada movimento conhecia melhor seu corpo.
Tentou se erguer em um movimento que parecia com um exercício abdominal, mas só conseguia subir muito. Foi quando tomou consciência do seu braço esquerdo. Apoiou os dois cotovelos no chão em que estava deitado e concentrando a força neles conseguiu ficar sentado e sentiu seus pés.
Ainda nessa posição tentou abrir novamente os olhos e mais uma vez foi forçado a fechar devido a luz. Respirou fundo e começou a abrir as pálpebras vagarosamente, acostumando seus olhos com o brilho intenso. Se viu cercado de fogo. Não sabia o que aquilo era, mas pra ele era algo muito agradável. Olhou ao redor e ó via as chamas altas e belas. Algumas subiam bem alto e sumiam na escuridão. Ouvia muitos barulhos como explosões e todas as vezes que um barulho vinha as chamas subiam bem alto. Ele se maravilhava com aquele espetáculo de som e cores. A única coisa que conseguia ver além da escuridão eram as chamas que pareciam gostar da ideia de ter um espectador para apreciar seu show.
Esticou o braço para tocar uma língua-de-fogo que subia alegre ao seu lado e ao fazer isso viu que de seu braço também saiam pequenas chamas, mas a cor que saia dele era de um laranja intenso, mais vibrante que as chamas ao seu redor. Olhou para baixo e viu que seu corpo era composto do mesmo laranja com algumas partes pretas e que saiam pequenas chamas dele todo. Achou muito engraçado. Ele era uma versão menor e mais intensa que aquilo onde seus pés se apoiavam. Deu alguns passos e na sua frente ocorreu uma grande explosão. As chamas subiram rodopiantes e exibidas para a escuridão, Era muito divertido, as chamas pareciam fazer aquilo que ele quisesse que fizessem.
Acompanhou com os olhos a rajada de fogo que saia do chão e ia bem alto em direção da escuridão, fez um movimento erguendo os braços para o alto quando outra lavareda apareceu. Reparou que essa subiu ainda mais alto que a anterior e, percebendo o que fez, ele estava regendo uma orquestra de explosões e fogo.
Continuou caminhando interessado em querer conhecer mais aquele lugar, ver se havia outras coisas além das chamas que sempre vinham, gostosamente, fazer carícias mornas em seu rosto.
De repente veio a ideia de encontrar outros como ele. Será que era possível? A ansiedade tomou conta dele fazendo com que seu corpo ardesse em chamas. Ao seu redor aconteceram muitas explosões e o fogo parecia ainda mais vivo.
Ele andou por alguns minutos e tudo ali era igual, fogo para todos os lados. Estava de ouvido atento na expectativa de ouvir passos ou alguém o chamando, mas só ouvia as explosões do local.
Continuou andando e olhando para cima e para os lados na expectativa de encontrar alguém ou alguma coisa diferente e caiu. Caiu em algo denso e mais quente que as chamas que brincavam com ele na superfície, seus pés não estavam mais tocando o chão sólido, abriu os olhos e não conseguia enxergar nada. Ele estava afundando em lava macia e quente. Abriu a boca e se engasgou e uma boa quantidade do liquido.
No início lutou contra aquilo tentando cuspir, mas se viu forçado a engolir aquantia que estava em sua boca. Como era gostoso e saboroso, se viu bebendo loucamente aquele liquido quente e rochoso.
Para ele não o fazia mal. Quanto mais consumia, mais se sentia bem. Já começava até a enxergar dentro da lava. As coisas à sua volta começavam a tomar forma. A curiosidade em querer descobrir o que tinha ali em baixo era grande e começou a mergulhar.
Desceu mergulhando e se enchendo de lava, cada vez que bebia ele ficava mais vigoroso, nadava cada vez mais rápido e seus sentidos ficavam ainda mais aguçados. Enxergava com clareza as grandes paredes rochosas com enormes buracos que pareciam o convidar para uma visita em seus interiores.
Parecia que alguma coisa o abraçava, que alguma coisa o tocava, podia sentir os dedos passando por seu braço esquerdo e não era sua mão direita. Girou em torno de si e não viu nada além das grandes paredes esburacadas. A única coisa que o envolvia era a lava. Talvez estivesse delirando, pôr que tão rápido quanto veio essa sensação se foi deixando apenas a impressão de que alguma coisa ou alguém o chamava. Será que o que sentiu foi a presença de outro ser? Quis acreditar que sim. Talvez o fato de não haver ninguém lá nas chamas se dava em razão de em baixo ter essa lava deliciosa.
Continuou a mergulhar sempre olhando para os lados, mas até então não viu ninguém. Ele sentia que não estava só e que havia mais alguém naquele lugar e quanto mais descia mais sentia a presença desse outro ser. Não desistiu e continuou sua descida, mas não via nada além lava, rochas e cavernas. Esse ser poderia estar dentro de uma dessas cavernas, pensou e entrou em uma passagem.
Foi cada vez mais para dentro. Se viu com a possibilidade de apenas ir para cima ou voltar. Bom, já que estava ali, continuou em frente.
A lava acabou, mas ainda havia como seguir andando pelo local. Ele saiu da lava e seguiu o curto caminho até chegar a uma imensa caverna com centena de milhares de pontos brilhantes e de diversas cores diferentes. A lava escorria pelas paredes iluminando o lugar e dando vida as muitas pedras que havia ali.
Ele se maravilhou com a visão. Essa era uma bela surpresa. Aproximou-se de um amontoado brilhante e pegou uma pequena pedra de um verde jasmim, achou aquela a mais bonita de todas que ali estavam. Havia uma infinidade de cores, amarelas, douradas, violetas, azuis, lilás, mas aquela verde foi a que chamou mais sua atenção e ficou com ela.
O fogo parecia brincar na lava. Sentiu uma brisa morna e gostosa que vinha da continuidade da caverna. Ficou muito curioso em saber a origem do vento. Será que havia mais dessas belezas? Olhou para sua pedra jasmim, sentiu novamente a ansiedade e a vontade de encontrar o dono da presença. Poderia dar a pedra para ela de presente e voltaria com o outro ser para explorarem o resto da caverna. Isso o atiçou ainda mais.
Caminhou lentamente de volta para o poço de lava de onde tinha vindo ainda apreciando todas aquelas pedras brilhantes e o local fascinante.
Mergulhou na lava, agora consciente do que ela fazia e sem sustos, tomou mais uma boa quantidade daquele liquido delicioso e foi mergulhando cada vez mais. Aquela presença se intensificava e ele ficava cada vez mais ansioso em poder se encontrar com ela.
Para onde quer que olhasse não via ninguém. Só buracos, rochas e lava. O que será que há dentro dessas cavernas? Pensou. Será que tem mais pedras tão lindas quanto essa? Não podia ficar imaginando essas coisas, tinha que ter foco em sua busca para alcançar seu objetivo e continuou a mergulhar.
Chegou a um ponto onde a lava era quase tão laranja quanto ele e ali a presença ficou muito intensa. Sabia que há qualquer momento a encontraria. Será que ela também sentia que ele estava ali? E se estiver preso em algum lugar? E se precisa de ajuda para se livrar de sua prisão? E se ainda não despertou, como ele, do seu sono? Será que se assustaria em ser acordado ou ficaria feliz em ver que havia alguém com quem pudesse se divertir.
Mergulhou nessa lava mais densa e um pouco mais quente que aquela de que já estava acostumado e engoliu um pouco dela. Era mais gostosa do que a anterior e parecia que ele estava mais forte. Seguiu com mais vigor e mais rápido. No inicio era difícil de enxergar naquela lava. Conforme bebia dela as coisas ao redor ficavam mais claras. Mas ele não precisava enxergar, só precisava seguir a presença. Continuou a nadar por mais dez minutos e se viu na lava menos densa. Passou pela presença e não a viu? Não era possível! Voltou a mergulhar na lava mais densa, dessa vez se certificou de cobrir cada canto dela. Ficou dando voltas por mais de meia hora. Só sentia e nada via. Isso o enfureceu. Ele teve um breve ataque de fúria ficando ainda mais laranja que jamais estivera e explodindo de raiva.
Parou com sua decepção, lamentando não encontrar e ainda sentindo a presença. Abriu a mão em que estava pedra jasmim viu que ela havia ficado muito escura, quase não se via mais a bonita cor verde. Voltou ao seu estado normal. Esse episódio o fez perceber que era tão poderoso quanto aquele lugar.
O sentimento de fúria ainda passava por seu corpo, ele não gostava disso. Fechou os olhos se concentrando em se acalmar, ficou assim por alguns instantes e sentiu aquela fúria se. Pronto. Se livrou daquele mal-estar.
Olhou mais uma vez para a pedra jasmim ainda queimada e, pensando no que acabara de fazer, começou a concentrar o sentimento de fúria agora focando em sua mão direita e essa ficou inteiramente em chamas com um brilho muito intenso. Segurou a pedra jasmim com firmeza na mão esquerda e passou a mão em chamas na parte queimada dela repetidas vezes. A mão servia como uma espécie de lixa e a parte escura da pedra deu lugar ao antigo verde jasmim, só que sem brilho. Continuou esfregando, mas não obteve sucesso. Depois se importaria com isso.
Será que a vontade de encontrar outro ser o fez pensar que sentira a sua presença? Não era isso! Realmente havia alguém ali e queria muito encontrá-la.
Já estava cansado de ficar nadando e ver a mesma coisa por onde quer que olhasse, bebeu mais uma boa quantia daquela lava mais densa, se sentiu revigorado como se tivesse acabado de acordar. Resolveu voltar à superfície e continuar sua expedição entre as chamas.
N meio de seu trajeto avistou as cavernas que vira quando estava pela busca da presença que ainda o intrigava. Escolheu uma das entradas e nadou até ela. Havia muitas curvas, subidas, decidas e buracos para escolher, mas seria fácil de voltar porque sentia cada lugar por onde já havia passado como se ele a lava, as pedras e as chamas fossem um.
Chegou a um bolsão de ar. Ali o único lugar com lava era de onde emergiu. Era magnifico! Cheio de formas que ele ainda não tinha visto. Saiu do poço e começou a andar pela caverna.
Dentro havia uma escrivaninha preta com uma única perna em um ângulo de trinta graus e sua quina era arredondada. Estava apoiada em um gabinete também preto com duas gavetas e uma porta. Atrás dela tinha uma cadeira de escritório com cinco rodinhas e o estofado em couro marrom.
Em um dos cantos da caverna tinha uma rede pendurada próximo de uma cama com um travesseiro e com lençol rosa. Em baixo da escrivaninha um cesto de lixo e ao lado direto um vazo com diversas folhas de Pau D’agua. No piso havia azulejos brancos com linhas dourado suave.
Tudo para ele era novidade, afinal havia dado seu primeiro suspiro há apenas algumas horas e desde que caiu acidentalmente na lava era a primeira vez que não sentia mais a presença. Aquilo não o incomodava, ele estava muito curioso para se importar com algo que não conseguia encontrar.
Aproximou-se da escrivaninha, em cima dela tinha um pedaço de papel, um lápis e uma borracha. Esticou o braço e pegou papel, e ao fazer isso percebeu que ele não era mais laranja e tão pouco saia chamas. Agora era negro ébano com as extremidades rosadas e com uma camada transparente, fina e dura nas pontas.
Olhou para todo seu corpo e ele todo estava da mesma cor de seu braço. Curioso como era, ele se apertou e sentiu sua pele macia pela primeira vez, aquilo o incomodou, gostava de se ver com as chamas que acordou. Ignorou o fato de não ser mais um pequeno vulcão ambulante e olhou curioso para o pedaço de papel em sua mão. Um dos lados do estava em branco e no outro tinha alguns símbolos que ele não fazia a menor ideia do que significavam.
Colocou o papel em cima da escrivaninha e pegou a borracha, gostou de sentir a textura, era macia. Não como sua pele, se fosse comparar a borracha era mais dura.
Deixou a borracha cair propositalmente e a viu bater no chão fazendo um leve “tu”, se elevando alguns centímetros, caindo novamente e parando no chão. Gostou daquilo. Abaixou-se, pegou a borracha e fez novamente. Sentiu que seu rosto se contraiu em um sorriso. Pegou o lápis. Esse por sua vez era duro e estava sem ponta. Colocou a pedra de jasmim sobre a escrivaninha. Com as duas mãos ele curvou o lápis e ouviu um “treck”. O lápis se partiu em dois, ele deixou uma das metades cair – “pah pah”– e se deliciou com o som.
Ficou curioso quanto ao som que o lápis faria ao tocar a lava. Se aproximou do poço e soltou a outra metade, quando tocou a lava se inflamou e desapareceu. Ele se abaixou rapidamente para tentar pegar o pedaço de lápis enfiando a mão na lava, mas esse já havia sido carbonizado, só havia a lava clara e as chamas alaranjadas de que seu corpo era feito. Então percebeu que de parte do seu braço voltou a sair fogo e a outra parte ainda era negra.
Ficou de pé, se apoiou em uma das pernas e colocou a outra a cima do poço de lava. Se viu metade negro e metade fogo. Um forte sentimento o pegou e ele começou a rir sem saber o que significava, mas gostou daquilo. Olhou para a escrivaninha e para o pedaço de papel, ficou curioso em saber o que aconteceria ao papel. Foi até a escrivaninha, pegou a pedra jasmim ainda com a cor opaca e o papel. Se dirigiu ao poço mergulhando a pedra nele e quando a retirou viu que ela continuava opaca como ele imaginava que estaria. Deixou o pedaço de papel no chão e entrou no poço. Olhou atentamente para os símbolos no pedaço de papel, concentrou novamente a fúria agora em apenas na ponta do dedo indicador da mão direita e, com muito cuidado e paciência, os desenhou na pedra jasmim. Esticou o braço para pegar o papel, rasgou-o em dois e jogou o pedaço que tinha os símbolos dentro da caverna. Fez o movimento com o braço em direção ao poço e assim que sua mão ficou inteiramente em chamas queimando o pedaço de papel como aconteceu com a metade do lápis na lava.
Talvez nada do que tinha naquela caverna poderia ser tirado de lá. Mas como aquelas coisas chegaram ali foi o que o intrigou tanto quanto a presença que voltou a sentir ao se colocar na lava.
Voltou para dentro da caverna, pegou a metade do papel que sobrou e o colocou em cima da escrivaninha. Deu a volta na mesa e se sentou na cadeira macia, percebeu que ela se moveu alguns centímetros e isso fez com que ele voltasse a sorrir.
Abriu as gavetas e portas da cômoda e não tinha nada dentro. Olhou no cesto de lixo e esse também estava vazio. Levantou-se da cadeira e ela se distanciou de seu corpo. Foi até o vazo com a planta pau d’agua e tocou nela, gostou de sua textura levemente áspera. Foi até a rede tentou se sentar, como foi a primeira vez que fez isso, ele se desequilibrou e caiu do outro lado batendo as costas no chão. A queda lhe causou uma forte dor parecida com a fúria antes sentida, mas de uma forma bem incomoda.
Levantou com um pouco de dificuldade. Olhou para a cama. Não queria saber qual a peça que essa pregaria. Como aquela caverna já não tinha mais novidades para ele olhar voltou para o poço de lava e ao entrar a dor que sentia na lombar desapareceu. Deu uma última olhada no local e mergulhou fazendo o caminho de volta.
Entrou em mais alguns buracos para ver se havia mais locais como aquele e o que encontrou foram outras pedras preciosas lindas. Em alguns buracos só havia rios de lava. Como ainda não tinha visto todo o lugar onde tinha dado seus primeiros passos, resolveu voltar para a superfície.
Mergulhou pelo lado oposto do qual tinha vindo. Vasculhando muitas das cavernas e buracos que havia no caminho, viu que tudo dentro deles se repetia. Exceto o escritório que foi único. Toda a vez que entrava na lava sentia a presença que a essa altura já o irritava.
Chegou à superfície, saiu da lava olhando as chamas que ainda subiam e rodopiavam para a imensa escuridão, mas ao olhar pra cima, acompanhando as labaredas exibidas, viu que havia algo além das chamas decorando aquilo que antes, para ele, era apenas um grande vazio.
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